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3. A NOÇÃO DE COURAÇA EM ESCRITOS DE WILHELM REICH

3.12 Sobre o manejo da transferência

Para aqueles que trabalham no ramo clínico, não é novidade a importância do manejo da transferência para o êxito terapêutico. O analista encontra-se na delicada posição de receber e trabalhar diretamente com os desejos inconscientes, vivências infantis e seus protótipos, além dos afetos dirigidos para sua pessoa. A transferência ganhou, ao longo do tempo, ampliações e acepções que tornam complicada a tarefa de conceituá-la tão resumidamente. No geral, seria o conjunto de fenômenos que se passam na relação paciente-analista, mais precisamente, tudo aquilo que é transferido do primeiro para o segundo.

Reich destaca a importância da ambivalência da transferência que oscila, basicamente, entre dois pólos: o positivo e o negativo. Portanto, o estabelecimento de uma transferência positiva duradoura figura-se como ―o principal veículo do tratamento analítico‖, dado que ―é a condição prévia mais importante para o estabelecimento daqueles processos que [...] levam enfim à cura‖ (REICH, 1933/2001, p. 125). Desse modo, essa seria uma das tarefas técnicas de grande relevância.

O leitor se aperceberá que nesse texto, a maioria das citações literais da couraça, remetem ao sentido dado em sua concepção, em 1922. O autor levanta uma hipótese – que logo refuta - questionando se é realmente possível o estabelecimento de uma transferência positiva genuína por parte dos pacientes logo no início do tratamento. Inicia o caminho hipotético considerando que as neuroses são resultado de um caráter neurótico e ―que este é caracterizado precisamente por sua couraça narcísica‖ (p. 126). Considera, então, que tal tipo de couraça é de ordem neurótica e enumera três tipos de transferência positiva ilusória. Isso tudo para destacar o fato da inevitável e disfarçada presença da transferência negativa latente, ou seja, na perspectiva do teórico, hostilidades, depreciações, críticas e negatividades para com o analista estão frequentemente encobertas por atitudes positivas como, por exemplo, polidez exagerada e concordância total – discordando

internamente - com tudo aquilo que o analista diz. Essas seriam maneiras inconscientes que minariam a possível influência da figura do analista sobre o paciente.

Ele relata que ―foi precisamente o esforço de provocar uma transferência positiva intensa que me levou a dar tanta atenção à transferência negativa‖ (p. 127). Em sua visão, a transferência negativa latente deve ser tornada consciente desde o começo e que pode ser necessário alguns meses para analisar suas manifestações defensivas, ou a couraça narcísica. O autor aponta que ―a quebra do mecanismo de defesa

narcísico‖ traz ―à superfície as transferências negativas latentes‖ (p. 127,

grifo nosso), deixando evidente a sugestão técnica de se trabalhar o quanto antes com a couraça narcísica. Chama-nos a atenção o uso de um forte verbo: quebrar, mesmo levando em conta a questão da tradução. Consultando a versão alemã, verificamos que sentidos mais brandos também seriam admitidos, tais como: dissolução, desmembramento, desestruturação e decomposição. Quebrar a couraça ou mecanismo de defesa dá sinal de uma necessidade de destruí-lo, o que é diferente de afrouxar, desarticular, ou mesmo desintensificar a couraça a um grau favorável. Percebemos que existe essa tensão dentro do desenvolvimento da noção de couraça proposto por Reich, que pode se tornar um pouco mais problemático pela tradução. Por vezes, deixa a entender que haveria um nível necessário e benéfico de encouraçamento; em outros momentos, a quebra da couraça aparece como um dos objetivos terapêuticos.

O teórico propõe uma cuidadosa diferenciação afirmando que já chegou a considerar as defesas do ego como transferências negativas, porém se corrige dizendo que é ―incorreto chamar de transferência negativa à defesa do ego como tal; ela é, antes, uma reação de defesa narcísica‖ (p. 128, grifo nosso). Dessa maneira, Reich aproxima a noção da armadura narcísica como uma espécie de transferência negativa, visto que operam contra o andamento da análise, visando bloquear intervenções vindas do exterior, buscando manter o caráter cronificado em seus funcionamentos. Para ele, a falha ao se interpretar de forma incompleta atitudes e empenhos amorosos do paciente,

deixando de fora, por exemplo, sua necessidade de ser amado e desapontamentos consequentes dessa frustração, levava a interrompimentos de muitos casos - muitos deles discutidos nos Seminários de Técnica. Essa consideração da couraça narcísica enquanto algo latente, tais quais as transferências negativas, deveriam, segundo o teórico, ser desvendadas rapidamente. Ele pondera que ―apenas quis mostrar como o desdobrar da transferência de acordo com o caráter do paciente nos leva diretamente à questão do isolamento narcísico‖ (p. 131).

