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SOBRE AS CATEGORIAS TRABALHO, TEMPO LIVRE E HOMEM EM MARX: discutindo sua relação com a educação

2.1 Sobre o trabalho em Marx e sua relação com a educação

O eixo do pensamento de Marx e Engels, em matéria de educação, é a proposta de união do ensino com o trabalho. Porém, é preciso esclarecer o que é trabalho sob a ótica marxista, para que se possa melhor compreender suas formulações acerca da educação.

Para iniciar a discussão sobre a categoria trabalho, Engels na sua importante obra “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”, afirma:

Toda riqueza provém do trabalho, asseguram os economistas. E assim o é na realidade: a natureza proporciona os materiais que o trabalho transforma em riqueza. Mas o trabalho é muito mais do que isso é o fundamento da vida humana. Podemos até afirmar que sob determinado aspecto, o trabalho criou o próprio homem (ENGELS, 1990, p. 19).

Nessa passagem de Engels, verifica-se que o estudioso inglês constata que toda riqueza produzida pela humanidade é produto do trabalho humano e, mais ainda, que a

transição para a humanidade é resultado do trabalho.

Nessa mesma direção, Marx (1996), na obra O Capital, escreveu:

Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu próprio domínio. Não se trata aqui das primeiras formas instintivas, animais, de trabalho. O estado em que o trabalhador se apresenta no mercado

como vendedor de sua própria força de trabalho deixou para o fundo dos tempos primitivos o estado em que o trabalho humano não se desfez ainda de sua primeira forma instintiva (MARX, 1996, p. 297).

Dando continuidade a sua análise sobre o processo de trabalho, o autor argumenta:

Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colméias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador e, portanto idealmente (MARX, 1996, pp. 297-298).

Fica evidente, assim, que Marx e Engels reconhecem o trabalho como produtor da vida e da sociabilidade humana. Nesse sentido, o trabalho humaniza e é o criador do próprio homem, constituindo também o núcleo da concepção histórica e social do homem. É importante ressaltar que Marx e Engels enfocam o trabalho na mesma direção, isto é, como humanizador, e, com a mesma importância, trabalho como produtor de toda a riqueza material da humanidade.

Esse processo humanizador configura-se, preponderantemente, quando o trabalho assume o seu caráter ontológico, definido por Sergio Lessa (2007) como a categoria fundante do mundo dos homens, porque, “[...] além de ser a plataforma de todos os atos humanos [...] também atende à necessidade fundante de qualquer sociabilidade: a produção dos meios de produção a partir da natureza” (LESSA, 2007, p 142.).

Ao problematizar o trabalho no seu sentido ontológico, o autor está se referindo à gênese do ser social, a que diferencia o ser humano de outros seres vivos, da “historicidade do ser humano em Marx” (DUARTE, 2004, p.116). Está ligado, portanto, ao ato de produção de sua sobrevivência, em que o homem realiza o seu primeiro ato histórico vital, que garantirá o desenvolvimento de outros atos futuros. Na medida em que o homem assegura a sua existência pelo trabalho, produz os meios de produção e os produtos necessários a sua sobrevivência. Nessa perspectiva é que Lessa (2007) afirma, em relação a esta categoria em Marx, que “a definição de Marx é inequívoca. O trabalho é “um processo entre os homens e a natureza, um processo em que o homem por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza” (MARX apud LESSA, 2007, p.132).

Ao modificar a natureza, o homem modifica-se a si mesmo. A sua subjetividade e as suas necessidades já não são mais as mesmas do processo histórico anterior, como atesta Lessa ao afirmar que,

Diferente do que ocorre na relação da “menor abelha” com seu ambiente, o homem ao converter a natureza nos meios de produção e nos meios de subsistência, não apenas transforma a natureza, mas ‘ao mesmo tempo, modifica sua própria natureza’ de ser social (LESSA, 2007, p.134).

Em suma, a relação homem e natureza, mediada pelo trabalho, é histórica, ou seja, muda no decorrer do espaço-tempo e provoca modificações nos meios de produção, nas forças produtivas, nas relações sociais de produção, na sociabilidade humana e na forma de o homem se relacionar com outros homens e com o mundo material.

Marx demonstrou, e os estudos antropológicos também, que no início da história da humanidade o homem transformou a natureza segundo os seus “objetivos”, ou ainda, segundo as suas necessidades de subsistência.Porém, ao longo do desenvolvimento histórico dos diversos modos de produção e, mais acentuadamente, com o modo de produção capitalista, a relação homem e natureza foi direcionada não mais para o atendimento das necessidades humanas – bem como promoção da qualidade de vida, da liberdade e da emancipação humana – , mas de reprodução do capital, isto é, do aumento da taxa de lucro e da mais-valia.

