• Nenhum resultado encontrado

Kant utilizou a Sagrada Escritura para servir de pano de fundo à narrativa filosófica que empreenderá, conformando, desta maneira, a reflexão histórica, a filosófica e a religiosa sob uma mesma perspectiva, ou seja, a do progressivo desenvolvimento das disposições da humanidade, para que assim se possa estabelecer uma conjectura que sustente suas hipóteses, e não caia em um relato romancista ou mera ficção. O objetivo de Kant é o de se servir da Bíblia para que a Sagrada Escritura o ajude no preenchimento das lacunas da história conjectural que desenvolveu. O filósofo elegeu o texto sagrado para auxiliá-lo visto que a narrativa bíblica é uma leitura altamente difundida e conhecida por todos, o que presta auxílio na compreensão do leitor de seu ensaio, pois ao utilizar-se dele e de sua imaginação guiada por um fio condutor racional, possibilita ao leitor consultar “as páginas desse documento e, passo a passo, verificar se o caminho assinalado conceitualmente pela Filosofia está em consonância com aquele indicado pela História”112.

Em consequência disso, a história da humanidade, em concordância com a

Sagrada Escritura, segundo Kant, ter-se-ia iniciado pela narrativa imaginativa de uma

“espécie de jardim”, onde se teria “constituído um único casal, para evitar que a guerra surgisse imediatamente entre vários homens vivendo juntos”113. Esta disposição social mínima foi necessária para que a perpetuação do gênero humano se efetivasse – uma vez que se a humanidade fosse composta desde início por inúmeros indivíduos, a relação que eles estabeleceriam seria configurada pelo conflito entre si, o que será desenvolvido mais à frente –; a isto, é acrescido na narrativa kantiana que este jardim “era seguro” e seu “clima era sempre benigno”114, somando desta maneira à uma disposição essencialmente perfeita do casal primordial para que a humanidade pudesse fortalecer suas raízes. Esse casal ter-se- ia mantido neste ambiente benévolo enquanto pôde guiar-se pelo seu instinto, o qual lhes

112 Começo, pp. 14-15. 113 Começo, p. 15 (Gênesis, 2:6). 114 Começo, p. 15.

prescrevia as ações que deveriam realizar, sujeitando-se desta maneira à condição de “ouvinte” da voz da natureza. No tempo em que se mantiveram sob este ordenamento, as relações que estabeleceram foram resultantes do cumprimento de suas necessidades mais essenciais e, por elas, satisfaziam-se tão logo quanto as sentiam. O casal permaneceu sob as disposições instintivas na medida em que não as ainda havia sobrepujado, o que lhes impediu de livremente reger suas vidas, de maneira que, segundo Otfried Höffe, “para Kant, o paraíso significa felicidade sem liberdade”115, tendo em vista que o homem não se preocupava com os possíveis percalços de sua vida em seu meio, porém, não dispunha da liberdade da vontade:

Enquanto o homem inexperiente obedecia à voz da natureza encontrava-se bem. Mas logo a razão começa a instigá-lo e estabelece um paralelo entre o que havia consumido e os dados de outro sentido independente do instinto, a visão talvez, desencadeando uma analogia entre esses dados e as impressões anteriores; ele buscará estender seus conhecimentos relativos aos alimentos além dos limites do instinto. (Começo, p. 17).

O que se deve evidenciar nessa passagem do ensaio kantiano de 1786 é a concepção de que a disposição humana anterior ao despertar das forças da razão corresponde à sua afabilidade116, tendo em vista que as relações estabelecidas eram presididas pela voz do instinto; o que poder-se-ia nomear de sociabilidade passiva. Ora, para Kant, o clamor de Deus é responsável pelo direcionamento da associação exercida entre os membros deste casal no paraíso, o que não os incitava a questionarem sobre a relação que um mantinha com o outro, desta maneira, se pode compreender que esta

sociabilidade passiva era constituída pela complacência ideal, que impedia que a

condescendência se submetesse à incompatibilidade social, que consiste na disputa entre os homens, na busca de alimentos, no acumulo de riquezas e até na promoção social, que visa a honra, o que somente foi possível após o despertar da razão. Se de ambas as partes um mandamento é estabelecido para que sejam afáveis um com o outro, a narratividade – como consta na Sagrada Escritura e na história conjectural de Kant – sobre este casal só poderia ter sido aquela que se relataria uma perpetuação desta disposição original. A temporalidade histórica deste período seria então, uma espécie de sucessão repetitiva do comprazimento das ações humanas, pois eram elas em seu caráter ideal sempre as mesmas.

De acordo com Kant, o homem encontrava-se bem, visto que sua existência era conformada com a complacência de sua disposição exterior e interior, ou seja, as

115

HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant, p. 273.

116

necessidades, com a mesma brevidade que lhe eram apresentadas, eram também sanadas; assim, enquanto o instinto o guiava, não precisava questioná-lo, pois não lhe era viável neste estágio a possibilidade de deliberar sobre a realização dessa atitude. O casal que contemplava sua existência em seu jardim, retirava dele tudo o que precisava para viver e, sem que necessitasse de algo para além dele, conformou-se analogamente também a não aprazer nada que ultrapassasse sua condição interior. Estes dois limites foram estabelecidos reciprocamente, pois a conformação de ambos não seria apta a uma mudança se, de certa maneira, esta não ocorresse também exteriormente, assim como o meio em que o casal primordial vivia não poderia transformar-se, caso o agente responsável por essa ação não a empreendesse, ainda que a vontade de Deus pudesse agir sobre o gênero humano, Ele preferiu que os homens, por meio da razão, realizassem essa passagem sozinhos, para que efetivassem por ela sua liberdade.

