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A obra “Espaço e lugar: a perspectiva da experiência”, de Yu-Fu Tuan, publicada no Brasil em 1983 traduzido por Lívia de Oliveira, é uma das grandes referências nesta dissertação. Para o autor:

Experiência é um termo que abrange as diferentes maneiras através das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade. Estas maneiras variam desde os sentidos mais diretos e passivos como o olfato, paladar e tato, até a percepção visual ativa e a maneira indireta de simbolização. (TUAN, 1983, p.09).

Como exposto, a experiência geográfica nos lugares com o Batuque é uma construção da realidade a partir do com-viver com grupos de Congada (FIGURA 3) e Tambu (FIGURA 4) na cidade de Rio Claro/SP e em outras cidades ao longo de 2014-2016. Dessa realidade construída a partir da experiência, com os sentidos humanos e com a simbolização do fenômeno, analisa-se, geograficamente, o Batuque, entre corpos e lugares.

Imergiu da experiência que a relação é existencial: Batuque para lugares e lugares para batuque, manifestados pelos corpos – a partir dos grupos e festas, percebeu-se que na essência o Batuque era o mesmo, mas de acordo com a circunstancialidade alguns elementos eram ressaltados ou diminuídos no ritual. O Batuque de rua, o Batuque na praça, na igreja, no cortejo; a umbigada no clube, no palco, na escola.

Concordando com as ideias expostas por Chaveiro (2014) que dizem respeito a própria concepção fenomenológica de pesquisa, com-viveu-se com grupos e lugares sem a necessidade de julgá-los ou mesmo tentar enquadrá-los em teorias preestabelecidas. À experiência geográfica entre corpos e lugares compete sentir a vida que pulsa no Batuque e perceber a geograficidade do fenômeno:

A relação entre existência e lugar é uma marca do arcabouço existencialista-fenomenologista que passa por Merleau-Ponty, Tuan, Claval. Embora com timbres diferenciados, e nem todos esses autores tratam o assunto pelo prisma geográfico, algo pode ser comum: a ação da percepção, a presença da consciência ou a definição da subjetividade como experiência no lugar envolve o corpo como uma usina da vida. Destaca-se que sentir é apreender o lugar ou dotá-lo de sentidos mais fundo que apenas o julgamento teórico apriorístico. (CHAVEIRO, 2014, p.264).

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Tuan (1983, p.10) afirma que a experiência implica na capacidade de aprender a partir da própria vivência, arriscar-se a enfrentar o novo, a enfrentar o desconhecido e o incerto. Contudo: “Experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele.”, pois para o autor “O dado não pode ser conhecido em sua essência. O que pode ser conhecido é uma realidade que é um constructo da experiência, uma criação do sentimento e pensamento.” Portanto o que se descreve é uma realidade construída, apreendida com a Congada e o Tambu e aqui detalhada. Figura 3: Batuques do “Grupo Folclórico Congada e Tambu de São Benedito rioclarense” em vários lugres: na igreja, na praça, no Centro de Referência à Assistência Social, em interação com outras manifestações (Samba de Bumbo).

Fonte: Acervo da pesquisadora (2015).

Figura 4: Batuques organizados pelo projeto “No terreiro do Tambu” em vários lugres: no clube negro Tamoyo, em um terreiro de uma casa, na interação com outras manifestações da cidade de Rio Claro/SP.

Fonte: <http://terreirosdotambu.com.br>. (2016).

Muito do que seu viu, ouviu, leu, sentiu, ou seja, experienciou pelo corpo, levou à compreensão do fenômeno Batuque a partir do investimento de sentido na experiência, é dela e por ela que os sentidos da pesquisa/pesquisadora vieram a

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tona. Com-vivendo com o Batuque nos grupos e nos lugares se buscou uma 'ciência geográfica fenomenológica', tal como propõe Holzer (2014, p.302):

Devemos então considerar que uma ciência geográfica fenomenológica deve partir do estudo do ser, do corpo que fixa os lugares, a partir dos quais vai se desvelar o mundo, não apenas do indivíduo, mas o ser-em-comum, com os quais, entre outras coisas, compartilhamos todos, como geógrafos – como sugeria Wright e Dardel – do espaço geográfico.

Para este autor, “O objeto da geografia clama pela análise a partir de um aporte fenomenológico que se dirija à 'experiência cotidiana do mundo', ou seja, que a explore como 'experiência geográfica’.” (HOLZER, 2014, p.299). E a experiência geográfica do cotidiano se dá com o corpo. Eu não tenho um corpo, eu sou o corpo, como filosofa Merleau-Ponty (1971; 1999).