Ao estudar o trabalho na sociedade capitalista, Marx estabelece uma nítida diferença entre o trabalho, que é a categoria fundante do mundo dos homens, e o trabalho abstrato, representado pela força de trabalho reduzida à mercadoria sob a regência do capital. (LESSA, 2007). Marx demonstra, assim, que no capitalismo convivem essas duas formas de trabalho, com a preponderância atual do trabalho abstrato, ou melhor, o fato de o capital se reproduzir pela apropriação da mais-valia (trabalho abstrato) não cancela o fato de que sem a transformação da natureza nos meios de produção e de subsistência não haveria qualquer acumulação possível do capital.

Entretanto, ao se reproduzir, o sistema capitalista tende a converter o trabalho abstrato, que tem como finalidade a produção da mais-valia, em valor de troca. Dessa forma, busca-se converter toda a transformação da natureza que o homem executou, ao longo da história, em mercadoria e não em valor de uso necessário à

produção da vida humana. Nesta ação do trabalho o homem se aliena, estranha a si mesmo, não reconhece aquilo que ele produziu.

Neste processo de produção de mercadoria para valor de troca, o trabalhador tem que deixar de incorporar prioritariamente as necessidades humanas para atender prioritariamente às do capital.Nestes termos, o trabalhador produz não mais para si, mas para o capital. Como atesta Marx, sobre o operário: “Não basta que produza, em geral ele tem que produzir mais-valia, apenas é produtivo o trabalhador que produz mais-valia para o capitalista” (MARX, 1996, p.446). Neste processo, o homem é privado de seus direitos e por isso se aliena, ou melhor, não controla os objetos que produz, já que a mercadoria passa a adquirir vida independente do poder do trabalhador sobre ela, e antagônica a seus interesses.

A alienação humana16 se aprofundou com o desenvolvimento histórico do capitalismo, que tem como causa mais imediata a divisão do trabalho17. Neste sentido, Nogueira assinala que

Logo ao ver de Marx, o maquinismo aprofunda o processo de separação entre o trabalho de cooperação e o trabalho de execução iniciado com a cooperação simples, com vista a quebrar a autonomia (e o poder) que o controle do saber- fazer relativo ao processo de trabalho conferia ao operário (NOGUEIRA, 1990, p. 99).

No capital, a divisão18 se pauta na fragmentação sistemática do trabalho, em operações limitadas, no interior de cada ofício, formando o trabalhador parcelar.

A divisão originária do trabalho, denominada divisão social do trabalho19, – que em sua origem se pautava na divisão sexual, na idade, ou na força física da

16

Marx admite que a alienação do trabalho, apesar de existir através de toda a história atinge o seu auge no Capitalismo (FROMM, 1970).

17 A divisão social do trabalho na sua forma originária é o modo de distribuir as ocupações, característico

de todas as formas já concebidas de sociedade, dado que é justamente do caráter assumido pelo trabalho quando ele se torna social (isto é, realizado na e pela sociedade). As primeiras formas de divisão do trabalho possuíam como critério as diferenças fisiológicas entre os indivíduos da comunidade, em razão de seu habitat natural, que determina meios de produção de subsistência (logo produtos) diferentes (NOGUEIRA, 1990, p.138).

18

O tema da Divisão do Trabalho atravessa toda a obra de Marx desde os Manuscritos Econômicos Filosóficos até o Capital. (NOGUEIRA, 1990,p 136-137).

19 Nos Manuscritos econômico-filosóficos, o tema da divisão do trabalho é focalizado à luz da

problemática do trabalho alienado. Neles a divisão do trabalho é vista como a forma de que se reveste a atividade produtora do ser humano quando esta atividade – escapando ao controle do produtor – torna-se estranha a ele, em função do caráter alienado do trabalho em sociedade. É A Ideologia alemã, que vai dar um lugar de destaque à questão. Ali a divisão do trabalho é abordada enquanto fator de oposição entre atividades contrárias: o trabalho manual e o trabalho intelectual, a produção e o consumo, o labor e o prazer. Sob os termos de uma divisão do trabalho em geral, o que mais parece preocupar os autores é a separação do trabalho material e o trabalho intelectual. Contudo, o exame da questão só se dará de maneira mais clara e só atingirá a sua forma teórica desenvolvida em O Capital. Esta obra formulará uma

comunidade, portanto, em diferenças fisiológicas – foi apropriada pelo capital que desenvolveu uma outra, à sua imagem e semelhança, denominada por Marx de “divisão capitalista do trabalho”. Sobre essa questão, Nogueira afirma:

Introduzida no período manufatureiro, esta última consiste na divisão sistemática do trabalho, em operações limitadas, no interior de cada ofício. Trata-se do parcelamento do trabalho de fabricação de um produto em múltiplas operações, cada uma executada por um trabalhador. (NOGUEIRA, 1990, p.138).

