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CAPÍTULO III – A concepção educacional de Santo Tomás de Aquino

3.2. Os textos do autor

3.2.3. Sobre o mestre (De veritate, q 11)

O texto conhecido como tratado Sobre o mestre é a décima primeira questão das questões disputadas Sobre a verdade. De veritate contempla 29 questões independentes, sendo que a primeira delas, a verdade – como tema geral – dá o nome ao conjunto. Esse conjunto de questões foi composto em Paris, entre os anos 1256 e 1259 e a questão 11 mais precisamente, no ano letivo de 1257-8 (LAUAND, 2000).

A questão Sobre o mestre121 é composta de quatro artigos: (1) Se o homem – ou somente Deus – pode ensinar e ser chamado mestre; (2) Se se pode dizer que alguém é mestre de si mesmo; (3) Se um homem pode ser ensinado por um anjo; e (4) Se ensinar é um ato da vida ativa ou da vida contemplativa.

Uma diferença visível entre essa questão disputada e os textos vistos da Suma diz respeito à variedade na quantidade de argumentos: no primeiro artigo da décima primeira questão disputada vêem-se 18 argumentos na primeira série e 6 em sentido contrário; no segundo, são 6 na primeira série e 2 em sentido contrário; no terceiro, 17 argumentos iniciais e 6 em sentido contrário; no quarto, 5 argumentos no primeiro sentido e 2 em sentido contrário. Santo Tomás responde a todos os argumentos iniciais.

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As citações literais do Aquinate neste texto foram extraídas da tradução de Lauand (2000); esta tradução foi a base para o trabalho, por considerá-la mais fluente. Entretanto, na elaboração do trabalho, às vezes, preferiu-se a tradução de Camello (2000) e algumas vezes utilizou-se, como apoio às duas primeiras, a tradução de Van Acker [193-?]. De Lauand, foram utilizados também os estudos introdutórios à tradução, bem como foram utilizadas as notas de Camello e Van Acker. Como nenhuma dessas traduções é bilíngüe, utilizou-se o texto latino (da edição leonina) de uma edição italiana (1992).

O primeiro artigo, Se o homem pode ensinar e ser dito mestre ou se somente Deus, inicia os argumentos iniciais com a hipótese negativa. Santo Tomás responde positivamente à questão e, em sua resposta, valoriza a ação do mestre exterior e também afirma a supremacia divina no processo de conhecimento.

Na construção da resposta, Santo Tomás identifica três pontos de conflito nos argumentos apresentados: edução de formas para o ser, aquisição das virtudes e aquisição dos conhecimentos. Como o exposto na questão 84 da Suma (artigos 3 e 4), o Aquinate fala da impossibilidade de o conhecimento se dar por um agente extrínseco (substância separada) ou por recordação de que é imanente na alma, sem causa exterior (idéias inatas). Segundo o Aquinate, as duas posições carecem de fundamento racional: a primeira exclui as causas próximas, deixando todos os efeitos às causas primeiras. Sobre os primeiros, diz Santo Tomás:

“E com isso ignoram a dinâmica que rege o universo pela articulação de causas concatenadas: a Primeira Causa (Deus) pela excelência de sua bondade confere às outras realidades não só o ser, mas também que possam ser causa” (TOMÁS DE AQUINO, SANTO, De veritate, q. 11, a. 1. c.).

A segunda posição peca quase pelo mesmo erro, uma vez que os agentes exteriores não fazem senão remover obstáculos ao conhecimento.

Em seguida, Santo Tomás sustenta uma via média (aristotélica). Afirma que as formas naturais preexistem na matéria somente em potência, sendo conduzidas ao ato por um agente extrínseco próximo. Este é o caminho do conhecimento e também das virtudes. No caso das virtudes, preexistem inclinações naturais que são levadas a cabo pelo exercício delas mesmas. O caso do conhecimento assemelha-se ao das virtudes:

“Algo de semelhante ocorre também com a aquisição dos conhecimentos: preexistem em nós certas sementes de saber, que são os primeiros conceitos do intelecto, conhecidos ato contínuo mediante as espécies abstraídas das coisas sensíveis pela luz do intelecto agente: quer sejam complexas, como os primeiros princípios, ou não complexas, como o caráter de ente, o caráter de uno e outros similares que o intelecto apreende de imediato. Ora, nesses princípios universais já estão de certo modo contidas, como em razões seminais, todas as suas conseqüências. E quando a mente é conduzida a conhecer em ato as conseqüências particulares que já antes e como que em potência estavam naqueles universais, diz-se que adquiriu conhecimento (TOMÁS DE AQUINO, SANTO, De veritate, q. 11, a. 1. c.).

