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Neste capítulo, estamos interessado em compreender como é o uso da fenomenologia na TSMH. Queremos entender, por exemplo, se há uma seleção de princípios fenomenológicos, se há consciência sobre as mudanças nesses mesmos princípios, a partir dos referenciais (as diferenças entre a fenomenologia husserliana e pontyana, por exemplo), enfim, como se dá a organização conceitual da fenomenologia no interior da TSMH. Trata-se de uma espécie de identificação estrutural do uso de argumentos fenomenológicos. Durante esse percurso, estaremos atento às tentativas de aproximação dos princípios fenomenológicos com o contexto da EF.

Portanto, no intuito de mapear a presença da fenomenologia no âmbito da TSMH, compusemos um cenário com: as referências bibliográficas relativas à fenomenologia na/da TSMH; as categorias fenomenológicas mais frequentes na/da TSMH; usos fenomenológicos na/da TSMH. Para apresentar o resultado dessa investida, organizamos o capítulo em três tópicos.

As principais referências fenomenológicas na/da TSMH

Encontramos 83 referências bibliográficas relativas à fenomenologia (presentes em

cada um dos trabalhos que vieram a compor a nossa caracterização da TSMH).46 Diante

desse “quebra-cabeça”, estabelecemos algumas chaves de leitura/interpretação. Procuramos, em primeiro lugar, salientar as principais referências, obras e/ou autores que mais aparecem. “Fenomenologia da percepção”, de Merleau-Ponty, foi referenciada em 15 dos 18 trabalhos analisados, o que dá um total de 83%. Podemos destacar, ainda, o uso de dois dos holandeses que fazem parte das raízes da TSMH, como pudemos acompanhar em Trebels (2006): Jan W. I. Tamboer e Frederic Jacobus Johannes Buytendijk. Os textos “Menschenbilder hinter bewegungsbilder” (As visões de homem subjacentes às visões de movimento), de 1985, “Philosophie der bewegungswissenschaft” (A filosofia do movimento humano), de 1989, e “Sich-bewegen: – ein dialog zwischen mensch und welt” (“Se-movimentar” – um diálogo entre homem e mundo), de 1979, todos de J. Tamboer, foram referenciados, respectivamente, em 10 (55,5%), 9 (50%) e 7 (38%) dos trabalhos analisados. O texto “Allgemeine theorie der menschlichen haltung und bewegung” (Teoria geral da conduta e do movimento humano), de

46 A lista das referências pode ser encontrada na tabela “Obras mais referenciadas”, na sessão de anexos da

1956, de Frederic Jacobus Johannes Buytendijk, foi referenciado em 7 (38%) dos 18 artigos analisados. É necessário salientar a mínima presença, no trabalho de Kunz, de textos dos outros autores que estão, de acordo com Trebels (2006), presentes na raiz da TSMH: Viktor von Weizsäcker, Paul Christian e Carl Christian Friedrich Gordijn. Esses foram referenciados nos trabalhos de Trebels analisados. Se há uma base teórica da TSMH, como é anunciado em Trebels (2006), essa base não é trabalhada teoricamente no Brasil (vale dizer, na obra de Kunz). Entendemos que uma barreira concreta, nesse sentido, é a questão da língua; afinal,

estamos falando de textos escritos em holandês e em alemão.47 Sabemos também que,

enquanto Buytendijk, Christian e Weizsäcker têm suas abordagens (sobre o movimento humano) ligadas ao círculo da “Gestalt”, Gordijn e Tamboer têm suas abordagens radicadas na fenomenologia francesa (principalmente em Merleau-Ponty). Entendemos que a

centralidade de Tamboer48 nos textos de Kunz se deve ao lugar do holandês na TSMH.

