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No início do século XX houve um debate em torno das questões acerca da conformação da saúde pública: deveria ela voltar-se às doenças específicas, enquanto um ramo especializado da medicina, ou deveria dedicar-se às influências das condições sociais, econômicas e ambientais na saúde dos sujeitos? O primeiro enfoque predominou na conformação inicial do campo da saúde pública. Porém, observa-se uma constante tensão entre essas diferentes abordagens ao longo do século XX. Com a criação da OMS em 1948, no contexto pós Segunda Guerra Mundial, ensejou-se uma retomada da dimensão social do processo saúde-doença. No entanto, até os anos 1970 predominou a ênfase nas tecnologias médicas como a principal resposta para os problemas de saúde das populações, em parte devido ao notável êxito da campanha de erradicação da varíola iniciada pela OMS em 1959 e com o último caso da enfermidade observado em 1977 (PELLEGRINI FILHO; BUSS; ESPERIDIÃO, 2014).

Esse debate fomentou o redirecionamento das práticas de saúde que, desde a década de 1970, vêm articulando-se em torno do movimento da promoção da saúde. Durante esses anos o conceito promoção da saúde vem sendo elaborado por diferentes atores técnicos e sociais, em distintas conjunturas e formações sociais (BUSS, 2003; CZERESNIA, 2003).

O movimento da promoção da saúde tem exercido influência na organização do sistema de saúde de diversos países. A partir da realização das conferências internacionais e regionais sobre o tema PS, observa-se uma evolução progressiva, também contraditória, com relação às suas premissas e estratégias. Esses paradoxos originam-se das diversas concepções de PS que podem ser reunidas em dois grandes grupos: i) um que correlaciona ações de promoção da saúde às de prevenção de doenças, equiparando-as quase como sinônimos. Nesse caso, a preocupação central repousa sobre a evitação individual dos chamados “c p t e t s e sc ”, se q e se sc t s e s ( )p ss b l es çã e t s áb t s. A p e c p çã c “v s ável” está l à e e q e s p ble as de s ú e estã q se excl s v e te “ ss c s- ” e “ ete s-pel ” est l e v s pessoas; ii) outro, ao qual me alinho, cuja concepção de saúde é mais ampla, e vai além de aspectos biomédicos, abarcando as dimensões biopsicossociais do sujeito. Essa abordagem pressupõe o envolvimento dos sujeitos na construção de um movimento de luta coletiva por

melhores condições de vida e, sobretudo, por enfrentamento das precariedades estruturais da sociedade, por meio de políticas públicas. Um olhar que deve privilegiar aquilo que muitos t es e e “ ete tes S c s S ú e” ( SS)6

. Em tal perspectiva, as atividades de PS deveriam ser também vetores de politização sobre as comunidades periféricas, sobre sua realidade contextual, voltadas, predominantemente, para as coletividades e para o ambiente que as rodeia (HEIDMANN et al., 2006; PELLEGRINI FILHO; BUSS; ESPERIDIÃO, 2014; VASCONCELOS; SCHMALLER, 2014).

É nessa direção que alguns autores advogam a existência de um amplo, e até paradoxal, leque de ideias acerca da PS, constituindo desde posturas conservadoras até perspectivas críticas. Visto por esse prisma, a PS, de fato, guarda ambivalências que extrapolam a dimensão semântico-conceitual, atingindo e atravessando os critérios que regem contemporaneamente a formulação de políticas Estatais, por exemplo.

Sob a chamada ótica conservadora (ou comportamentalista), a PS seria um meio de direcionar os indivíduos a assumirem a responsabilidade por sua própria saúde ao orientá- los a mudanças comportamentais e de estilo de vida, com a finalidade de prevenir agravos e riscos e, assim, reduzir os gastos com o sistema de saúde. Noutra via, conhecida como abordagem socioambiental ou socioecológica be c p “nova7” p çã s ú e, embora não deixe de advogar a adoção de comportamentos considerados saudáveis, condena estratégias que culpabilizam cada sujeito pelo seu adoecimento e que prescrevem comportamentos ditos adequados em dissonância com o contexto social, econômico e cultural no qual as pessoas estão inseridas. Essa perspectiva cobra mais a presença do Estado na produção da proteção social dos cidadãos, e enfatiza mais a responsabilidade das políticas públicas e das ações intersetoriais governamentais (CASTIEL; VASCONCELLOS-SILVA, 2006).

