• Nenhum resultado encontrado

3. CECI N’EST PAS UNE ÉDUCATION À L’ENVIRONNEMENT

3.1 Sobre a capacidade incapacitante da compreensão da condição humana

Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; aborrecia-o que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quinze (visto de frente). Seu próprio rosto no espelho, suas próprias mãos, deslumbravam-no todas as vezes.

(Jorge Luis Borges).

Para início de conversa, retomemos a questão da racionalidade, como o fizemos no Capítulo 1 desta tese, mais especificamente em 1.1 Os pressupostos de uma racionalidade alelopática. Sob um aspecto complementar àquele, neste subcapítulo, a racionalidade encontra e justifica parte da abordagem por ser, como é sabido, em geral, uma capacidade do ser humano. Compreendemos que, dotados de racionalidade, tendemos à racionalização do mundo, das coisas, das ideias, dos outros e de nós mesmos. Isto porque, culturalmente somos circunscritos por imprintings, termo utilizado por Morin (2012, p. 272) para explicar os registros matriciais que fazem parte da condição humana: “o imprinting fixa o prescrito e a interdição, o santificado e o maldito, implanta as crenças, ideias, doutrinas, que dispõem da força imperativa da verdade ou da evidência”. Assim, entendemos que o imprinting nada mais é do que o fechamento da racionalidade pela racionalização.

Comumente – e, por vezes, inconscientemente –, usamos as capacidades da racionalidade a partir dos ajustes baseados em parâmetros axiológicos e gnosiológicos pré-estabelecidos por algum imprinting cultural, como ocorre, por exemplo, com a nossa percepção sobre o ser em si das coisas já nomeadas. Para exemplificarmos, basta que resgatemos a menção que fizemos à obra de René Magritte na abertura do terceiro capítulo. Temos aí um exemplo de contestação do imprinting que nos diz, pela representatividade da linguagem presente no símbolo, “o que é um cachimbo”92. Entretanto, há um porém: o imprinting cultural que funda e fundamenta as nossas percepções de mundo não é determinante, ele apenas condiciona a existência humana. Em outras palavras, podemos dizer que a racionalidade e a racionalização da experiência levam-nos tanto ao “comportamento dogmático” (BORNHEIM, 2009) quanto à transgressão deste. E mais: ambas, racionalidade e racionalização, são decorrentes do fato mesmo das experiências que são próprias do viver em sociedade ao mesmo tempo em que comportam uma condição biológica. Queremos dizer que o operar da racionalidade enquanto capacidade humana para a racionalização pode conduzir-nos, igualmente, a certa incapacidade. Logo, no plano ontológico da racionalidade e da racionalização há uma espécie de capacidade incapacitante. Propositalmente, há certo antagonismo em nosso título. Trata-se de um antagonismo complementar, que se retroalimenta tanto para a manutenção de um ou de outro termo quanto para a sua problematização.

Na epígrafe trouxemos a caracterização da personalidade disfórica de Irineu Funes, o memorioso, personagem93 de Jorge Luis Borges (1899-1986) que, ao olhar para cada detalhe, sentir cada emoção produzida pelos objetos e seres à sua volta como se fossem únicas, não as admitindo como uma representação duplicada do já ocorrido, visto, sentido ou conhecido, leva-nos ao extremo do exercício da racionalidade convertido em racionalização. O narrador inominado do conto de Borges (1998, p. 543) nos fala sobre o universo de memórias, sentidos e percepções de Funes:

Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho.

92 De modo geral, a obra de Magritte provoca-nos à problematização do imprinting e da racionalização que decorre deste.

93 No decorrer desta tese, utilizamo-nos de algumas referências literárias, míticas, poéticas e artísticas como tentativa de compreendermos a condição e a existência humana, esforço empreendido também pela literatura, pois dela emergem algumas possibilidades interpretativas sobre a existencialidade humana. Se a tratativa acerca do problema que perseguimos traz consigo a necessidade de uma reflexão ontológica, portanto filosófica, a literatura nos serve de – e atua em nós como – fornecedora da “matéria-prima” do filosofar, pois engendra e faz despertar a reflexão que abrange o plano ôntico, isto é, “do vivido e da experiência” humana (PAVIANI, 2003, p. 551).

Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada às sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entressonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro; nunca havia duvidado, cada reconstrução, porém, já tinha requerido um dia inteiro. [...] Uma circunferência num quadro-negro, um triângulo retângulo, um losango são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo acontecia a Irineu [...] com o fogo mutável e com a inumerável cinza [...]. Não sei quantas estrelas via no céu.

A operação laboriosa da racionalidade de Funes leva-o à possessão dos entes pelo veemente exercício da racionalização. Tal memorização impede-o de penetrar além do ser em si das coisas; seus sentidos e percepções oportunizam que ele penetre apenas no novo. Portanto, ainda que Irineu Funes seja dotado de ampla capacidade de memória, está condicionado por imprintings culturais. Contraditoriamente, é custoso a Funes compreender que o cão “das três e catorze (visto de perfil)” tenha “o mesmo nome que o cão das três e quinze (visto de frente)” (BORGES, 1998, p. 545). Por isso é que o narrador suspeita que o personagem seja, em realidade, incapaz de pensar: “Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos” (BORGES, 1998, p. 545).

Irineu Funes, o memorioso, é dotado de uma capacidade incapacitante. Capacidade para a racionalização das percepções entalhadas na memória; incapacidade para o pensamento sobre o ser das coisas. Mas, se Funes habitasse Macondo, a aldeia dos “Cem anos de solidão”, na obra de Gabriel García Márquez (1927-2014), à época da doença da insônia, tê-lo-iam eleito o guardião da memória, dispensando o trabalho de José Arcádio Buendía, que marcou cada ser e objeto existente com seu nome e respectiva utilidade como forma de resistência à perda coletiva da memória.

