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1 – Sobre o processo de Desinstitucionalização do Hospital Estadual Teixeira

CAPÍTULO III – METODOLOGIA

III. 1 – Sobre o processo de Desinstitucionalização do Hospital Estadual Teixeira

O município de Carmo está localizado na região serrana do Estado do Rio de Janeiro, a cerca de 200 km da capital, e quase na divisa com Minas Gerais, pelo lado de Além

42 Não se trata de negar a importância dos estudos quantitativos em saúde, uma avaliação que outros estudos

devam realizar, inclusive com a combinação de técnicas quantitativas e qualitativas, acompanhando no tempo o processo de desinstitucionalização que ali se dá.

Paraíba43. Sua população é de aproximadamente 15.000 habitantes. A cidade de Carmo,

fundada no século XIX, preserva um ar bucólico de interior. A praça principal, no alto do vale, é um retângulo cercado por árvores sempre geometricamente bem podadas. Em sua cabeceira, destaca-se, em plano mais elevado, do alto dos degraus cinzentos de pedra, a fachada simétrica e tripartida da matriz de Nossa Senhora do Carmo, onde o granito emoldura as paredes brancas, conferindo a simplicidade austera do estilo colonial tardio.

O Hospital Estadual Teixeira Brandão fica a oito quilômetros do centro da cidade, na estrada que segue até Nova Friburgo, na zona rural. A “Colônia” , como é chamado, ocupa uma área de 449 hectares, substituindo um antigo quartel de montaria do exército. Foi fundada em 16 de novembro de 1947, para ser um asilo psiquiátrico do tipo colônia agrícola, como o Hospital Colônia de Carmo, e em 1948 recebeu o nome do famoso psiquiatra que manteve até a extinção. Sua clientela, do sexo masculino, foi agregando cronicamente pacientes com problemas psiquiátricos das cidades do entorno, que acabavam ficando para sempre, em sua grande maioria não por causa do descontrole dos quadros, mas por abandono familiar, muitas vezes fruto de estigma e de problemas socioeconômicos, que a distância de suas casas e a ausência de uma rede de cuidados extra-hospitalar só fazia corroborar. Muitos vinham transferidos de outras instituições psiquiátricas que eram extintas, ou municipalizadas.

Há 30 anos o HETB era dirigido por um mesmo diretor. Em 2001, por ocasião da visita técnica da Secretaria do Estado de Saúde (SES-RJ) que inicia as ações de reorientação da assistência, possuía 400 leitos cadastrados pelo SUS.

Esta visita técnica incluiu membros da Assessoria de Saúde Mental (ASM), os Superintendentes de Saúde e de Saúde Coletiva e da Vigilância Sanitária da SES-RJ, além do Secretário Municipal de Saúde do Carmo e sua equipe. Como conta Fonseca (2005), em seu artigo sobre a ação da ASM:

“Durante dois dias foi possível estabelecer um perfil preliminar das ações assistenciais prestadas por este estabelecimento. Em linhas gerais, pode-se afirmar que tratava-se de uma instituição asilar típica, com graves distorções assistenciais, próprias deste tipo de modelo. Aliado a este perfil soma-se também uma intensa deterioração de sua capacidade física instalada. A Unidade não atendia aos critérios técnicos contidos nas portarias ministeriais vigentes” (Fonseca, 2004).

A partir desta visita, foi elaborado, sob a coordenação da ASM, o PLANO DE REORIENTAÇÃO DA ASSISTÊNCIA PSIQUIÁTRICA DO HETB, que suspendeu as internações (em princípio temporariamente), implantou um serviço de porta de entrada para as emergências psiquiátricas no hospital geral da cidade (filantrópico), extinguiu os espaços de isolamento de pacientes, e estabeleceu um cronograma de obras emergenciais e da realização de um mapeamento das áreas construídas (que revelou o perfil de funcionários e não funcionários que viviam na área hospitalar, com interferência – de forma geral perniciosa - na dinâmica assistencial) e uma agenda de discussão com a equipe do hospital para discussão coletiva dos novos projetos terapêuticos.

Em abril de 2001, a ASM realizou um censo entre os pacientes do HETB, visando conhecer o perfil da clientela. Foram examinados 220 internos e seus prontuários. Eis, em linhas gerais, as características reveladas44:

- A faixa etária de maior freqüência (30,8%) ficava entre 40 e 49 anos. - 64,3%% estavam internados há mais de 10 anos.

- 62,7% não possuía qualquer tipo de renda.

- Quanto à escolaridade, 52,1% eram analfabetos; 29,8% tinham o primeiro grau incompleto.

- Entre os municípios de origem, apenas 12,9% eram de Carmo. 13,4% vieram do Rio de Janeiro.

- 49,8% não tinham vínculo familiar. Apenas 19,9% possuíam um vínculo estável. - Quanto ao diagnóstico psiquiátrico (CID-X), 45,4% estavam no grupo dos transtornos esquizofrênicos ou esquizofreniformes (F20-F29); seguiam os portadores de retardo mental (F70-F79), com 24,6%; os transtornos ligados ao uso de álcool (16,4%); e os transtornos mentais orgânicos (F00-F09), com 10%.

- Menos da metade (48,9%) permaneciam internados devido ao transtorno mental; 31,2% por situação de precariedade social.

- 47,9% realizavam atividades sistemáticas no dia-a-dia; 35,4% perambulavam a esmo pelo hospital; 8,2% passavam os dias na cama, e 2,9% permaneciam deitados no chão.