Na interpretação de Nóbrega (2008, p.14), a respeito da obra pontyana, “A experiência perceptiva é uma experiência corporal [...]”, pois “[…] Sob o sujeito encarnado, correlacionamos o corpo, o tempo, o outro, a afetividade, o mundo da cultura e das relações sociais.” Neste sentido, corpo e consciência são uno, pois o corpo é o ser e o ser é corpo. O corpo se expressa e se faz no encontro e no limite com os outros e, não sendo apenas, mas também sendo individualizado, o corpo que batuca manifesta seu mundo nos lugares.

Para Tuan (1983, p.100) o corpo humano é a condição para experienciar o mundo, além do que “[…] é impregnado com valores resultantes de funções fisiológicas carregadas de emoção e de experiências sociais íntimas.” O corpo não é um somatório de sentidos e o pensamento o autor da verdade. Associar a análise puramente àquilo que se vê, no sentido ordinário do verbo, e ao pensamento é amputar o importante sentido da experiência perceptiva:

Ver tem o efeito de colocar uma distância entre o eu e objeto. O que vemos está sempre “lá fora”. As coisas muito próximas a nós podem ser manejadas, cheiradas e provadas, mas não podem ser vistas – pelo menos não claramente. Nos momentos íntimos, as pessoas cerram os olhos. Pensar cria distância. [...]. (TUAN, 1983, p.162)

Por isso mesmo, como exposto acima por Tuan (1983), os corpos sentem o Batuque com os pés, com as mãos, com os quadris e isso já é experienciar o fenômeno e colocar-se à disposição para que ele aconteça entre corpos e lugares.

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“As experiências íntimas, quer com pessoas ou coisas, são difíceis de comunicar. As palavras apropriadas são evasivas.” (TUAN, 1983, p.163). Para expressar a experiência é preciso descrever os detalhes do acontecimento, por vezes, é preciso de folhas e mais folhas de textos na tentativa de transmissão daquilo que a experiência apreende pelo corpo em fragmentos de minutos e que o pensamento elabora em instantes.

Porém quando se submete a experiência ao julgamento a priori sobre o fenômeno, cabe à experiência apenas ratificar o que já, anteriormente, fora estabelecido. Já sabendo o que se vai encontrar, tem-se uma hipótese e se faz de tudo para defendê-la, mesmo que, com inverdades ou distorções. Ao contrário disso, deixar-se aberto à experiência pelo corpo é, pois, entregá-lo à percepção, sempre provisória e incompleta. (MERLEAU-PONTY, 1996; NÓBREGA, 2008; TUAN, 1983).

A percepção está relacionada à atitude corpórea. Essa nova compreensão de sensação modifica a noção de percepção proposta pelo pensamento objetivo, fundado no empirismo e no intelectualismo, cuja descrição da percepção ocorre através da causalidade linear estímulo-resposta. Na concepção fenomenológica da percepção, a apreensão do sentido ou dos sentidos se faz pelo corpo, tratando-se de uma expressão criadora, a partir dos diferentes olhares sobre o mundo. (NÓBREGA, 2008, p.142).

Quando da elaboração da pesquisa e das experiências em diversos lugares com e pelo Batuque, muitas ideias foram se modificando, acrescentando-se, ampliando alguns pontos e apagando outros. Cada lugar, um mundo, ora mais visível tal aspecto do Batuque, ora menos. Nos escritos de Merleau-Ponty (1971), em “O visível e o invisível”, o autor encaminha a discussão sobre a mutabilidade, sobretudo na experiência pictórica. Ele argumenta que “[…] cada percepção é mutável e sòmente sòmente provável; isto, se quisermos, não passa de uma opinião [...]”. E, entretanto, é também de se destacar que “[…] as percepções, quando se sucedem, não devem ser tomadas como falsas as anteriores… todas são verdadeiras.” São pois “[...] possibilidades que poderiam ter sido [...]” (MERLEAU- PONTY, 1971, p.40). Por isso, na experiência geográfica aqui descrita, concorda-se que:

35 […] Ao mesmo tempo é verdade que o mundo é o que vemos e que, contudo, precisamos aprender a vê-lo. No sentido de que, em primeiro lugar, é mister nos igualarmos, pelo saber, a essa visão, tomar posse dela, dizer o que é em nós e o que é ver, fazer pois como se nada soubéssemos, como se a êsse respeito tivéssemos que aprender tudo. (MERLEAU-PONTY, 1971, p.16).