[...] marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, caçarola. Foi até curral e marcou os animais e as plantas: vaca, bode, porco, galinha, aipim, inhame, banana. [...] estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que podia chegar o dia em que as coisas seriam reconhecidas pelas suas inscrições, mas ninguém se lembraria sua utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro que pendurou no cachaço da vaca era uma mostra exemplar da forma pela qual os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento: Esta é a vaca, e deve ser ordenhada todas as manhãs para que produza o leite, e o leite deve ser fervido para ser misturado com o café e fazer café com leite (MÁRQUEZ, 2014, p. 55, 56).

Podemos dizer, então, que a racionalização não é um mal a priori, afinal, o que é real necessita de uma identidade comum à qual o ser humano possa se relacionar, algo como uma

identidade universal-consensual. Aliás, é justamente a identidade comum dos objetos que incomodam Funes, tal a sua capacidade de memorizar detalhes. A sua condição ôntica jamais permitiria que procedesse como Aléxis Zorbás, personagem de Nikos Kazantzákis (1883-1957), capaz, a cada dia, de renovar “a virgindade do mundo”. Fitando objetos, fatos e seres cotidianos como se os visse desde um retorno “à sua primitiva fonte misteriosa” – “Zorbás vê todas as coisas, todos os dias, como se fosse pela primeira vez” (KAZANTZÁKIS, 2011, p. 72, 73). Em contrapartida, Funes é capaz de captar cada fração do espaço-tempo e justapô-la como uma memória armazenada em um compartimento que a impede de se misturar a outras memórias, isto é, o cotidiano do grego Zorbás é incongruente com o mundo de Funes. Para Zorbás, é como se a presença dos mais variados seres se renovasse a cada dia como algo inexplorado e desconhecido à sua memória e percepção. Há ainda outro caso, distinto dos anteriores, o de Antoine de Roquentin, personagem de Jean-Paul Sartre, em “A náusea” (2015, p. 111), que embaraçosamente expressa a sua dificuldade em “imaginar o nada!”. Essa dificuldade é a expressão de uma incapacidade por conta da condição de racionalização dada a si, no mundo e ao mundo: Roquentin tem dificuldades para ultrapassar os imprintings aos quais está condicionado.

Para que explicitemos um tanto mais estas questões, Morin (2013, p. 127) nos ajuda na distinção entre racionalidade e racionalização: i) a primeira, “não consegue controlar tudo, uma vez que deixa um lugar essencial ao irracionalizável, ao desconhecido e ao mistério”; ii) a segunda, “é uniformizante, fechada, enclausurante, manipuladora”. Ao passo em que Zorbás parece representar a racionalidade, Funes e Roquentin mostram-se exercendo a racionalização, ainda que o último queira transgredi-la. Assim, concluímos que a racionalização sugere problematização, principalmente quando se petrifica em si mesma e se mostra como um mal a posteriori. Petrificada, a racionalização poderá cercear as capacidades da racionalidade. Eis o jogo e a antinomia da capacidade incapacitante: para a vida em sociedade não podemos abrir mão de alguns imprintings da racionalização, mas não podemos sucumbir a eles sob pena de tornarmo-nos submissos a condições existenciais que se nos são colocadas.

Diante do que nos coloca Morin, reconhecemos o risco que corremos ao tratarmos dos Fundamentos da Educação Ambiental, pois a tarefa de fundamentar é descendente direta do que chamamos de racionalização do mundo. A emergência, que aos poucos se mostra, reside justamente na dialógica complementar dos antagonismos conceituais polarizados pelas lentes do cientificismo. A capacidade incapacitante da compreensão da condição humana não está em polaridades distintas habitadas pela racionalização e a racionalidade: racionalização e

racionalidade são faces da mesma moeda. Entretanto, esta moeda não é de um níquel inflexível, ela é (de)formada por uma mistura de elementos que ora lutam entre si e se repelem, e ora se reorganizam e se unem, fazendo dela algo como uma “moeda sanfona”.

Ainda que, historicamente, a definição de ser humano como “animal racional” tenha sido difundida em amplo aspecto no pensamento ocidental, não estamos a reforçar tal ideia. A dimensão racional do humano não basta para que o assimilemos como tal; é necessário problematizarmos este e outros imprintings da cultura cientificista que pela racionalização da vida reafirma o Homo sapiens degradandis como ser superior aos demais organismos vivos. É válido lembrarmos que o amplo processo do esclarecimento cientificista tem os seus fundamentos aplicados na unidireção da racionalização totalitária (ADORNO e HORKHEIMER, 1985). Nela, não deve habitar a dúvida, o erro, a incerteza, a magia, o diferente, enfim... o irracionalizável. Portanto, a questão que nos importa é, ainda que paradoxalmente, retomar e problematizar os Fundamentos da Educação Ambiental na tentativa da inserção da compreensão da condição e da existência humana como o ponto de partida para um caminho aberto. Mas como fazê-lo se a opção do caminho chegar à unicidade do percurso e nos levar ao descaminho da racionalização? Como trabalhar com os Fundamentos e, ao mesmo tempo, considerar a provocação feita por Michèle Sato (2016, p. 13) sobre “quebrar as vidraças das metanarrativas dominantes que insistem em apagar os diferentes, pasteurizando a vida num único matiz de veracidade”?