A divisão do trabalho se apresenta, portanto, também como divisão entre o trabalho manual e o intelectual, “porque aí se dá a possibilidade, ou melhor, a realidade de que a atividade espiritual e a atividade mental, o prazer e o trabalho, a produção e o consumo se apliquem a indivíduos distintos” (MANACORDA, 2007, p.60). Em função desta realidade produzida pelo modo de produção capitalista, Marx defende abolir a divisão do trabalho, que desumaniza o homem, já que todo homem subsumido pela divisão do trabalho parece unilateral e incompleto. É nessa perspectiva que Schaff afirma que “A objetivação da atividade humana só leva ao fenômeno da alienação, sob certas condições: quando o produto do homem ganha uma existência autônoma, independente dele e o homem não é capaz de combatê-lo de maneira consciente, o funcionamento de seus próprios produtos” (SCHAFF apud SILVA; SOARES, 2004, p. 20).

Desse modo, para Marx, diante do trabalho na sociedade capitalista, está colocada a necessidade histórica e imprescindível de desenvolvimento integral do trabalhador através da abolição da especialização. Para tanto, o princípio de articulação escola-trabalho é considerado importante. Coerente com a defesa da sua proposta de conjugação do ensino com o trabalho, Marx afirma que “a formação politécnica, que foi defendida por escritores proletários, deve compensar os inconvenientes resultantes da divisão do trabalho que impede os aprendizes de adquirirem um conhecimento profundo do seu trabalho” (MARX, 1996, p. 111).

Assim, a concepção de trabalho aqui defendida não é a que se transforma em valor de troca usurpado pelo capital, mas o trabalho como produtor de vida, para acabar com a forma de apropriação e divisão do trabalho. Sobre isto, Marx defende que na sociedade capitalista deve acontecer um “fermento revolucionário” (capaz de acirrar distinção entre “divisão social do trabalho” e “divisão capitalista do trabalho” (que Marx também chama de divisão manufatureira do trabalho), e estabelecerá a relação entre essas duas formas de distribuição das atividades de produção. (NOGUEIRA, 1990,p.136-137).

as contradições sociais) cujo termo final seja a supressão da antiga divisão do trabalho (MARX apud NOGUEIRA, 1990).

Contudo, é diante da estrutura da fábrica, do desenvolvimento da tecnologia e da perspectiva apresentada para o trabalho humano, que se torna central no pensamento de Marx a ideia de uma escola constituída não apenas pela tradição da cultura desinteressada, segundo Gramsci,mas também pela cultura tecnológica, inerente ao moderno modo de produção da vida humana.

Sabe-se que de fato o processo educativo articulado ao trabalho não pode, sozinho, subverter as condições sociais e libertar o homem. No entanto, pode constituir- se como elemento que concorra para sua libertação, dado o inevitável condicionamento recíproco intermitente entre escola e sociedade.

Nesta mesma linha de análise de conquista da emancipação por parte da classe trabalhadora, a defesa de Marx para o desenvolvimento de uma educação politécnica tem como objetivo a formação do homem integral que será assegurada com o aumento do tempo livre para todos, conforme destaca Nogueira:

a) A união do ensino com o trabalho como método para elevar a produção e a produtividade materiais cujo corolário seria o aumento do tempo livre para todos;

b) A união do ensino com o trabalho como método de contribuir para supressão da divisão do trabalho cujo corolário seria a realização do homem completo (NOGUEIRA, 1990, pp. 132-136).

Dessa forma, com a implantação dessa concepção de educação, que parte do trabalho como produtor de vida, tem-se como consequência o aumento do tempo livre para todos, já que haveria na escola a produção, e o trabalhador dominaria todo o processo, o que contribuiria para o desenvolvimento da consciência de classe e da luta por mais tempo livre. Tempo livre este que, em Marx, constitui condição para o desenvolvimento intelectual humano.