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O censo avaliava ainda parâmetros como a fala (61,8% comunicava-se verbalmente de forma clara e inteligível), locomoção (93,6% andava sem dificuldades).

Nos vários itens referentes à autonomia nas atividades da vida diária, verificou-se que a média possuía autonomia, mas necessitava de supervisão. 65% reconheciam o valor do dinheiro sem precisar de orientação. Quanto à socialização, uma média em torno de 60% estabeleciam boa interação interpessoal e vínculos afetivos (por exemplo, apenas 24,3% demonstravam indiferença à presença do outro).

Considerando a adesão às atividades oferecidas no hospital (oficinas, videoteca, atividades esportivas, etc) a média dos não participantes ficava acima dos 50%. Para as atividades externas, a adesão era ainda menor (apenas 18,1% faziam compras sozinhos).

A partir do censo a ASM colocou quatro de seus membros nas supervisões às equipes diárias que foram formadas, iniciando o trabalho de reorientação da assistência. Aquelas foram redivididas em mini-equipes multiprofissionais (nível superior e nível médio), cada uma das quais responsável (referência) para um determinado grupo de pacientes.

Não pretendemos nesta dissertação analisar a intervenção da ASM em sua vertente política ou técnica. Basta registrar que foi um processo tão rico quanto difícil. De muitos embates e encontros. Assinalamos aqui os marcos principais da trajetória política:

Em abril de 2002 é assinado um Termo de Co-gestão entre o Estado do Rio de Janeiro e o Município de Carmo, para viabilizar a proposta de reorientação. A SES criou o Conselho Técnico-Administrativo (CTA), composto de membros das duas instâncias para acompanhar e coordenar a ação. A antiga direção da unidade foi exonerada e substituída por alguns membros do CTA.

Este período durou apenas oito meses. Devido a divergências políticas internas, o município solicita ao Estado o rompimento do convênio. A SES então implanta o Colegiado de Gestão, composto por 10 membros, entre funcionários do HETB (inclusive a nova direção) e membros do nível central da SES (ASM). Dias depois, em dezembro de 2002, o Ministério Público (MP) media a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) pelo Estado e município, definindo ações e responsabilidades e estabelecendo prazos e penalidades. Entre as ações pactuadas, estava a construção de 20 residências terapêuticas, e a cessão, do Estado para o município, dos terrenos onde seriam construídas ou reformadas.

No primeiro semestre de 2003, o PNASH-Psiquiatria visita o HETB e a avaliação o coloca abaixo da pontuação mínima. Adequações imediatas são determinadas, mas a revistoria da comissão do PNASH realizada três meses depois não comprova mudanças. Em 18 de junho de 2003, a Portaria MS n° 150 divulga a desclassificação e determina que “se adotem as medidas necessárias para o descredenciamento da unidade junto ao SUS” (Brasil, 2004).

Frente a isto, o TAC sofre aditamento, estabelecendo novas metas, prazos e responsabilidades, com vistas à extinção da unidade.

A ação da ASM muda então sua direção. Já não se trata de reorientar a assistência e reabrir o HETB (embora com número limitado de leitos para internação), como era o projeto original. A tarefa passa a ser o planejamento do fim do hospital. Isto implica na potencialização das atividades técnicas voltadas para a ressocialização e desospitalização da clientela, com ênfase nos projetos das residências terapêuticas e na preparação da clientela.

Como dissemos, não é o objetivo desta dissertação relatar ou analisar o rico processo que foi a ação de desconstrução do HETB pela ASM. É necessário ressaltar, contudo, o que é, talvez, óbvio: que isto envolveu ao mesmo tempo a construção e estruturação da rede municipal de assistência em SM.

Em todo o processo, a vontade política e a intervenção mediadora do MP foram fundamentais. Mas o que, pensamos, garantiu a continuidade do processo foi a adesão de pessoas, nos vários níveis e instâncias, que acreditaram na proposta e responderam a ela fazendo cada qual a sua parte – e às vezes um pouco mais - para a sua realização. Acima de tudo, entretanto, em nossa avaliação, o que mais surpreendeu foi a resposta dos internos, em termos de crescimento e autonomia, na medida em que se instalavam nos novos dispositivos, suas casas.

Em março de 2005, foi inaugurado um Centro de Convivência (batizado com o nome de Paula Cerqueira, a Assessora de Saúde Mental da SES-RJ que deu início ao processo) em Barra de São Francisco, um distrito rural, próximo ao HETB, onde havia sido inaugurada uma residência terapêutica, sendo ambos os dispositivos posteriormente transferidos para a área urbana da cidade.

Em dezembro de 2005 ocorreu a cerimônia oficial de fechamento do HETB, um momento de celebração do qual participaram políticos, técnicos e ex-pacientes. Na verdade

o que a data marcou foi a saída de todos os pacientes do HETB das enfermarias e sua alocação nas residências terapêuticas, e não a extinção formal da unidade, que ainda hoje está cadastrada no CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde).

O processo de desinstitucionalização do HETB ainda não terminou. Ele caminha – como o foi sempre – com inúmeras dificuldades – no sentido da municipalização total, ao sabor das negociações políticas.

Cerca de 90 pacientes do HETB foram reintegrados às suas famílias, desde o início do processo. Cerca de 153 moram hoje nas residências.