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Sobre o referencial teórico e sua relação com a realidade investigada

O eixo teórico central da presente pesquisa consiste no pensamento de Michel Foucault, mais precisamente as ideias que pertencem à fase arqueológica de sua obra. Assim, o livro que norteia o trabalho é A Arqueologia do Saber, texto referência através do qual se busca, nesta dissertação, desenvolver uma análise do Direito enquanto discurso jurídico, isto é, como formação jurídico-discursiva.

De seu turno, o conceito de Direito enquanto sistema normativo caracterizado por uma estrutura escalonada de normas que direciona sua dinâmica e produção foi extraído do livro Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen. Isso foi feito, porém, não para se empreender

16 Para melhor esclarecer essa delimitação, toma-se como pressuposto conceitual as definições de Kelsen sobre ciência jurídica e Direito. Enquanto este constitui uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento dos homens; aquela busca conhecer e descrever as normas jurídicas que constituem o Direito e as relações constituídas entre elas. Ou seja, o Direito é o objeto de estudo das ciências jurídicas (KELSEN, 2003).

30 uma análise positivista, e sim, trabalhando noutro nível de investigação, para se efetivar uma investigação arqueológica do discurso jurídico; para se mostrar como a ordem jurídica, embora entrecortada por um esquema lógico-normativo, muito detalhadamente descrito por Kelsen no livro supracitado, propaga-se através de um sistema de formação que provoca a dispersão e a fragmentação de seus elementos constitutivos.

A escolha do livro de Kelsen, paradigma do chamado positivismo jurídico, deve-se ao fato de que, conforme Bourdieu, o projeto kelseniano de criar uma teoria pura do Direito constituiu o “limite ultraconsequente” do esforço de todo um corpo de juristas para construir um conjunto de doutrinas, conceitos, métodos e regras completamente independentes dos “constrangimentos” e das pressões sociais, tendo nele (Direito) seu próprio fundamento. Cuida- se, pois, de um texto considerado marco extremo na busca pela criação de uma ciência genuinamente jurídica, elevada ao patamar de campo autônomo do conhecimento, com objeto próprio (a norma) e “purificada” das influências dos demais ramos do saber (economia, política, sociologia). Tem-se no autor alemão, assim, uma referência do denominado formalismo jurídico, por meio do qual se pensa o Direito como um sistema fechado, “cujo desenvolvimento só pode ser compreendido segundo a sua ‘dinâmica interna’” (BOURDIEU, 2001, p. 209), perspectiva que se pretende desconstruir através da análise arqueológica.

Utilizaram-se, ainda, na dissertação, outros textos foucaultianos, que serviram de referência e deram densidade à pesquisa bibliográfica, como “O nascimento da clínica” (essencial para a compreensão do discurso da medicina moderna de base anátomo-clínica, fundamento da concepção biomédica que predomina nos laudos e sentenças analisados), “A microfísica do poder” (dentre outras contribuições, o artigo “Nietzsche, a genealogia e a história” forneceu substratos importantes para se entender a noção de “origem” em Foucault, categoria de linhagem nietzschiana que baliza as ideias do pensador francês desenvolvidas tanto na fase arqueológica quanto na genealógica), “A história da sexualidade” (no qual o autor trabalha seu conceito analítico de poder enquanto correlação móvel de forças) e “Os anormais” (em que se aprofunda o tema da relação entre medicina e Judiciário, abordando a influência dos pareceres psiquiátricos sobre as decisões de processos criminais franceses).

Além disso, no curso da pesquisa, foram utilizados referenciais teóricos que não têm base nas ideias de Foucault, mas que auxiliaram na compreensão da descontinuidade discursiva estudada, porquanto abordavam temas relacionados com suas condições de possibilidade. Nesse sentido, foram incorporados à bibliografia textos de Bresser Pereira sobre a Reforma do Estado; livros que tratavam dos impactos desse discurso reformista sobre o Poder Judiciário, especialmente aqueles que correlacionavam a lógica da eficiência e da celeridade a

31 prejuízos para as garantias do contraditório e da ampla defesa; e textos sobre os modelos biopsicossocial e biomédico. Em alguns casos, as considerações lançadas nesses livros confirmavam as conclusões extraídas dos arquivos e documentos analisados e, portanto, foram tomadas de empréstimo para reforçar as ilações desenvolvidas a partir da investigação arqueológica. Em outros, elas forneciam subsídios para a própria caracterização do problema em evidência, descrevendo o BPC com seus fundamentos normativos e requisitos legais, conceituando o que seriam as perspectivas biomédica e biopsicossocial, caracterizando a reforma do Judiciário, narrando os acontecimentos que a antecederam.

Importante salientar, ainda, que, na interação entre o referencial teórico da pesquisa e a prática singular da realidade existente nos documentos que foram analisados, operou-se uma relação de “revezamento” sempre parcial e fragmentária (FOUCAULT; DELEUZE, 2013). É que uma teoria é sempre local, relativa a um pequeno domínio, elaborada com base na observação de realidades específicas e singulares, motivo pelo que a sua passagem de uma região para outra, a sua penetração em um outro espaço concreto que não seja o que lhe deu ensejo, depende necessariamente de complementações discursivas provenientes dessa nova realidade prática que se pretende teorizar.

Nesse sentido, o pesquisador nunca está diante de uma relação de “semelhança” quando da utilização de uma teoria para a interpretação de um outro domínio fático que não lhe seja o de origem. Não há, portanto, um “encaixe perfeito” entre essas duas dimensões, nem uma “aplicação” ou uma “totalização” de uma sobre a outra. O que há, na verdade, nas análises científicas, é uma recorrência constante a revezamentos entre teoria e prática, de modo que ora se busca supedâneo no discurso genérico e abstrato das ciências, ora se volta, quando da insuficiência deste último, para o recolhimento e sistematização dos acontecimentos múltiplos ocorridos nos domínios particulares das realidades investigadas. Como bem metaforiza Deleuze, “nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro, e é preciso a prática para atravessar este muro” (FOUCAULT; DELEUSE, 2013, p.130).

No caso da presente dissertação, o referencial teórico utilizado foi construído a partir de realidades específicas, bem distintas daquela encontrada na massa documental estudada. Foucault não estudou o Direito como formação discursiva, mas unidades como a psicopatologia, a medicina clínica e a economia política. Não abordou descontinuidades relacionadas à perspectiva biopsicossocial de incapacidade, mas as fragmentações ocorridas nos objetos da psiquiatria, nas formas de enunciação da medicina do século XIX e nos conceitos manejados pela gramática, pela história dos seres vivos e pela análise das riquezas.

32 Portanto, durante o desenrolar da presente pesquisa, deparou-se com uma série de muros, barreiras e lacunas, já que o discurso teórico consubstanciado nas obras do professor do

College de France não foi suficiente para responder à totalidade de questões vislumbradas na

realidade investigada. Esses entraves, todavia, foram superados justamente a partir da prática, isto é, da identificação, da captação e da organização, segundo os pontos de vista do pesquisador, dos fragmentos fáticos existentes no sistema de positividade analisado, isto é, nos manuais de perícias médicas, no lugar institucional do Judiciário, no status de peritos e autores, bem como no feixe de relações peculiares constituídas entre todas essas regras de formação discursiva, as quais se assemelham apenas parcialmente com aquelas delineadas por Foucault.

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