Na continuação da discussão sobre as ambivalências do paciente no estabelecimento das transferências positivas e negativas em acordo com o caráter, exemplifica com as neuroses compulsivas - casos esses em que a ambivalência e a dúvida compõem o quadro da neurose. Utiliza o termo couraça num sentido um pouco diferente, mais figurativo. Segundo ele, há que se fazer um trabalho consistente contra tudo aquilo que se opõe à libido objetal, como o narcisismo, sentimentos de culpa e o ódio, provocando assim, um tipo de isolamento dos impulsos ambivalentes. Em sua visão, caso isso não seja realizado, ―todas as interpretações de conteúdos inconscientes perdem a força, se não a eficácia, devido ao muro levantado pela couraça da dúvida‖ (p. 132). Novamente verificamos o uso do muro como metáfora para a couraça, nesse caso específico da neurose compulsiva, uma espécie de proteção neurótica por meio da dúvida compulsiva.

O analista parece ter a tarefa de auxiliar o paciente a desenvolver partes de seu caráter que se encontram infantilizadas, nas quais a libido está fixada patologicamente em estágios precoces do desenvolvimento psicossexual. Para o autor, esse feito deve ser realizado liberando-se ―as energias sádicas e narcísicas, que estão ligadas na couraça de caráter, e afrouxadas as fixações pré-genitais‖ (p. 132) e é no manejo da transferência que tal processo será viabilizado. Nesse longo e árduo trabalho, haverão movimentos que oscilarão entre a melhora no desenvolvimento, a reativação da neurose e seus sintomas e, também, do ―mecanismo de defesa narcísico‖, que ―o analista sempre ataca primeiro [...] e assim traz à luz material infantil cada vez mais profundo‖ (p. 133).

No segundo subtítulo Narcisismo secundário, transferência negativa e

percepção da doença, Reich continua discutindo algumas consequências

prováveis da desarticulação da couraça narcísica. É importante apontar que na tradução para o português encontramos terminologias equivalentes, mas que podem confundir o leitor. Portanto, nos parece que couraça, couraça narcísica, mecanismo de defesa do caráter, mecanismo protetor narcísico e mecanismo de defesa narcísico, servem ao mesmo significado.

Logo no primeiro parágrafo, podemos apontar que o teórico admite uma diferenciação no que diz respeito ao grau de intervenção contra a couraça. Ele advoga que ―o afrouxamento, na verdade a quebra do mecanismo de defesa do caráter, necessária para a liberação da maior quantidade possível de libido, torna o ego temporariamente desamparado‖ (p. 134). É perceptível a direta articulação entre a couraça, o caráter e o ego. Ao se romper tal mecanismo de defesa, libera-se quantidades de energia libidinal que, até então, era narcísica, investida no próprio ego, retida nos traços de caráter. Nessa dissolução da couraça, as formações reativas e ilusões que o ego havia construído para manter-se de pé, entram em colapso provocando, segundo o autor, ―fortes empenhos negativos contra a análise‖ (p. 134). Numa nota de rodapé, acrescenta que lhe parece

muito provável que as objeções levantadas durante a minha discussão da transferência negativa tenham sido provocadas pelo fato de, geralmente, o mecanismo protetor narcísico do paciente não ser muito aprofundado, evitando assim uma violenta transferência de ódio (p. 134).

O então psicanalista dá um tom de contra-argumentação contra aqueles que discordavam de suas teorizações acerca da transferência negativa escondida por trás do mecanismo de defesa narcísico. Parece sugerir que nem todos os analistas teriam coragem, disponibilidade e mesmo estrutura de ego suficientes para lidar com uma alta carga de ódio. Além disso, complementa que tal desamparo do ego requer uma espécie de proteção infantil vinda da

relação com o analista e que esta, mantida pela libido objetal liberada, manterá o paciente no tratamento. Alerta também que ―com a dissolução da couraça, as pulsões recuperam sua intensidade original e então o ego sente-se à mercê deles‖ (p. 134), daí a importância do preparo do analista para dominar bem o manejo transferencial, controlando o ritmo e a intensidade do processo.

