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Sobre a experiência religiosa na contemporaneidade

Capítulo 2: Uma encruzilhada de singularidades plurais

2.1. Sobre a experiência religiosa na contemporaneidade

Labiríntica incursão pelas veredas mais profundas do humano, a reflexão sobre as relações entre homem e sagrado passa necessariamente por uma encruzilhada em que valores e crenças de proveniências diversas se encontram, dialogam, disputam e dividem espaço. As tentativas de análise das experiências religiosas humanas movem-se em um terreno instável, marcado pelo trânsito de elementos cuja origem perde-se no tempo e no espaço, tamanha é a velocidade com que incorporam novos traços e novas significações lhe são atribuídas. O chamado homem religioso, tal como designado por Eliade (2010: 18), ergue seus altares interiores no limiar entre culturas e mundivivências distintas, sendo o seu imaginário herdeiro

39 de conhecimentos religiosos diversos e promotor de negociações entre distintas tradições religiosas.

Elemento fundamental na formação identitária de um povo, a religião, como bem observam Magalhães e Portella,

é algo que fascina, envolve, seduz, faz matar e faz viver. Está dentro dos códigos vitais, faz parte dos gestos mais profundos de luta pela sobrevivência, é, muitas vezes, o fundamento de desenvolvimentos culturais e civilizatórios mais complexos. A mensagem de que há um sentido radical da vida, o desejo da plenitude associado ao absoluto, os sentidos para além do banal, esta união entre o corriqueiro e aquilo que o transcende, os grandes gestos de compaixão e compromissos profundos, tudo isto faz da religião uma busca e uma experiência insuperáveis (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008: 16-17).

Alimentada pelo insaciável desejo humano de transcendência, a religião é um componente essencial na organização do convívio em sociedade. Sua relevância pode ser constatada até mesmo na administração do tempo que os homens dedicam às atividades laborais, pois mesmo as instituições consideradas laicas submetem-se a uma sistematização cronológica fundada na experiência religiosa de seus antepassados, como se pode perceber ao verificar a incidência de feriados em dias consagrados às divindades as quais, em algum momento da história, se credita ou creditou o poder de intervenção na comunidade.

Com o advento da modernidade, no entanto, tem-se, conforme salienta Magalhães, “a tentativa insistente de pensar a vida e seu sentido sem deuses e sem religião. A modernidade representa um abalo ao poderio da religião. Um momento ímpar de imaginar a vida a partir de outros critérios e perspectivas” (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008: 29). Dessa forma, percebe-se que o incessante processo de questionamento dos princípios que fundamentam as instituições religiosas, somado à reflexão acerca do que, de fato, se pode designar como “verdade”, deságua na reconfiguração das relações entre homem e sagrado, que, se sempre tiveram um caráter singular e se desenvolveram no terreno mais íntimo do ser, adotam uma dinâmica de transformações ainda mais intensa, cujo caráter individual passa a ser bem mais perceptível. Nesse contexto, a “verdade” passa a ser vista como aquilo “que tem sentido para o indivíduo em sua vivência particular” (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008: 142) e faz-se necessário, como observa Rodrigo Portella, o reconhecimento de que

a relação do indivíduo com a doutrina normatizada como verdadeira por uma instituição religiosa e, por outro lado, com sua versão pessoal/vivencial da doutrina oficial é sempre ambivalente e ambígua, pois o indivíduo, em sua capacidade adaptável de sobrevivência, revelará, como sua, a versão oficial ou pessoal de algo conforme as circunstâncias. E, neste ínterim, a pessoa não se vê necessariamente como contraditória ou infiel. Apenas assume a ambiguidade da vida, do ser humano e de suas estratégias de sobrevivência num mundo ao mesmo tempo plural e

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impositivo de modelos, onde o ser humano se acha na dialética do ser ou não ser e do ser sem ser. E [...] fronteiras doutrinais de fé funcionam e têm sentido mais na morfologia e semântica das instituições religiosas do que na vida concreta de muitas pessoas, que percebem religião como um todo, ainda que em formas distintas, mas não necessariamente impossibilitadas de cruzamentos e rejuntes (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008: 143-144).