Tamboer é discípulo de Gordijn e é a partir dele que há uma espécie (de) síntese de uma Teoria do “se-movimentar” humano, voltada para os aspectos da fenomenologia pontyana e localizada no contexto da EF (nesse caso, holandesa). Tamboer dá prosseguimento à concepção dialógica do movimento humano, elaborada por Gordijn. Kunz nos diz em entrevista (29-11-2010):

O que mais tive aprofundamento mesmo foi a fenomenologia e essas teorias do „se- movimentar‟ que vêm de origem holandesa. Buytendijk foi o primeiro, depois vem Gordijn, Tamboer, principalmente, que são os holandeses que influenciaram. Muitos dos trabalhos dos holandeses não foram traduzidos nem para o alemão. A instituição que trabalhava lá, em Hannover, traduziam os textos para o alemão. Eu tenho textos do Tamboer, que é um dos principais, um dos maiores intelectuais holandeses dos últimos tempos sobre essas teorias. Ele tem uma fantástica tese que ele escreveu, chamava-se „Imagens de corpos subjacentes às imagens do movimento humano‟, ou „Imagens de seres humanos subjacentes às imagens do movimento humano‟. E essa não tem em alemão, só tem em holandês. Mas eu tenho uma tradução ainda em manuscrito, do alemão, que foi o grupo de estudos lá de Hannover que fez. Então, assim a gente teve esse acesso, e infelizmente eu acho que no mundo inteiro essas teorias não são conhecidas.

47

Kunz conheceu esses autores e textos traduzidos do holandês para o alemão. Nem tudo, contudo, está traduzido para o alemão.

48 Em 10 dos 18 trabalhos analisados, houve utilização de conceitos fenomenológicos presentes em

“Menschenbilder hinter bewegungsbilder”, 1985, de Jan W. I. Tamboer. Em 8/18 trabalhos analisados, encontramos conceitos de “Philosophie der bewegungswissenschaft”, de 1989, também de Tamboer. E em 6/18 trabalhos analisados encontramos conceitos de “Philosophie der bewegungswissenschaft”, publicado em 1989, de Tamboer. Quando analisamos as referências pelos autores (e não pelas obras), essa centralidade fica ainda mais visível: Tamboer é referenciado em 15 dos 18 (83,3%) dos trabalhos e há uso dos conceitos fenomenológicos presentes nos textos de Tamboer em todos os 15, com citações e apropriações. Entendemos, que, além do percentual, há um peso teórico das citações de Tamboer nas análises e propostas da TSMH.

Em relação a Merleau-Ponty, sua obra “Fenomenologia da percepção” é muito importante para a TSMH. Essa centralidade já tinha sido declarada pelo próprio Kunz, em entrevista, quando questionado sobre a importância do livro para a TSMH: “Das teorias da fenomenologia que foram utilizadas pelos primeiros holandeses, a base foi Merleau-Ponty só. E não Merleau-Ponty, mas a „Fenomenologia da percepção‟ de Merleau-Ponty”. Também encontramos essa informação em Trebels (2006): “Gordijn apoia-se, basicamente, nos pressupostos da Fenomenologia francesa, principalmente a de Merleau-Ponty (1966) e sua obra “Fenomenologia da Percepção” (TREBELS, 2006, p. 38). Kunz nos diz, inclusive, que uma das principais críticas endereçadas aos autores holandeses, que estão na base na TSMH, dirige-se à restrição à “Fenomenologia da percepção”, de Merleau-Ponty. Nas obras de Kunz, as outras referências relativas à Merleau-Ponty têm ocorrência baixa e quase não há efetivo debate sobre o seu conteúdo. Assim, não podemos dizer que Kunz escapa da crítica dirigida aos autores holandeses que estão na base da TSMH.

A centralidade da obra na TSMH fica ainda mais evidente quando avaliamos em quantos dos trabalhos analisados aparecem conceitos fenomenológicos advindos dessa publicação, que data de 1945: 14/18 (77%). Quando focamos apenas os autores

referenciados,49 essa centralidade fica ainda mais visível: Merleau-Ponty é referenciado em 16

dos 18 (88,8%) trabalhos estudados e o aproveitamento dos conceitos fenomenológicos, a partir dele, se dá em 15 dos 18 (83,3%) artigos de Kunz.