Em seguida, Santo Tomás fala dos dois modos de algo preexistir nas realidades naturais: o primeiro, como potência ativa completa, quando o princípio intrínseco permite atingir o ato perfeito; e o segundo, como potência passiva, quando o princípio intrínseco não é suficiente. No primeiro caso, o agente externo não faz senão ajudar o agente extrínseco; no segundo caso, “algo preexiste só como potência passiva, então o agente extrínseco é quem principalmente eduz da potência o ato” (TOMÁS DE AQUINO, SANTO, De veritate, q. 11, a. 1, c.).

Com relação ao conhecimento, Santo Tomás afirma que se ele existisse apenas como potência passiva, não seria possível que o homem adquirisse conhecimento por si mesmo. Em seguida, o Aquinate explicita as duas formas de se atingir o conhecimento: quando a razão atinge o conhecimento que não possuía por si (inventio122) ou quando recebe ajuda exterior (disciplina123). Santo Tomás explica esses dois modos em comparação com a cura: ação da natureza e ação da natureza ajudada por remédios:

“Mas nos casos em que se trata conjuntamente de natureza e arte, a arte deve atuar do mesmo modo e valendo-se dos mesmos meios com que atua a natureza: por exemplo, a natureza, em um doente que padece por sofrer frio, restabelece a saúde proporcionando-lhe aquecimento – é precisamente isso o que deve fazer o médico: daí que a arte imite a natureza. E assim, do mesmo modo, no ensino: o professor deve conduzir o aluno124 ao conhecimento do que ele ignorava, seguindo o caminho trilhado por alguém que chega por si mesmo à descoberta do que não conhecia” (TOMÁS DE AQUINO, SANTO, De veritate, q. 11, a. 1, c.).

Em seguida, Santo Tomás explica o processo do conhecimento. No caso da descoberta, a razão chega ao conhecimento do desconhecido aplicando princípios gerais evidentes a determinadas matérias, chegando a conclusões particulares. Quando o mestre ensina o discípulo,

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Inventio é traduzida por alguns como invenção e por outros como descoberta. O texto base para o trabalho com o texto De Magistro, de Lauand, traduz por descoberta, bem como a tradução de Nascimento para o primeiro texto explanado (Como a alma unida ao corpo conhece o que é corporal, que lhe é inferior, ST, Iª, q. 84); enquanto a tradução de Alexandre Correia para a exposição do texto anterior (Se um homem pode ensinar a outro, ST, Iª, q. 117, a.1) opta por invenção.

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Disciplina é traduzida por Lauand como ensino e por Camello como disciplina. Em Santo Tomás, disciplina e

doutrina são aspectos do conhecimento (da ciência): do ponto de vista de quem ensina (o mestre ensina a doutrina) e

do ponto de vista de quem aprende (o discípulo aprende a disciplina).

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Ao falar da relação educativa, Lauand traduz os elementos por professor e aluno. Santo Tomás muitas vezes trata os elementos da relação por um homem e outro homem; outras vezes, trata como doctus e discipulus. Este trabalho opta por tratar os elementos por mestre e discípulo, uma vez que a palavra aluno, enquanto sem luz, descaracteriza a atividade que o Aquinate confere a ele. Nas citações literais traduzidas por Lauand são mantidos os termos do tradutor.

propõe de fora esse processo natural da razão, meio pelo qual instrumentos de ajuda são propostos e o discípulo atinge o conhecimento que ignorava.

“E do mesmo modo que se diz que o médico causa a saúde no doente pela atuação da natureza, também se diz que o professor causa o conhecimento no aluno com a atividade da razão natural do aluno. E é nesse sentido que se diz que um homem ensina a outro e se chama mestre (TOMÁS DE AQUINO, SANTO, De veritate, q. 11, a. 1, c.).

Com isso, Santo Tomás encaminha o final da resposta, afirmando que necessariamente dos princípios evidentes extraem-se as conclusões, pois, em caso diferente, causaria opinião ou fé, não conhecimento. As últimas palavras da resposta evidenciam os limites do mestre exterior na relação educativa:

“Tenha-se em conta, porém, que essa luz da razão, pela qual conhecemos os princípios, foi posta em nós por Deus como uma certa semelhança da Verdade incriada em nós. Daí que, como todo ensino humano depende dessa luz, é claro que é só Deus quem interior e principalmente ensina, do mesmo modo que dizíamos que é a natureza que interior e principalmente cura; no entanto, no sentido que discutimos, pode-se falar propriamente que o homem ensina e cura” (TOMÁS DE AQUINO, SANTO, De veritate, q. 11, a. 1, c, in fine).

