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2. EM FOCO, CARTAS DE LIBERDADE (1871-1888)

2.1. SOBRE A FONTE

Neste capítulo analisaremos as práticas de alforrias registradas em 21 livros do cartório do segundo ofício de notas do Juízo de Vitória. As informações baseiam-se em amostra de 155 cartas de liberdade contendo 171 escravos alforriados.233 Foram pesquisadas todas as cartas registradas nos Livros de Notas do Tabelião entre 1870 e 1888, que se encontram em bom estado de preservação até os nossos dias. Vale informar que, por constituir-se em costume adotado e não em obrigação legal,234 as cartas não representam a totalidade das alforrias concedidas na região.

Importa destacar, ainda, que as alforrias documentadas no segundo ofício de notas não dizem respeito apenas aos cativos que residiam com seus senhores na freguesia de Nossa Senhora da

232 Parte dos resultados do capítulo foi publicada nos anais do II Encontro de Pós-Graduandos da Sociedade

Brasileira de Estudos do Oitocentos. Conferir: LAGO, Rafaela Domingos. Um estudo sobre os padrões de alforrias em Vitória, Província do Espírito Santo (1871-1888). Anais do 2º Encontro de Pós-Graduandos da

Sociedade Brasileira de Estudos do Oitocentos. Rio de Janeiro: SEO, 2018. v. 2. p. 1-11. Disponível em: file:///C:/Users/User/Downloads/Texto%20(Rafaela%20Domingos%20Lago)%20revisado%20(2).pdf

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Dos 155 registros, nove envolviam libertação de mais de um escravo, totalizando 171 manumissões.

234 Cf.: GONÇALVES, Andréa Lisly. As margens da liberdade: estudo sobre a prática de alforrias em Minas

Vitória. Alguns papéis com manumissões registrados nos livros do tabelião pertenciam a proprietários de escravos de São João de Cariacica e São José do Queimado.235 Havia também aqueles senhores que vinham de municípios vizinhos, outros mais distantes, ou que enviavam procuradores para representá-los na feitura da carta de liberdade em cartório de notas da cidade de Vitória. Refiro-me aos moradores das regiões de Itapemirim, Vila do Espírito Santo, Vila de Viana, Nova Almeida, Linhares, Guarapari, Serra e Itapirica.236

Assim como encontramos nas cartas de alforrias habitantes de freguesias pertencentes à região central e de vários lugares da Província, Michel Dal Col Costa, em estudo de processos relativos à liberdade que tramitaram na Justiça da Comarca de Vitória entre 1850 e 1888, notou que escravos e senhores de diversos povoados da região central e de outras localidades, que não pertenciam ao município, se dirigiam à Vitória. 237 Em suas palavras, a comarca de Vitória constituía-se em “palco das batalhas legais travadas por escravos, juristas e senhores.”238

O questionamento levantado pelo pesquisador a respeito desse fato é oportuno para o presente estudo, visto que, além de distantes, muitos lugares possuíam comarca e cartório próprios na segunda metade do Oitocentos. A hipótese do historiador é que ao passar pela capital, senhores aproveitavam para utilizar a estrutura da Comarca de Vitória. Em se tratando das cartas de liberdade, acrescentaria outra possibilidade: a de que o escravo morasse em Vitória, numa das propriedades do senhor, que residiria em outro local, ou, seguindo a mesma lógica, fosse o senhor quem habitasse em Vitória. Contudo, tratam-se apenas de suspeitas.

De modo geral, constava numa carta de alforria o nome do proprietário e algumas informações sobre o alforriado, como: nome, idade, cor, estado civil e as condições de liberdade. A quantidade de tais elementos variava. Outros, como filiação e ocupação do cativo, eram menos frequentes.

Apesar da repetição na estrutura das cartas de alforria, o que confere certa padronização aos documentos, a construção textual não impediu que houvesse em suas linhas conteúdos únicos, com registros de situações particulares e vontades ensejadas por situações específicas, nas

235 O município de Vitória era composto pelas freguesias Nossa Senhora da Vitória, São José do Queimado, São

João de Cariacica, São João de Carapina e Santa Leopoldina. (IBGE. Censo do Brasil, 1872).

236 As quantidades de cartas que trata de moradores de outras regiões além do município de Vitória são quatorze:

quatro de Itapemirim, uma de Itapirica, duas da Vila de Viana, uma da Vila da Serra, uma da Vila de Guarapari, duas da Vila de Linhares, duas da Vila de Nova Almeida e uma da Vila do Espírito Santo.

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Havia documentos com alguma relação com a Vila do Espírito Santo, Serra, Cachoeiro de Itapemirim e São Mateus. Cf.: COSTA, 2013.

quais se baseavam determinadas relações entre senhores e escravos. Para Andréa Lisly Gonçalves, em um contexto no qual prevaleciam as noções de direito privado no domínio dos escravos, “curioso seria se o arbítrio do senhor não transparecesse na redação do documento”.239

Os papéis de liberdade contêm, portanto, numerosas informações, tanto quanto os arranjos específicos estabelecidos entre senhores e escravos com vistas à obtenção ou à concessão da alforria. Essas especificidades fazem da fonte, objeto privilegiado para o exame das manumissões.

Sabe-se que as cartas registradas em cartórios objetivavam oficializar a liberdade do escravo. De acordo com Heloísa Maria Teixeira240 esse recurso protegia não só o liberto, mas também o senhor. Para o primeiro, o documento evitava possíveis contestações quanto à vontade do proprietário, principalmente por parte dos herdeiros, além de evitar a escravização do liberto. No caso do senhor, o registro resguardava os termos acertados com o escravo, facilitando a cobrança do cumprimento, quando houvesse, das condições impostas. Em alguns casos, que serão aqui analisados, observamos desde uma forte e explícita preocupação do senhor, pouco comum, em assegurar a manutenção da liberdade de seu ex-escravo, à ação do proprietário, no sentido de registrar, de forma propositalmente enfática, a instabilidade da liberdade concedida por ele, apontando os termos que fariam o forro regressar ao cativeiro e à condição de escravo.

A seleção das liberdades em “tipos” terá como parâmetro estudos recentes de historiadores que tem tratado o tema, com intuito de facilitar o diálogo e as comparações de padrões em algumas regiões do Brasil.241 As alforrias foram agrupadas em três categorias: 1) as alforrias condicionais, que exigiam retribuição, seja sob forma de pagamento em dinheiro, feito de uma só vez ou parceladamente, prestação de serviços, ou, ainda, sob pena de reescravização; 2) as incondicionais, realizadas sem nenhuma condição explícita e 3) as fornecidas pelo estado, pagas após seleção, pelos fundos de emancipação criados para atender as Leis Provinciais e a de 28 de setembro de setembro de 1871, já discutidas no primeiro capítulo da tese.