• Nenhum resultado encontrado

Sobre a comunicação dos casos ou suspeitas de maus-tratos dirigidos às crianças e aos adolescentes

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) é claro ao demarcar a obrigatoriedade da denúncia, ao Conselho Tutelar, dos casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescentes. Ao longo de seus artigos, o mesmo atribui, mais especificamente, essa responsabilidade ao médico e ao professor (ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche), sendo prevista multa de três a vinte salários de referência nos casos em que a comunicação não seja feita. Entretanto, não é possível encontrar descrito, no Estatuto (Brasil, 1990), os meios previstos para a fiscalização dessas denúncias, nem qualquer especificação a respeito do que se está chamando de maus-tratos.

Carvalho, Barros, Alves e Gurgel (2009) afirmam que, mesmo entre os especialistas e instituições que lidam com os casos, a conceituação dos maus-tratos tem se mostrado

heterogênea. Segundo os autores, essa carência de uniformidade na tipificação dos maus-tratos repercute diretamente na forma de condução dos casos e na determinação das múltiplas necessidades de tratamento. Ao tentarem caracterizar as ocorrências de maus-tratos na delegacia de proteção à criança e ao adolescente em Salvador/BA, esses pesquisadores indicaram a inadequação da categoria, afirmando que “estas instituições utilizam-se das nomenclaturas e tipificações oriundas do universo jurídico, as quais contemplam os maus-tratos dentro do rol de crimes cometidos contra a pessoa, e não uma entidade isolada e complexa em si mesmo” (p.544). O artigo 136 do Código Penal Brasileiro (Brasil, 1940) define, assim, os maus-tratos da seguinte forma:

Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina.

Algumas tentativas de classificação, entretanto, têm sido desenvolvidas. De acordo com Guia de Atuação Frente a Maus-tratos na Infância e na Adolescência da Sociedade Brasileira de Pediatria, SBP (SBP/Fiocruz/MJ, 2001), os maus-tratos podem ser praticados pela omissão, pela supressão ou pela transgressão dos direitos de crianças e adolescentes, definidos por convenções legais ou normas culturais. Ainda conforme o mesmo documento, os maus-tratos podem, classicamente, ser tipificados da seguinte maneira: (1) maus tratos físicos, (2) síndrome de munchausen por procuração, definida como situações nas quais a criança é levada para cuidados médicos devido a sintomas e/ou sinais, inventados ou provocados pelos seus responsáveis, (3) abuso sexual, (4) maus-tratos psicológicos e (5) negligência. Embora traga essa tentativa de classificação, o documento também é claro ao indicar o caráter histórico e cultural que perpassa as definições de violência, tornando-se possível conceber a ampliação que o conceito tem atingido em decorrência da maior conscientização social a respeito do bem-estar da criança e do adolescente, dos seus direitos, e dos impactos que a violência exerce sobre o seu desenvolvimento.

Assis, Deslandes e Santos (2005) afirmam que, no Brasil, a violência contra a criança assume várias faces e nuances, podendo-se dizer que a mesma “se apresenta de forma individual e coletiva, interpessoal ou mediada por estruturas sociais (p.44)”. Para os autores, independente dos termos usados para nomeá-la, a violência poderia ser concebida como toda ação e omissão capaz de provocar lesões, danos, e transtornos ao desenvolvimento integral da criança, envolvendo, desse modo, relações assimétricas e desiguais de poder. Os mesmos pontuam ainda a impossibilidade de esgotar o mapeamento de todas as suas formas de manifestação, haja vista o seu caráter histórico e de contínua construção dos direitos. Neste sentido, Ristum (2004)

afirma que definir a violência significa, antes de tudo, revelar como a mesma é socialmente construída, referindo-se a um sistema de normas sociais e de pensamento específicos.

Na literatura, os maus-tratos dirigidos às crianças e adolescentes, por vezes, aparece identificado à questão da violência doméstica e familiar, vista como as maior responsável pelos casos de violência interpessoal contra a infância e pela vitimização de milhões de crianças todos os anos (Assis, Deslandes & Santos, 2005). Apesar desta consideração, Assis, Deslandes e Santos (2005) assumem que, a despeito da sua relevância, as formas de registro sistemático da violência ainda são escassas. Minayo e Souza (1998) argumentaram, já em 1998, que a dificuldade da mensuração da morbidade por violência pode ser explicada tanto pela escassez de dados e pela imprecisão das informações geradas pelos boletins policiais, quanto pela reduzida visibilidade de determinados agravos e pela multiplicidade de fatores que envolvem o ato violento. Segundo Carvalho et. al (2009), a tímida aproximação à magnitude da ocorrência dos maus-tratos contra crianças e adolescentes no Brasil pode ser explicada também pela presença de estudos parcos e assistemáticos, inclusive do ponto de vista metodológico.