Ganham visibilidade, nessa conjuntura, os intensos diálogos que se processam entre as diversas tradições religiosas no âmago da consciência humana. Nas veredas mais profundas do ser, “tudo é e não é”, como observa Riobaldo (ROSA, 2001b: 27). Em meio a encruzilhadas, trânsitos e incessantes diálogos, ocorrem os processos de identificação do indivíduo, nos quais, como ressalta Portella (2008: 143- 144), surgem as contradições identitárias resultantes da dinâmica do ser e não ser ou, formulando de outro modo, do ser sem ser. O sujeito que atravessa os conturbados embates ideológicos da modernidade é visivelmente plural, sendo a visibilidade de seu caráter múltiplo a grande marca que o diferencia de seus predecessores. Sua formação identitária se dá mediante a incorporação de valores provenientes das mais variadas culturas, uma vez que no período moderno a comunicação entre os membros das diferentes esferas sociais se intensifica notavelmente, atingindo um patamar nunca antes visto.

Tendo em conta que a formação das identificações culturais se dá, como pontua Stuart Hall, “ao longo do tempo, através de processos inconscientes” (HALL, 2006: 39), é necessário admitir que as contradições apontadas por Portella (2008: 143-144), no que se refere às relações do indivíduo com as várias doutrinas religiosas com as quais entra em contato, são plenamente possíveis na sociedade contemporânea, como também o eram em épocas anteriores. O elemento-chave na discussão proposta pelo autor refere-se à admissão da ambiguidade da vida por parte do sujeito moderno, que de forma muito mais consciente que seus antepassados insere-se na dinâmica do ser e não ser ou do ser sem ser. “Cruzamentos e rejuntes” passam a ser feitos de maneira bem mais cônscia na “vida concreta das pessoas”, uma vez que estas lidam de forma questionadora com as verdades que, como se sabe, a depender da ótica com que são analisadas, podem ser “também mentira, sendo só meio

consolo” 11, como sugerem os versos de um poema de Adélia Prado.

De acordo com Stuart Hall, “as sociedades modernas são [...] sociedades de mudança constante, rápida e permanente”, sendo este o aspecto fundamental que as distingue das chamadas sociedades tradicionais (HALL, 2006: 14). As divergências entre as modernas formas de organização social e as de outrora se justificam, ainda de acordo com o mesmo

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41 estudioso (2006: 25), pelas “transformações associadas à modernidade” que libertaram o indivíduo de “seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas”, pois antes havia a crença de que essas

eram divinamente estabelecidas; não estavam sujeitas, portanto, a mudanças fundamentais. O status, a classificação e a posição de uma pessoa na “grande cadeia do ser” – a ordem secular e divina das coisas – predominavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um indivíduo soberano. O nascimento do “indivíduo soberano”, entre o Humanismo Renascentista do século XVI e o Iluminismo do século XVIII, representou uma ruptura importante com o passado. Alguns argumentam que ele foi o motor que colocou todo o sistema social da “modernidade” em movimento (HALL, 2006: 25).

Do surgimento de um indivíduo soberano, proporcionado pelos movimentos nascidos no cerne da modernidade, resultaria uma redefinição da posição do sujeito em face dos saberes doutrinários que em torno dele gravitam, sendo esta redefinição responsável pela tomada de consciência que faz com que o homem insira-se na já referida dinâmica do ser e não ser. A soberania do indivíduo moderno em relação às doutrinas, antes tidas como divinamente instituídas, amplia o espaço para o estabelecimento de vínculos cada vez mais instáveis com as diferentes tradições religiosas presentes na sociedade. De maneira que as vivências religiosas estabelecidas a partir da modernidade podem ser, em última instância, definidas como singularidades plurais. São singularidades porque se processam no âmbito mais íntimo da vida de cada indivíduo, sendo, por isso mesmo, únicas e irrepetíveis, uma vez que as experiências vividas por cada pessoa não podem ser experimentadas por outrem com a mesma intensidade e nas mesmas condições; e são plurais porque se compõem a partir de diálogos vários entre diversificadas crenças, oriundas de distintas culturas, fazendo-se, em decorrência disso, compósitas.