Explanada a solução do problema, para o Aquinate, restam algumas observações sobre os argumentos (pró e contra), bem como sobre as respostas aos argumentos iniciais. Os argumentos iniciais são muitos e variados e utilizam explicitamente as autoridades: na Bíblia, em Mateus, Romanos, Jó; Agostinho e Boécio. Os argumentos em sentido contrário contemplam, como autoridades explícitas, a Bíblia, em Paulo, em Timóteo e Mateus; Aristóteles e Agostinho. Este trabalho não pretende estudar cada um dos argumentos, apenas referir-se a eles, na medida em que sejam relevantes às respostas.

Quanto aos argumentos em sentido contrário, interessa explicitar a interpretação tomasiana, ao citar o Evangelho de Mateus, no terceiro argumento; no qual afirma que, embora este tenha dito as palavras de Jesus “Um só é o vosso mestre” como “um só é o vosso pai”, a afirmação não exclui que o homem também o possa ser. Nas palavras de Santo Tomás: “Ora, o fato de que Deus seja pai de todos não exclui que também o homem possa, com verdade, ser chamado pai. E não exclui tampouco que o homem possa, com verdade, ser chamado mestre” (TOMÁS DE AQUINO, SANTO, De veritate, q. 11, a1).

A resposta ao primeiro argumento é fundamental. O argumento assenta-se sobre a usurpação de um atributo divino quanto ao fato de o homem poder ensinar. Mas Santo Tomás responde que o Senhor não proibiu totalmente os discípulos de serem chamados mestres; a proibição diz respeito ao ensino que só a Deus compete: não se deposita a esperança na sabedoria dos homens sem antes consultar, nas coisas ouvidas dos homens, “a verdade divina que fala em nós pela impressão de sua semelhança, pela qual podemos julgar a respeito de todas as coisas” (TOMÁS DE AQUINO, SANTO, De veritate, q. 11, a1, ad 1m).

A resposta ao quarto argumento, fundado sobre a proposição de que o conhecimento intelectual não ter por causa os sinais sensíveis, também interessa:

“4. Dos sinais sensíveis recebidos pelos sentidos, o intelecto recebe os conteúdos [intentio] inteligíveis de que se vale para produzir em si mesmo o conhecimento: daí que a causa próxima da produção do conhecimento não sejam os signos mas a razão que discorre dos princípios para a conclusão, como já dissemos” (TOMÁS DE AQUINO, SANTO, De veritate, q. 11, a1, ad 4m).

A resposta ao oitavo argumento é bastante relevante à elaboração do Aquinate: o argumento baseia-se numa referência a Agostinho, segundo o qual seria necessário que o homem, para ensinar, iluminasse a mente de outro, o que seria falso, uma vez que apenas Deus pode iluminar a mente. Santo Tomás interpreta a posição de Agostinho: “8. Agostinho, quando prova que só Deus ensina, não pretende excluir que o homem ensine exteriormente, mas só quer afirmar que unicamente Deus ensina interiormente” (TOMÁS DE AQUINO, SANTO, De veritate, q. 11, a1, ad 8m).

Após interpretar a posição agostiniana sobre o ensino como uma possibilidade, a resposta ao argumento seguinte (nono) legitima o ensino:

“9. É legítimo afirmar que um homem é verdadeiro professor, que ensina a verdade e que ilumina a mente, não porque infunda a luz da razão natural em outro, mas como que ajudando essa luz da razão para a perfeição do conhecimento, por meio daquilo que propõe exteriormente, tal como diz São Paulo (Ef 3,8): ‘A mim, que sou o ínfimo entre os santos, foi dada esta graça: a de iluminar a todos etc’”( TOMÁS DE AQUINO, SANTO, De veritate, q. 11, a1, ad 8m).

Ao décimo terceiro argumento, também agostiniano, segundo o qual o saber requer a certeza do conhecimento, o Aquinate apresenta claramente os limites do mestre exterior:

“13. Toda a certeza do conhecimento origina-se dos princípios: e, de fato, as conclusões só são conhecidas com certeza quando remetem aos princípios. Daí decorre o fato de que qualquer coisa que é conhecida com certeza dependa da luz interior da razão posta em nós por Deus, com a qual Deus fala em nós, e não de um homem que fala exteriormente , a menos que pelo seu ensino mostre a concatenação entre as conclusões e os princípios: mas mesmo neste caso a certeza procede dos princípios nos quais as conclusões se apóiam” (TOMÁS DE AQUINO, SANTO, De veritate, q. 11, a1, ad 13m).