A condição disposta em uma conformação natural original permaneceria a mesma até que ela fosse alterada e se tornasse outra e, posterior a isso, pudesse elencar novos meios para se efetivar na sua nova configuração a assumir, de maneira que os meios para que esta transformação ocorresse na história da humanidade, fosse a própria relação que a razão estabeleceu consigo mesma, ou seja, a conscientização de sua potencialidade. Caso a razão fosse impelida exteriormente a realizar a passagem do estado rude ao jurídico, o homem não seria essencialmente livre, mas guiado por uma força divina, que o regeria em sua vida. Segundo Kant, como vimos anteriormente, a natureza quis que o homem tirasse inteiramente de si tudo o que ultrapassa a ordenação mecânica de sua existência animal117, para que se compreendesse racional e livre. Para o filósofo, o abandono do estado rude teve início sob a seguinte perspectiva:

Supondo que a simples visão de um fruto, por analogia com a lembrança de outros anteriormente degustados, fora o motivo da tentação; que a isto se juntara, ainda, o exemplo dado por algum animal cuja natureza fora adequada ao consumo daquele fruto, nocivo, ao contrário, para o homem, e que, neste último, por conseguinte, um instinto natural tenha agido em vista de uma repulsão, isso pôde, dessa forma, já fornecer à razão a primeira oportunidade para se contrapor a voz da natureza, e, apesar da oposição desta, permitir a primeira tentativa de uma livre escolha. (Começo, p. 18 [Gênesis, 3:1]).

De acordo com Kant, em um certo momento a razão pôde se posicionar sobre os dados provindos dos sentidos enquanto os dispunha com aqueles emanados anteriormente e, então, relacionar os diversos aspectos de ambos sob um mesmo pensamento, podendo assim estabelecer suas diferenças e semelhanças recíprocas e distinguir, consequentemente,

117

a especificidade de cada um. Por meio dessa iniciativa o homem tornou-se cônscio de que poderia, através da razão, elaborar análises sobre seu exterior. Quando, deste modo, o homem ergueu-se sobre os sentidos, num primeiro momento, transformou a relação que mantinha com as percepções provindas deles, pois agora estavam submetidos à análise de sua razão e, em seguida, pôde iniciar a compreensão dos aspectos desta força, visto que havia fundado nessa análise a sua livre escolha. Ainda em conformidade com o argumento kantiano, após provar dos frutos da razão, o homem percebeu a inevitabilidade de sua racionalidade e não pôde mais compreender-se sob os grilhões do instinto, estando então com os olhos abertos perante ela118, teve que arcar com a responsabilidade do que agora via à sua frente e, desta maneira, se conscientizar das diferenças que devia estabelecer entre sua vida anterior ao despertar da razão e sua presente perspectiva racional. Sobre esse aspecto, assevera Marco Zingano que “a experiência da recusa é seu passo decisivo, pois descobre que a razão não é um instinto mais forte ou aperfeiçoado, mas é outro cujo primeiro conteúdo é a recusa do sensível”119, que de acordo com Kant, por exemplo, foi responsável por conduzir “os homens dos estímulos puramente sensuais aos estímulos ideias”120.

Desta maneira, segundo Kant, a razão tomou a frente na vida destes homens, alterando a disposição anterior que era regida somente pelo instinto, podendo assim se comportar autonomamente perante sua nova conformação. Por meio desta passagem, a razão pôde, com o auxílio da imaginação, provocar de modo artificial novos desejos, pois dispunha da habilidade de reelaborar os desejos naturais em vista das associações que fez com os dados que obtinha em diversas situações; por consequência, nos termos de Kant, a “concupiscência”121 passou a dividir espaço com as inclinações naturais na vida do homem e, sobre ela, acometer inúmeras outras dissimulações. O homem primordial teria trocado, portanto, a vida tranquila e ociosa pela sede da satisfação de suas necessidades, que por terem sido criadas artificialmente, não são satisfeitas tão facilmente e, em sua maioria, só servem para alavancar ainda mais o seu número e, com isso, o homem entregou-se assim à concupiscência e à voluptuosidade, demarcando desta maneira o início de todo conflito e

antagonismo de sua espécie.

A vida pastoril do homem, conforme Kant a descreve122, lhe propiciava todos os bens que lhe eram necessários, mas permanecia incompleto o desígnio que a natureza lhe

118

Começo, p. 18 (Gênesis, 3:1).

119

ZINGANO, Marco. A. Razão e história em Kant, p. 267.

120 Começo, p. 19. 121 Começo, p. 17. 122 Começo, p. 15, e Ideia, p. 9.

havia imputado, pois caso o homem fosse um ser totalmente instintivo, nada mais lhe faltaria enquanto fosse espectador da voz da natureza; porém, enquanto ser racional, que dispõe desta potencialidade, tem que recusar o estado instintivo onde não pode ser racionalmente autônomo e, sobre esse estado ainda natural, instituir-se como protagonista de sua história como ser dotado de vontade livre e de razão.

Perante a sociabilidade passiva não há qualquer conflito, uma vez que a voz de Deus rege as ações do casal primordial. É possível observar que não há qualquer espécie de progresso ou desenvolvimento racional enquanto se mantiveram neste jardim, uma vez que não dispunham dos mecanismos para essa ação. Sem que haja antagonismo no seio da sociabilidade entre os homens, não há progresso. Somente após a queda do casal que, expulsos do paraíso e conformados à sorte de suas potencialidades, foi possível desenvolvê- las, pois a necessidade que o meio em que viviam requeria isso deles para sua própria sobrevivência. A terceira proposição do ensaio Ideia de uma história universal, como pudemos ver anteriormente, reifica essa tarefa na medida em que pontua que o homem “deveria tirar tudo de si mesmo”123, o que é explanado por Kant no ensaio de 1786 naquilo que pode ser designado como sociabilidade ativa.