Com a experiência nos lugares vieram também as decepções com pessoas e situações. Decepções por tentar, erroneamente, prever e, mesmo, julgar o comportamento humano. Ao se relacionar com pessoas, sujeitos da pesquisa, há de se lidar também com o que lhes é inerente: sentimentos diversos, como a inveja, ambição, egoísmo e tantos outros pontos negativos existenciais na relação conflituosa de egos, hierarquias e gerações. Os lugares são investidos de sentimentos, inclusive esses. O que para uns é lugar de resistência para outros é lugar de exclusão. Na tentativa de não se apegar a aparência do fenômeno e aprender a compreendê-lo na experiência sempre inacabada e mutante, Merleau- Ponty (1971, p.48) propõe que é preciso:

[...] pensar o verdadeiro pelo falso, o positivo pelo negativo, é descrever mais a experiência da des-ilusão, onde justamente aprendemos a conhecer a fragilidade do “real”. Pois quando uma ilusão se dissipa, quando uma aparência irrompe de repente, é sempre em proveito de uma nova aparência que retoma por sua conta a função ontológica da primeira. […] A des-ilusão só é a perda de uma evidência porque é a aquisição de outra evidência. (MERLEAU-PONTY, 1971, p.48).

Junto a Tuan e Merleau-Ponty15, outro autor que dá base à experiência é Dardel (2011, p.06)16. Para ele “[…] a experiência geográfica tão profunda e tão simples, convida o Homem a dar à realidade geográfica um tipo de animação e de fisionomia em que ele revê sua experiência humana, interior ou social.”

15Cronologicamente, a produção intelectual e influência das obras é primeiramente Dardel, seguido por Merleau-Ponty e Tuan (HOLZER, 2014; MARANDOLA JR., 2011), entretanto na dissertação se optou por alinhavar este capítulo ao contrário do tempo histórico pois por, justamente, a ideia de um autor ter alimentado e desdobrado-se no seguinte.

16 “O Homem e a Terra é um típico caso de obra que estava muito à frente de seu tempo, o que resultou numa longa espera para que seus frutos pudessem aparecer. Esquecido durante décadas, mesmo na França, onde foi escrito e publicado (é visto como uma obra fora do context o universitário geográfico da época, que por isso não produziu frutos imediatos), o livro, apesar de ter sido importante no início do projeto humanista da Geografia estadunidense nos anos de 1960 (há referências explícitas e implícitas nos trabalhos iniciais dos pioneiros Yu-Fu Tuan, Anne Buttimer e Edward Relph, pelo menos) […].” (MARANDOLA JR., 201, prefácio, p.XI).

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Na experiência, elucidada por Dardel (2011), uma noção ganha relevância ímpar: geograficidade – um conceito já citado aqui anteriormente.

A geograficidade trata do conteúdo existencial do homem com o espaço terrestre e, na medida em que o homem se aproxima desse espaço, ele se torna “mundo”, a partir da fixação das distâncias e das direções, onde os marcos referenciais são o corpo e a matéria onde ele se apoia, um espaço primitivo que, uma vez apropriado pelo homem, se torna “lugar”. (HOLZER, 2014, p.291).

A obra de Dardel tem sido lida no Brasil no contexto dos estudos humanistas, especialmente por conta de seu conceito fundamental,

geograficidade, o qual se expressa a própria essência geográfica do

ser-e-estar-no-mundo. (MARANDOLA JR., 2011, prefácio, p.XII).

Para Dardel, a essência da ciência geográfica é a geograficidade. A geograficidade é a interpretação da Geografia enquanto uma ciência compreensiva e filosófica – um “pioneirismo quase visionário de Dardel”, explorado em “O Homem e a Terra”. (MARANDOLA JR., 2011, prefácio, p.XII).

Na experiência com o Batuque e os lugares, buscou-se a geograficidade do fenômeno: a relação existencial do ser-e-estar-no-mundo dos batuqueiros que, escolhendo se manifestar entre corpos, tambores e rituais, fazem do espaço o lugar da manifestação, fazendo-se a si mesmos.

Assim sendo, a pesquisa com o Batuque aqui apresentada não pretende ser uma rasa descrição do dado, e sim, uma descrição compreensiva do fenômeno a partir de vivências, emoções, textos, relatos, confrontos. Sentimentos e pensamentos são extremidades de um continuum experiencial e ambos são maneiras de conhecer. (TUAN, 1983).

O fato de ter acompanhado o Batuque em diferentes lugares e em apresentações/festas por diversos motivos (religiosos, aniversários de mestres, lançamento de livros, atos cívicos, rodas de conversas, encontros familiares) levou a uma série de percepções quanto ao fenômeno e sua expressão. Percepções essas elaboradas pelo pensamento. Poder ter um contato mais próximo (FIGURA 5) com os grupos de Congada e Tambu da cidade de Rio Claro enriqueceram a experiência geográfica com emoção, para Tuan (1983, p.09) “As emoções dão colorido a toda experiência humana, incluindo os níveis mais altos do pensamento.”.

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Figura 5: Pesquisadora com câmera na mão e participando do Batuque em Pirapora do

Bom Jesus/SP e família da pesquisadora (filho e marido à esquerda) no desfile cívico em Rio Claro pelo “Grupo Folclórico Congada e Tambu de São Benedito rioclarense”.

Fonte: Acervo da pesquisadora (2015).