Todavia, vale frisar que, a fim de promover a saúde da população, a estratégia de política pública não pode ser pensada como uma iniciativa exclusiva do Estado, devendo ser elaborada com os diversos segmentos da sociedade, envolvendo a sociedade civil, os setores públicos e privados. Essa ampla participação da sociedade no processo de formulação de políticas públicas propicia a luta pela causa da saúde com diminuição das iniquidades existentes no acesso a bens e serviços, abarcando as variadas demandas de todos os

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São os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos, psicológicos e comportamentais que influenciam ou não a ocorrência de problemas de saúde na população.

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Segundo Vasconcelos e Schmaller (2014), o jet v “ v ” te p pós t de superar a vertente comportamentalista da promoção da saúde. Para os autores, a nova promoção da saúde defende a concepção ampliada sobre saúde, e importância dos DSS, da intersetorialidade, da participação comunitária, do direito à saúde, da equidade, entre outras.

segmentos sociais (HEIDMANN et al., 2006). Se a população não tiver a oportunidade para participar do planejamento das estratégias de políticas públicas, a consequência disso será a gênese de ações estatais conservadoras, verticalizadas e divorciadas da realidade concreta dos sujeitos.

Ora, a perspectiva conservadora da promoção da saúde não é o melhor caminho, já que apostar somente na mudança de estilo de vida para melhorar a saúde dos coletivos populacionais é paradoxal: como defender mudanças de comportamento em relação à higiene pess l se f e te pess á es t e l x “cé be t ”? P t t , evel -se ser mais eficaz considerarmos a PS na perspectiva crítica que, além de exigir pensar o sujeito como um todo, isto é, em sua integralidade, demanda pensá-lo inserido na comunidade (ALBUQUERQUE; STOTZ, 2004), levando em conta seu território que é vivo, dinâmico e produtor de relações.

Essas concepções de PS encontram eco em grandes conferências internacionais, das quais se destacam a I Conferência Internacional sobre Cuidados Primários em Saúde, realizada em 1978 em Alma Ata (atualmente denominada de Almaty) na República do Cazaquistão (ex República Socialista Soviética), e a I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde realizada em Ottawa no ano de 1986 (STOTZ; ARAUJO, 2004; OLIVEIRA, 2005). Em Alma Ata, embora o encontro não tivesse o nome de promoção da saúde, foi demarcada uma posição política mais intensa, advogando a saúde como direito e o combate às desigualdades socioeconômicas injustas para promover a saúde da população, o que requer ação global de todos os governos para melhorar a saúde de todos os povos. Ou seja, antes de se pensar práticas de promoção da saúde é indispensável o enfrentamento de questões estruturais desfavoráveis à saúde populacional. Em relação à Conferência de Ottawa, a literatura aponta que lá foi formulada uma base ideológica para a promoção da saúde, tornando-se referência fundamental no desenvolvimento das ideias de PS em todo o mundo. É bom frisar que a Conferência de Ottawa ocorreu em um país desenvolvido e, portanto, as ções “p l t c e te c et s” espe t p çã s ú e, c ê f se c let v e e meio ambiente, que supostamente visariam atingir os DSS, tal como abordada na Carta de Ottawa, mostram-se difíceis de implantar/obter em outros contextos periféricos. Nesse sentido, é preciso resgatar a posição política demarcada em Alma Ata a fim de efetivar ações promotoras da saúde populacional.