Ao considerar a determinação por lei da denúncia dos casos ou suspeitas de maus-tratos contra crianças e adolescentes no Brasil, Ristum (2010a) assinala que entre o preceito legal e a prática dos profissionais que se deparam com a violência, há ainda uma distância a ser vencida. Tal distância seria evidenciada, por exemplo, pelo desconhecimento social a respeito dos preceitos do ECA (Brasil, 1990), e pela reduzida incidência de notificação de casos de maus- tratos identificados na Escola. De acordo com a autora, são recentes, no país, os esforços para aumentar a notificação desses casos, sendo as estratégias construídas, em sua maior parte destinadas às instituições de saúde e seus profissionais. Como exemplo, é possível citar o documento emitido pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2002), o qual torna compulsória a notificação dos casos de maus-tratos. Neste sentido, o que a chama atenção, é o fato de a Escola raramente ser lembrada como uma instituição importante, de onde pode advir a identificação e a comunicação dos casos.

Em levantamento realizado junto ao Conselho Tutelar e uma Vara da Infância e Juventude do município de São Paulo, Vagostello (2001, citado por Vagostello et. al. 2003) constatou que a proporção de denúncias de maus-tratos advindas da Escola é pequena, quando comparada a outras fontes como hospitais, vizinhos ou parentes das vítimas. Tal dado também foi indicado por outros estudos, como o de Souza, Teixeira e Silva (2003) e Almeida, Santos e Rossi (2006), os quais apontam para a existência de uma confusão de competências por parte das Escolas.

Segundo Vagostello et. al. (2003), frente aos casos de violência doméstica, as Escolas, prioritariamente, têm convocado e orientado os pais das vítimas, e em proporções menores, denunciado aos Conselhos Tutelares. Tal resultado também foi encontrado por Carvalho et. al. (2012). Conforme apresentado nas falas das dirigentes escolares entrevistadas por essas autoras, há presente, na Escola, a crença de que é necessário realizar uma primeira investigação antes da efetivação da denúncia, e de que pode ser possível conduzir e resolver os casos na própria instituição escolar.

De acordo com Vagostello et. al. (2003), dessa forma, as Escolas têm buscado “solucionar um problema de competência judicial da mesma forma através da qual solucionam seus problemas escolares e pedagógicos, ou seja, por meio da convocação e orientação dos pais (p.195)”. Além disso, os autores também apontam os prejuízos que esta ação pode trazer, uma vez que, ao convocar a família, a escola pode estar alertando o agressor para a visibilidade da sua ação, estimulando-o a aprimorar as estratégias de dissimulação, ou a fazer uso maciço da violência para coagir a vítima a se calar. Torna-se, portanto, importante elucidar que não constitui papel da escola a investigação da veracidade das informações ou da suspeita, nem a punição dos agressores. Seu papel restringe-se à identificação dos casos/ suspeitas e à comunicação aos órgãos competentes (Ristum, 2010a).

Como explicação para a atitude equivocada comumente tomada pelas escolas, os autores têm indicado: (1) o pouco conhecimento por parte dos professores, a respeito do Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) e dos sinais da violência (Ristum, 2010a; Vagostello et. al., 2003;); (2) a precariedade ou inexistência das redes de atenção básica às vítimas de violência, e da articulação dos órgãos de denúncia com os serviços de retaguarda (Assis, Deslandes & Santos, 2005); (3) o problema de a violência intrafamiliar ser vista ainda como algo afeito à esfera privada, não havendo uma nítida passagem para o domínio do espaço público e (4) a própria não implicação pessoal, por parte dos professores, na identificação e encaminhamento dos casos. É também neste contexto, que se coloca como questão, neste projeto, a noção de garantia de direitos apresentada pelos professores, uma vez que a mesma pode se traduzir nas práticas de proteção à infância apresentadas pelos mesmos.