Ao décimo quinto argumento (também agostiniano: nada, exceto Deus, pode informar a mente do homem), Santo Tomás afirma que este “informar” refere-se à última forma.

Agostinho é muito utilizado na primeira série de argumentos e aparece em um dos argumentos em sentido contrário. Da elaboração tomasiana, em resposta aos argumentos iniciais, é fundamental a interpretação que este oferece às referências agostinianas; assim como exposto na questão 84 da Suma, Santo Tomás adapta o pensamento de Agostinho ao aristotélico, evidenciando sempre que o primeiro fala das causas últimas e não das imediatas.

Quanto às demais repostas, interessam a este trabalho menos como refutação de argumentos iniciais e mais como elaboração da educação para o Aquinate. Rapidamente, é possível dizer, a partir das respostas, que: o conhecimento dos princípios (não dos sinais) produz o conhecimento das conclusões (ad 2m); todo ensino se dá a partir de conhecimentos anteriores (ad 3m); a potencialidade do conhecimento pode ser levada ao ato pela ação de uma virtude criada (ad 5m); o mestre não passa para o discípulo o conhecimento que tem, mas, através do ensino, se produz no discípulo, passando de potência para ato, um conhecimento semelhante ao que há no mestre (ad 6m); o homem ensina a verdade, apenas anunciando externamente, ao passo que Deus ensina interiormente (ad 7m); a sabedoria do homem é dupla (criada e incriada) (ad 10m); as palavras do mestre estão mais próximas de causar o conhecimento do que as realidades sensíveis externas (ad 11m); o mestre “estimula o intelecto a conhecer aquelas coisas que ensina como um motor essencial, que faz o ato da potência” (TOMÁS DE AQUINO, SANTO, De

veritate, q. 11, a1, ad 12m); o homem que ensina exteriormente é de certo modo a causa das

espécies inteligíveis (ad 14m); a ignorância está no intelecto, que pode ser afetado por uma virtude criada (o ensino é possível) (ad 16m); e o discípulo aprende do mestre as conclusões e não os princípios (ad 18m).

Para finalizar a exposição do primeiro artigo, parece relevante transcrever as palavras do Aquinate, em resposta ao décimo sétimo argumento:

“Como já dissemos, a certeza do conhecimento provém só de Deus – que nos deu a luz da razão, pela qual conhecemos os princípios dos quais se origina a certeza do conhecimento – e, no entanto, como vimos, o conhecimento de certo modo é causado em nós também pelo homem” (TOMÁS DE AQUINO, SANTO, De veritate, q. 11, a. 1, ad 17m).

O artigo segundo, se alguém pode ser dito mestre de si mesmo, é bem mais breve: compreende seis argumentos iniciais, assentados na proposição positiva, seguidos de apenas dois argumentos em sentido contrário. A resposta de Santo Tomás para esse artigo é bastante tranqüila; apóia-se em Aristóteles e afirma que o homem pode aprender por invenção, sendo a causa do seu saber; entretanto não pode ser dito mestre de si mesmo, já que é necessário que aquele que ensina tenha a ciência (perfeito ato de conhecimento) que causa no outro, enquanto que aquele que aprende só a tem parcialmente. O magistério implica necessariamente uma posição de superioridade, o que não é possível considerando um homem em relação a si mesmo.

Em seguida, Santo Tomás responde a cada um dos argumentos iniciais. Estes parecem não discutir posições de autoridade, mas, principalmente, discutir implicações da posição tomasiana tomada no primeiro artigo: uma vez que o lume interior é a principal causa do conhecimento, aprender por descoberta parece ser mais relevante e, portanto, o homem pode ser mestre de si mesmo. Seja pelo argumento de que o intelecto agente é a principal causa do conhecimento (1º), que a certeza do conhecimento se dê pelos princípios (2º), que a luz da razão, dada por Deus, permite julgar as coisas (3º) ou outras comparações, Santo Tomás concluiu que não se pode dizer, com propriedade, que um homem seja mestre de si mesmo.

As respostas ao quarto e ao sexto argumentos elucidam, claramente, o papel e a importância do mestre. Quanto à quarta:

“4. Se bem que o modo de aquisição do conhecimento por descoberta seja mais perfeito por parte de quem recebe o conhecimento, pois manifesta uma maior habilidade em conhecer, no entanto, por parte de quem causa o conhecimento, é mais perfeito o que se adquire pelo ensino porque o professor, que explicitamente conhece todo o conteúdo, pode conduzir ao conhecimento de modo mais expedito do que o caminho daquele que por si mesmo se conduz ao conhecimento a partir de princípios gerais” (TOMÁS DE AQUINO, SANTO, De veritate, q. 11, a2, ad 4m).