Nota-se que o movimento da PS se desenvolve com a mudança da concepção acerca da saúde. Nesse sentido, a ampliação do conceito de saúde é essencial para a constituição de um campo de conhecimentos e práticas para a promoção, dada a crise e

limitação do paradigma biomédico para responder ao processo saúde-doença (MARCONDES, 2004). Ressalta-se que o discurso científico biomédico não contempla a significação mais ampla da saúde e do adoecer8, pois a saúde não é objeto que se possa delimitar, nem se traduz em conceito científico. Afinal, a saúde e o adoecer estão relacionados à história dos sujeitos e de suas relações na sociedade, constituindo os modos pelos quais a vida se manifesta. Portanto, saúde e adoecer estão centralmente ligados às experiências singulares e subjetivas dos sujeitos que as vivenciam (CZERESNIA, 2003).

Neste prisma, as práticas promotoras de saúde aqui defendidas necessitam abarcar a concepção ampla de saúde, considerando as dimensões biopsicossociais da pessoa. Deve-se empreender esforços para que a abordagem sobre qualidade de vida possa verdadeiramente contemplar questões como a busca da felicidade, realização de potenciais pessoais e coletivos, vida que valha a pena ser vivida, entre outras questões não resolvidas exclusivamente pelo paradigma biomédico. Esse movimento demanda conhecimentos de diversas áreas da ciência numa perspectiva interdisciplinar, bem como das artes e filosofia, saberes populares e práticas religiosas (MARCONDES, 2004). Trata-se da expansão do horizonte normativo, abarcando a çã e “p jet s e fel c e” , isto é, concepção de vida bem sucedida do sujeito (AYRES, 2004, 2005a, 2005b).

O projeto de felicidade remete à autonomia, entendida não como independência, mas como capacidade de o sujeito lidar com a rede de dependência, na qual ele está imerso, de forma problematizadora e ativa. Sob essa perspectiva, os usuários dos serviços de saúde, por exemplo, são concebidos como sujeitos ativos (daí não classificá-l s c “p c e tes”), pessoas que também têm a contribuir na construção de melhores práticas de saúde e condições de vida, e não como quem deve acatar de forma passiva e alienada as determinações dos profissionais. Essa postura ética nos serviços de saúde colabora para reforçar o sentimento de pertença dos sujeitos à coletividade e impulsiona o sentimento de confiança e solidariedade entre os sujeitos, reforçando o compromisso social e as conquistas compartilhadas para a coletividade (IGLESIAS; DALBELLO-ARAUJO, 2011).

Com base nos argumentos expostos até aqui, a PS te se f c “s ú e pr p e te t ”, propondo abordagens, inclusive de fora do setor saúde, levando em conta, além da dimensão biológica, as dimensões psicológicas e sociais dos sujeitos. O discurso no campo da PS deve ser caracterizado predominante pela integralidade, seja no entendimento dos problemas referentes ao processo saúde-doença, seja nas respostas propostas aos

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Czeresnia (2003) assinala a distância entre o conceito de doença e adoecer. O primeiro se refere à construção mental e o segundo termo diz respeito à experiência de vida.

problemas. Fica patente a necessidade de se trabalhar com o conceito mais amplo e crítico de promoção da saúde a fim de propiciarmos a construção de práticas sociais mais abrangentes para que de fato se promova a saúde (BUSS, 2003).

Torna-se necessário, portanto, desprender as práticas de saúde de sua cultura dominante fortemente tecnicista e normativa. A partir de então, se abre caminho para uma nova cultura capaz de valorizar o protagonismo dos sujeitos (profissionais e usuários do sistema de saúde), reconhecer o saber comum9, incorporar as experiências sociais e as dimensões subjetivas envolvidas no cuidado em saúde, garantindo práticas resolutivas, equânimes e integrais, movimentos relacionados com o cuidado e humanização em saúde, integralidade, acolhimento, escuta e vínculo, conceitos que serão abordados nos próximos subcapítulos. Desse modo, são necessárias reformas profundas do setor sanitário. Essas novas possibilidades para a reforma do setor saúde remetem às formulações acerca da promoção da saúde com suas concepções teórico-conceituais, políticas e ideológicas.