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Que mundo social e econômico é esse no qual os ilhéus procuram se inserir? Quais pessoas habitavam a região fronteiriça localizada a Oeste do Continente de Rio Grande de São Pedro? O meridional americano, em meados dos setecentos, era uma área em expansão dos domínios lusos, os quais eram requeridos, frequentemente, por castelhanos. Dentro desse mundo em expansão, a freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo era também um universo de relações sociais que se desmembravam nas mais diversas esferas da vida humana, como relações econômicas, políticas, clientelares, espirituais, entre outras.

Uma sociedade em que as relações econômicas e sociais imbricavam-se de tal maneira que tornavam aquele mundo complexo e dinâmico frente os olhos de um observador hodierno. Era um mundo que não seguia por si só uma lógica economicista, isso porque, apesar de ser uma sociedade que conhecia o mercado, o mundo colonial brasileiro não se configurava enquanto uma sociedade de mercado, autorregulada, com o objetivo único de troca e comércio217. Assim, quando se fala em estratégia de inserção socioeconômica, fala-se, sobretudo, de uma realidade em que essas relações estavam sobrepostas em formas nãoeconômicas, como a política, a justiça, o social e o religioso.

Ao analisar o mundo camponês das pregações exorcistas do padre GiovanBattista Chiesa numa comunidade rural do Piemonte italiano do século XVI, Giovanni Levi considerou que aquela era uma sociedade em busca de segurança218. Uma segurança motivada, principalmente, pelo contexto de crise na produção de alimentos, o que causou uma incerteza socioeconômica, originada pela peste negra, juntamente com conjuntura de recentes conflitos na Europa. No entanto, essa não era uma insegurança que paralisava as ações dos sujeitos, mas os colocava em contato direto com estratégias complexas do cotidiano de sobrevivência naquela pequena aldeia localizada no norte da península itálica219.

Sabe-se que nem as Ilhas dos Açores e muito menos a região fronteiriça de Rio Pardo podem ser equiparadas ao mundo rural de Santena. No entanto, acredita-se que o questionamento de Levi, a respeito da busca de segurança por parte dos camponeses, pode ser pensado também para as regiões nas quais os migrantes açorianos foram transladados. Nos Açores, as crises na produção de cereais, os problemas alimentares e a falta de recursos financeiros, bem como os processos relativos à apreensão fundiária, motivaram muitos dos ilhéus a um processo migratório; na América, a fronteira, fosse ela espacial, étnica ou 217 FRAGOSO, 2010, op. cit.

218LEVI, 2000, op. cit. 219Ibidem.

agrária,que Rio Pardo representou durante toda a segunda metade do XVIII, e ainda os conflitos intra-grupo ou com os demais moradores da região,condicionaram esses migrantes a adotar estratégias de inserção na localidade de chegada.

Entende-se que tais contextos não paralisaram a ação dos sujeitos, mas os levaram a pensar em ações de sobrevivência cotidianas, como o deslocamento e a formação de alianças na sociedade de instalação que garantiriam a sobrevivência e o reforço a redes de apoio. Conforme afirma Levi, “O mundo mental no qual teve lugar a pregação de Chiesa era o de umasociedade à procura de segurança. A melhoria econômica era um objetivo subordinado à ampliação e confirmação das relações sociais sobre as quais sefundavam as necessidades de subsistência”220. Isso não significa, no entanto, que essas pessoas pensassem a todo o momento em estratégias e possibilidades de inserção. Significa, antes, que tais sujeitos, nas vivências cotidianas,colocavam expectativas, estabelecendo estratégias para tal.

A busca da segurança está ligada a um contexto de mundo hierárquico e desigual221 de um Antigo Regime nos Trópicos222, acalcanhado em relações sociais tanto verticais quanto horizontais. Dentro de uma noção de sociedade com práticas corporativas, também se encontra presente a ideia de uma justiça distributiva, baseada na compreensão de que cada sujeito seria merecedor, devido seu status e qualidade, àquilo que lhe fosse permitido223. Uma justiça, conforme Levi, que é aplicada em sociedades com um direito o qual é chamado pelo historiador de “débil”, ou seja, “sistemas jurídicos nos quais predomina a jurisprudência sobre a lei, em oposição à ação de juízes com respeito ao caráter central do poder”, este caracterizado como direito forte224. Essas características são aplicáveis às sociedades mediterrâneas, nas quais não há uma ação maior do Estado sobre instituições religiosas225.

Essa justiça distributiva estaria fortemente relacionada aos princípios de equidade, reciprocidade e analogia, sendo uma ideia especialmente vinculada àquela sociedade fortemente desigual e hierárquica226. Levi, a partir dos escritos do cardeal De Lucca, considerou que a ideia de justiça distributiva parecer-se-ia com uma esfera cuja circunferência era regulada pelo centro; logo, mérito e demérito seriam o centro dessa justiça e a medida

220LEVI, 2000,op. cit., p. 105. 221HESPANHA, 2000, op. cit. 222FRAGOSO,2010, op. cit..

223LEVI, Giovanni. Reciprocidade Mediterrânea. In: OLIVEIRA, Monica Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria. Exercícios de Micro-História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.

224Ibidem, p. 51.

225Conforme Levi (op. cit.), considerando-se o contexto europeu de Antigo Regime, apenas a França poderia ser

excluída dessa “área mediterrânea”.

seria a proporção227. Conforme o historiador, “A lei existe, porém, é distinta para todos, segundo as condições e os méritos. Contudo, requer o rigor da proporcionalidade geométrica”228.

As nove ilhas que compõe o arquipélago dos Açores faziam parte desse mundo baseado numa “reciprocidade mediterrânea”. Naquele contexto, os sistemas de concessão de terras, as relações estabelecidas na pia batismal ou resultante de um matrimônio, eram afinidades que obedeciam, também, a noções dessa justiça distributiva, que classificava os sujeitos pelas suas qualidades, criando, assim, as diferenciações hierárquicas. O mundo colonial americano também estava inserido dentro dessa lógica, principalmente em função daqueles advindos da Europa. A diferença encontrada aqui é que aos europeus se juntam os grupos indígenas, residentes americanos e grupos de africanos, roubados de suas respectivas pátrias para a escravização nas Américas229. Esse mundo de relações sociais e econômicas forma a freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo.

A partir do exposto, o capítulo busca averiguar esse mundo no qual os migrantes açorianos estão inseridos, tendo em vista as estruturas sociais e econômicas da freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo. Para tanto, delimitou-se três eixos centrais: os matrimônios, as relações de compadrio e acesso a terra/atividades. Na tentativa de tornar o capítulo mais inteligível, optou-se pela divisão do mesmo em duas partes: a primeira diz respeito às relações sociais estabelecidas pelos migrantes açorianos na freguesia em estudo, utilizando-se dos matrimônios e batismos para a análise central; a segunda, averiguou-se o acesso a terra e as atividades econômicas desenvolvidas pelos migrantes na mesma freguesia, tendo como base a Relação de Moradores que possuíam Campos e Animais no Continente e outros documentos que poderiam indicar a posse da terra.

Como referenciado anteriormente, sabe-se que esse é um mundo no qual as divisões sociais e econômicas não são tão visíveis e, muitas vezes, imbricam-se. De forma geral, buscou-se analisar como os migrantes açorianos inseriram-se nessa localidade e ajudaram, ao mesmo tempo, a construí-la.

227LEVI, Giovanni, op. cit. 228Ibidem, p. 59.