Ainda falando sobre as principais referências bibliográficas na base da TSMH no Brasil, também é interessante notar o que acontece com os seguintes autores: Edmund Husserl, Andreas Heinrich Trebels e Elenor Kunz. Quanto ao terceiro, por razões óbvias, encontramos um alto índice de referência nos trabalhos analisados. Porém, ao mesmo tempo em que constatamos esse alto nível de referência aos seus textos (12 dos 18 trabalhos, o que corresponde a 66,6%), o índice de aproveitamento dos conceitos fenomenológicos é baixo – apenas 4 dos 18 (22,2%) trabalhos se incluem nessa lista. Isso demonstra o pouco trabalho teórico de apresentação dos preceitos fenomenológicos na produção de Kunz. Trebels, por sua vez, é referenciado em 12 dos 18 trabalhos; porém, com a diferença de que, todas as vezes em que foi referenciado, manifestou-se, também, um tratamento mais acurado de conceitos

49 Quanto os autores referenciados, pensamos nas seguintes situações: por algumas vezes, determinado autor é

citado no corpo do texto e não é referenciado devidamente na sessão “Referências bibliográficas”; por outras vezes, as citações feitas à uma obra “x” não dão a devida dimensão à contribuição de um autor “y” no contexto da TSMH. Dizemos isso considerando que o elenco de referências ao autor reúne as citações de diferentes obras, que, por inúmeras ocasiões, são citadas de maneira intermitente.

fenomenológicos. Queremos dizer que há, no caso de Trebels, citação e apropriação de conceitos fenomenológicos.

Quanto à Husserl, registramos quatro de suas obras nas referências dos trabalhos analisados. “Meditações cartesianas” apareceu em quatro trabalhos (22,2%) e teve seus conceitos fenomenológicos aproveitados nesses quatro. Se podemos afirmar que as referências husserlianas estão presentes em poucos trabalhos da TSMH, o mesmo não se pode dizer do aproveitamento dos conceitos fenomenológicos dessas obras: quase sempre que uma das obras de Husserl aparece nas referências, os conceitos fenomenológicos desse livro são utilizados. Se olharmos para a tabela de “Índice de autores referenciados mais vezes” (anexados à dissertação em que este artigo se insere), veremos que os números de Husserl na TSMH sobem: o autor foi referenciado em sete (38%) trabalhos e nesses sete, houve o aproveitamento de seus conceitos fenomenológicos.

Ainda sobre as principais referências e autores, averiguamos as contribuições dos “comentadores” e da comunidade da EF na fundamentação fenomenológica da TSMH. A partir das listagens das principais obras e principais autores, podemos ver que o uso de comentadores na TSMH é baixo. No total, 11 (61%) dos 18 trabalhos analisados não se utilizaram dos recursos dos “comentadores” (apenas 7 trabalhos se utilizaram desse recurso). Quer dizer, não se recorre aos comentadores de Merleau-Ponty para se explicar alguns dos seus conceitos. No que tange à contribuição da comunidade da EF brasileira na fundamentação fenomenológica da TSMH, o uso é ainda menor.

Em suma, não há uma genealogia dos conceitos fenomenológicos dentro da TSMH. Não foram muitas as vezes em que um determinado conceito fenomenológico foi abordado e houve uma manifestação a respeito das raízes desse conceito. Constatamos isso com relação à explicitação das origens de conceitos utilizados nos artigos analisados e também devido ao fato de que, em vários textos, identificamos referências nos corpos das publicações analisadas que não eram devidamente explicitadas na sessão “Referências bibliográficas”. Entendemos que, além de citar de onde vêm os conceitos, há necessidade de explicitar como esses conceitos se sustentam em face aos problemas atinentes à TSMH.

Os principais conceitos e/ou ideias fenomenológicas na/da TSMH

Existe um grupo de conceitos ou ideias que se repetem e compõem o quadro da TSMH no Brasil. “Crítica à ciência e à mecanização do mundo a partir da dicotomia sujeito-objeto” aparece em 12 (66,6%) trabalhos; “Unidade primordial homem-mundo” (Relação homem-

mundo) consta em 14 (77,7%); “Intencionalidade” está presente em 12 (66,6%); “Se- movimentar” (Concepção dialógica do movimento humano) se encontra em 17 (94,4%); “Sentido/significado”, em 15 (83,3%) trabalhos; “Mundo vivido” (Lebenswelt) aparece em 8 (44,4%). Mais do que uma seleção pela “quantificação”, essa é uma seleção “qualitativa”. Muitos dos conceitos ou ideias restantes são complementares a esses que elencamos, por exemplo, “Mútua condicionalidade entre movimento e percepção”, “Movimento concreto” e “Movimento abstrato” em relação à “Se-movimentar” etc. (Esquema 1).