Um dos pontos ressaltados pelo teórico nesse procedimento é o fato de que alguns sintomas podem ser exacerbados e angústias intensificadas. Como exemplo, relata que pacientes que ainda não tinham tomado consciência de perturbações sexuais, podem vir a experienciá-las, perdendo temporariamente, a potência eretiva, por exemplo. Nesses casos, pode-se recomendar a abstinência, mas caracteres narcísicos poderão se recusar a tal sugestão ficando, desse modo, ―expostos a essa desagradável experiência‖ (p. 134). Para Reich, ―a descompensação da potência é a indicação mais segura de que a angústia de castração está se tornando uma experiência

afetiva e que a couraça está se dissolvendo‖ (p. 135, grifo do autor). Nesse

trecho, o autor considera o trabalho com a couraça de forma mais branda, algo como um derretimento gradual e não uma quebra brusca e repentina.

Nessa mesma direção, o autor vai explorando o fato de que, em sua perspectiva, ―o aprofundamento da consciência da doença e a intensificação do sentimento de estar doente são o resultado da análise consistente do mecanismo de defesa narcísico e da defesa do ego‖ (p. 135). Reich adverte que a ampliação da consciência de seu próprio quadro neurótico, leva o paciente a exacerbar suas defesas e a dirigir de maneira mais veemente, seu ódio em direção ao analista, o agente perturbador de seu equilíbrio neurótico. No entanto, esse movimento defensivo traz consigo justamente o seu oposto: o paciente traz à tona suas necessidades infantis de proteção, angústias, receios, medos, ódios, dando ao processo analítico um necessário combustível para prosseguir.

Mais adiante, percebemos a preocupação do teórico em dar relevo a alguns aspectos técnicos. Bem como em outros artigos da mesma obra, exemplo do texto Sobre a técnica de interpretação e de análise da resistência

(1927), encontramos recomendações sobre o que é necessário para se analisar um paciente. Para ele, o sucesso do trabalho analítico não depende apenas de uma mera intelectualização, pois não é somente a dissecação intelectual – tal qual aparece na discussão técnica dos casos – que favorecerá o êxito terapêutico. Somado a isso, deve-se levar em conta a compreensão e ação intuitivas. Em suas palavras

é evidente que a capacidade do analista de adotar uma atitude flexível em seu trabalho, de apreender o caso intuitivamente sem se apegar ao conhecimento adquirido intelectualmente, dependerá das condições próprias de seu caráter, assim como a capacidade similar do analisando de se deixar levar é determinada pelo grau em que sua couraça de caráter foi afrouxada (p. 142).

Portanto, o conhecimento teórico é obviamente importante, tanto para que se possa ter parâmetros de trabalho, como para auxiliar a discussão minuciosa dos casos clínicos, além de possibilitar a transmissão didática a principiantes. Fica a impressão de que quanto mais experiente o analista se torna e quanto mais profundamente se submeter à sua análise pessoal, ele poderá lançar mão de outros recursos – intuitivos – em acordo com seu próprio caráter. Na medida em que o trabalho analítico consegue relaxar a couraça de caráter, o paciente também se perceberá mais seguro e confiante em sua relação com o analista permitindo, dessa forma, um aprofundamento da análise, sem necessidade de se defender exageradamente.

Por fim, nos chamou a atenção uma expressão já utilizada por Reich - mais precisamente no artigo Sobre a análise do caráter (1928) - o que justifica a inserção da mesma, apesar de não ser uma literal citação da couraça. O teórico ressalta a importância da responsabilidade do analista e de sua própria análise. O profissional deve sempre levar em conta seu temperamento particular, que não deve ser suprimido e, portanto, em acordo com essa particularidade, estará mais apto a tratar certos tipos de pacientes e não

outros. Na perspectiva reichiana, espera-se que o analista ―atinja uma certa flexibilidade de caráter durante sua análise didática‖ (p. 144). A relevância disso reside no fato de que, para o autor, ―é um erro interpretar a regra geral analítica [...] no sentido de que se deve, sempre e em cada caso, assumir uma atitude de múmia‖ (p. 144), ou seja, aos diferentes caracteres que adentram o consultório, diferentes tratamentos clínicos são dispensados a eles, assentados, é claro, num mesmo arcabouço teórico-técnico, somando-se a isso, elementos essenciais para as especificidades de cada caso. Tal atitude de múmia – ou silêncio e inexpressividade absolutos – criam condições em que ―muitos pacientes acham difícil sair da concha, fato que mais tarde, exige medidas artificiais e não-analíticas‖ (p. 144, grifo do autor).

3.13 A SOLUÇÃO CARACTEROLÓGICA DO CONFLITO SEXUAL