De acordo com Aldo Terrin, a religiosidade contemporânea é fruto

de uma cultura que viu ruir todos os seus mitos, as ideologias, a verdade e os valores. É uma religiosidade amadurecida por meio de um encontro com as formas expressivas e artísticas em nível non-sense e já se encontra impregnada de “irracional”, de sensações mais do que ideias, de vontade de crer mais do que de convicções, de visões e perspectivas deformadoras e de pluralismos indefinidos mais do que de apegos a tradições, às grandes histórias e aos grandes mitos do passado (TERRIN, 1996: 9- 10).

As vivências religiosas se formulam a partir de contribuições plurais que as fazem singulares. E o caráter ambivalente dessas experiências – ao mesmo tempo singulares e plurais –, leva-nos a concluir, com Rodrigo Portella, que “para se chegar a entender a religião que as pessoas realmente exprimem e vivem, em composições e empréstimos variados, é preciso chegar aos sujeitos religiosos concretos em suas práticas cotidianas e à interpretação

42 que eles fazem delas” (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008:146), pois, como enfatiza o pesquisador,

na modernidade secularizante há o enfraquecimento da religião institucional em sua influência no ordenamento do mundo social e da consciência dos indivíduos e, consequentemente, em sua vida social. Neste sentido “certezas” e plausibilidades passam ao território privado, como descobertas pessoais existenciais. As amarras culturais religiosas, dantes firmes, que procuravam congregar as pessoas em sociedades numa visão coesa da vida, numa plausibilidade consagrada e bem conversada, desgastam-se. As pessoas sentem-se livres para buscar, de forma autônoma, o seu próprio universo de significações diante de um mundo fragmentado. Mundo de mosaicos. Assim, a própria multiplicidade de movimentos religiosos atuais e adesões livres e trânsitos em meio deles mostra essa secularização (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008:159-160).

Em um mundo no qual o sujeito assume diferentes identidades, em diferentes momentos, carregando em si “identidades contraditórias empurrando em diferentes direções” (HALL, 2006: 13), não é, segundo Portella,

a religião institucional que desaparece, mas a possibilidade de uma delas (ou mais de uma) ditar um dossel sagrado para a sociedade e para os indivíduos. O que resta é a presença simultânea de várias agências religiosas, convivendo entre si, acotovelando-se no mercado de sentidos e eficácias simbólicas, num oferecimento de seus produtos que, grosso modo, não serão mais adquiridos de forma permanente e, quando adquiridos, sofrerão as alterações do gosto do freguês (MAGALHÃES; PORTELLA, 2008: 162).

A posição, frequentemente contestatória, assumida pelo sujeito egresso do período moderno, acentua os diálogos entre as tradições religiosas por isentar-lhe das amarras anteriormente impostas pela aceitação de verdades divinas que lhe orientavam a conduta. À medida que as verdades são dessacralizadas, alarga-se o espaço, na consciência do indivíduo, para o diálogo entre os preceitos das diferentes instituições religiosas. Em meio a uma sociedade em que não há mais a total aceitação de verdades universais, aquele que se propõe a analisar as experiências religiosas humanas é obrigado a enfrentar as armadilhas da contradição, pois assume o risco de lidar com um objeto de investigação que é ao mesmo tempo uno e diverso, singular e plural no sentido mais superlativo possível dos dois termos. No “mundo misturado”, desnudado pelos processos de questionamento que se intensificam a partir da modernidade, a vivência religiosa passa a ser, na feliz expressão de Guimarães Rosa, um lugar de “puras misturas” 12.

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O termo “puras misturas”, até onde se sabe, foi encontrado nos escritos de João Guimarães Rosa e utilizado, pioneiramente, por Sandra Vasconcelos, como título para seu estudo sobre a novela “Uma estória de amor”, de autoria do escritor mencionado.

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