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– Fosse tempo de eleição, – dizia um – e o delegado teria aqui todas as praças que pedisse...

– É disso que vem a desgraça dessa terra; só se faz conta de sertanejo, quando é preciso elle votar! – comentava outro, com azedume.

– Eu só queria poder, – ajuntava um terceiro, – que ainda faria uma autoridade da Capital passar seis mezes na ribeira do Pajehú. Bastavam seis mezes, e ella ficava ensinadinha, que era um gosto.

E foram por ahi, nesse diapazão, fustigando impiedosos, o misero abandono, o despreso injustificável e criminoso em que o governo os deixava (BATISTA, 2011, p. 57).

E

sse trecho foi retirado do livro Cangaceiros do Nordeste,

publicado originalmente em 1929. O que nos interessa nessa passagem é o ressentimento que os falantes expressam pela ausência do governo, o que lhes inspirava um sentimento de abandono e desprezo. O fato é que o sertanejo sempre sentiu falta da presença do governo central para promover o desenvolvimento e, principalmente, a justiça em suas comunidades.

Em seu estudo sobre o gênero masculino no Nordeste, Albuquerque Jr. fala sobre o efeito que a ausência do governo teve na formação do caráter do nordestino:

Por ter vivido durante muito tempo sem a presença mais imediata da autoridade do Estado, o nordestino teria desenvolvido um enorme espírito de liberdade, que teria sido inclusive o propulsor do povoamento dos sertões. Ao contrário do bandeirante paulista, que entra para o sertão já em busca do interesse, do metal precioso e do índio, para a venda, o que já prenunciava o espírito utilitário e comercial dos paulistas do século XX, a sua sede de lucros, o homem que foi para o sertão do Nordeste buscava a liberdade, sendo muitos deles cristãos novos a fugir das garras da Inquisição, enquanto outros, criminosos degredados, que viam no interior a chance de fugir à prisão. Homens dispostos a não se submeterem nunca, homens rudes, embrutecidos nas lutas em que garantiam a própria vida. Por isso, a cultura do nordestino era rústica, assim como ele próprio; cultura que garantia, no entanto, sua sobrevivência, nascida da adaptação do homem às condições naturais e sociais de seu espaço, e fruto de uma história que precisava ser lembrada, uma cultura tradicional, vinda do passado, que se via agora ameaçada pela invasão de uma cultura estranha trazida pela cidade (ALBUQUERQUE JR, 2003, p. 197).

O mais interessante nesse excerto é como o autor confirma a noção de que a formação social do nordestino se deu longe dos rigores da lei, longe de um sistema judicial para controlar as relações sociais que se iam formando. A ausência desse sistema se devia certamente à precariedade dos meios de comunicação como também à distância do interior nordestino não apenas em relação aos poderes governamentais estaduais, sempre localizados na região litorânea dos Estados, mas ainda em relação ao poder central do país. Não é à toa, portanto, que sempre se diz, a respeito de Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, que a obra revelou ao Brasil do Sul-Sudeste outro Brasil ainda desconhecido.

Diante dessa completa ausência do poder judiciário para impor as leis do país nesse sertão inculto, não seria de estranhar que as relações sociais e econômicas que se formaram privilegiavam aqueles que detinham o poder econômico no âmbito local e aqueles que conseguiam impor sua vontade pelo uso da força. No final, o que se tinha era um sistema social e político extremamente injusto. Diante desse sistema, ou o homem comum simplesmente aceitava essa realidade contra a qual nada podia fazer ou se tornava um fora da lei, como é o caso dos cangaceiros, recorrendo à violência para não ter de se subjugar aos desmandos dos grandes senhores.

Essa ausência do governo central para impor as leis que poderiam proteger os economicamente mais frágeis é que proporciona o surgimento dos cangaceiros que, para alguns estudiosos, são fruto desse sistema injusto estabelecido. Esses bandidos, por sua vez, combatiam os coronéis da mesma forma com que esses se impunham aos sertanejos, isto é, por meio da violência e do uso da arma. Cria-se assim um clima de violência constante em que é vencedor quem é mais ousado e mais destemido.

Embora alguns desses cangaceiros, como Antônio Silvino e Jesuíno Brilhante, tenham adquirido fama de justiceiros, a maio- ria, no entanto, implantava seu próprio código de justiça, o que implicava o enfrentamento e a exploração dos coronéis e dos ri- cos fazendeiros e a submissão, e também exploração, do homem simples. Assim, longe de se tornarem liberadores do povo, os can- gaceiros, quando empenhados em algum aparente ato de justiça, fazem isso baseados no seu próprio senso de justiça com total des- consideração e desconhecimento das leis que regem o país.

Nesse sentido, quando finalmente o governo, estadual ou fe- deral, resolveu enfrentar o problema do banditismo dos cangacei- ros no interior do Nordeste, a presença de forças governamentais, geralmente conhecidas como volantes, não era certeza de segu- rança para a população em geral. Geralmente, a atitude desses re- presentantes do governo para com o povo simples era tão cruel e desonesta, ou talvez até mais, do que a dos cangaceiros. A esse respeito, diz Pericás em seu estudo sobre o cangaço:

Como os “macacos” das volantes, esses soldados oficialistas abusavam de seu poder. Por causa de sua conduta repreensível, acabavam, consequentemente, voltando as simpatias dos sertanejos para os rebeldes. Era comum o recrutamento forçoso de caboclos, a destruição de plantações, os saques de casas e pequenas propriedades, pagamentos de requisições feitos com moeda falsa, e o estupro de mulheres sertanejas (PERICÁS, 2010, p. 99).

Em outras palavras, podemos concluir que o abuso do poder era tão comum naquela época como ainda é hoje. Isso pode ser facilmente constatado ao se acompanhar o noticiário policial das grandes cidades brasileiras da atualidade.

A JUSTIÇA “OFICIAL” NO