“O médico cura não porque tem a saúde em ato, mas porque tem o conhecimento da arte médica; já o professor ensina precisamente porque tem o conhecimento em ato. Assim pode causar a saúde em si mesmo quem, não a tendo em ato, tem contudo o conhecimento de sua arte; o que não pode se dar é que alguém tenha o conhecimento em ato e não o tenha para poder ensinar a si mesmo” (TOMÁS DE AQUINO, SANTO,, De veritate, q. 11, a2, ad 6m).

A resposta de Santo Tomás diz muito a respeito de quem pode ser dito mestre: aquele que tem em ato o conhecimento de modo mais perfeito125.

Quanto ao terceiro artigo “Se o homem pode ser ensinado por um anjo”, embora não seja objeto deste trabalho, é relevante, na medida em que Santo Tomás afirmou provir dos sentidos, enquanto matéria da causa próxima, a única possibilidade de conhecimento humano, no estado da vida presente. Ora, o Aquinate precisa defender uma saída para a possibilidade de o anjo ensinar ao homem, uma vez que é teólogo e considera o anjo como uma criatura imaterial: a saída consiste em afirmar a superioridade do anjo em relação ao homem; o anjo pode, imaterialmente, ensinar ao homem de duas maneiras: fortalecer a luz infusa no homem, para que ele consiga ver mais perfeitamente ou formar na imaginação humana algumas espécies que podem se formar pelo estímulo de algum órgão corporal. Afirmando a absoluta distinção entre a natureza angélica (imaterial, substância simples) e a humana (substância composta de corpo e alma) e a superioridade hierárquica do anjo, concebe o ensino angélico totalmente distinto do humano, deixando intacta a elaboração do conhecimento humano.

O quarto e último artigo, Se ensinar é ato da vida ativa ou contemplativa, é de importância única para este trabalho. É ele que cerca mais claramente o século XIII, no que tange à postura dos pregadores no ensino universitário e na pregação. Lembrando que a questão foi disputada no ano letivo de 1257-8, logo após os incidentes entre seculares e mendicantes126, pouco tempo depois das medidas incisivas tomadas pelo papado e apoiadas por São Luís, o artigo pode ser tomado como uma bela defesa tomasiana, quanto ao lugar dos mendicantes na sociedade e, em particular, na universidade de Paris. É um artigo curto, composto por cinco argumentos iniciais, que apóiam o ensino enquanto ato da vida contemplativa; e apenas dois em sentido contrário, que apóiam o ensino como ato da vida ativa. A solução de Santo Tomás não é contrária

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Oliveira, ao discutir a obra De Magistro de Santo Tomás, afirma que a resposta ao sexto argumento do artigo segundo, dá margem à interpretação de que em casos muito específicos, alguém pode ser dito mestre de si. Afirma: “O mestre só pode ensinar porque ele possui em si, em ato, o saber, o conhecimento. Conclui-se disso que só o mestre pode ensinar a si mesmo” (OLIVEIRA, 2005a, p.51).

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à primeira série de argumentos e nem à segunda. Considera-se essencial transcrever toda a solução tomasiana:

“A vida contemplativa e a vida ativa distinguem-se pelo fim e pela matéria. Pois a matéria da vida ativa são as realidades temporais sobre as quais versam os atos humanos; a matéria da vida contemplativa são as essências inteligíveis das coisas, sobre as quais se detém o contemplativo. Essa diversidade de matéria decorre da diversidade de fins, como aliás, acontece nos outros campos: a matéria é determinada segundo a exigência da finalidade. E o fim da vida contemplativa – no que tange a este estudo – é a consideração da verdade, da verdade incriada, de acordo com o modo possível a quem contempla: nesta vida, imperfeitamente; na futura, perfeitamente. Daí que Gregório, em Super Ez. [II hom, 2], diga que ‘a vida contemplativa inicia-se nesta vida para perfazer-se na pátria celeste’. Já o fim da vida ativa é a ação, pela qual nos voltamos para as necessidades do próximo.

Ora, no ato de ensinar encontramos uma dupla matéria, o que se verifica até gramaticalmente pelo fato de que ‘ensinar’ rege um duplo acusativo: ensina-se – uma matéria – a própria realidade de que trata o ensino e ensina-se – segunda matéria – alguém, a quem o conhecimento é transmitido. Em função da primeira matéria, o ato de ensinar é próprio da vida contemplativa; em função da