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1.2 HEGEMONIA ENQUANTO DIREÇÃOE CONSENSO

1.2.1 Sociedade Civil: um lugar de conflitos e competições

Hegemonia e sociedade civil caminham juntas. A hegemonia consiste num “par lógico e político do conceito de sociedade civil”.57 A ação hegemônica dá-se, fundamentalmente, dentro da sociedade civil, que é definida como “aparelhos privados de hegemonia”.58 A relação hegemônica é o fator de articulação da sociedade civil. Em Gramsci, a hegemonia encontra a base material de sua função social. A hegemonia é a mediação entre a estrutura econômica e as relações político-jurídicas, as quais deixam de ser meros reflexos da estrutura.

Está situada nesse ponto a diferença essencial entre o conceito de sociedade civil de Marx e o de Gramsci. Para Marx, a sociedade civil pertence à base material ou estrutura econômica, enquanto 55 COUTINHO, 2003, p. 129. 56 COUTINHO, 2003, p. 129. 57

NOGUEIRA, Marco Aurério. As três idéias de sociedade civil, o Estado e a politização. In: COUTINHO, Carlos Nelson; TEIXEIRA, Andréa de Paula (Org.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Xamã, 2003. p. 222.

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Eles são “privados” no sentido de que nesses organismos o indivíduo adere voluntariamente, por meio de escolha, mesmo que relativa, e não em conseqüência do uso da força como nos Estados anteriores. A Igreja, por exemplo, deixou de ser algo público, imposto pelo Estado, e passou para algo privado, a ser escolhido pelo indivíduo. Sobre esse tema, discorreremos mais adiante.

para Gramsci, a sociedade civil não pertence à estrutura, mas à superestrutura. Com efeito, a sociedade civil é lugar de socialização e de interação e integração social. Essa modificação levou Gramsci à ampliação do conceito marxista de Estado.59

Marx e Engels, e depois Lênin, afirmaram que a característica principal do Estado é o seu caráter classista, considerada a sociedade dividida em classes; trata-se de uma concepção

instrumentalista do Estado, visto como instrumento da classe burguesa. Assim, o Estado existe

para perpetuar tal divisão pelo monopólio da coerção e da violência, exercido por meio de aparelhos repressivos. Esse entendimento é o que Gramsci conceituou de Estado restrito.

Gramsci ampliou o conceito de Estado, o qual se encontra na superestrutura, numa relação dialética com a estrutura. Este, então, seria a união e o equilíbrio da sociedade política (dominação fundada na coerção) e da sociedade civil (dominação fundada na direção e no consenso). Como ele resume na fórmula cunhada nos Cadernos: “No sentido, seria possível dizer que o Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção”.60

É na sociedade civil, por meio das “organizações privadas” (Escolas, Igrejas, Partidos, Imprensa, entre outras) que se exerce a hegemonia. São elas as responsáveis pela criação, organização e difusão das ideologias. Sobre a combinação de hegemonia e ideologia trataremos mais à frente.

Complementando, Nicos Poulantzas diz que é preciso levar em conta que o Estado, em seu sentido restrito (sociedade política), também exerce funções ideológicas e hegemônicas. Por outro lado, na sociedade civil também existe a coerção. A atuação de instituições ideológicas e culturais pressupõe a monopolização da “violência” pelo Estado. É esta última função que sustenta os mecanismos de poder fundamentados no consentimento.61 Alertamos, com isso, que não podemos ver a teoria gramsciana como algo rígido e acabado, mas reservadamente, como algo explicativo.62 Devemos somente pensar em questão de predominância, ou seja, a ação da hegemonia tem a sua predominância na sociedade civil, mas não se esgota somente nessa esfera.

59 COUTINHO, 2003, p. 121-122. 60 GRAMSCI, 2003, v. 3, p. 244. 61 POULANTZAS, 2000, p. 79. 62 Ibid., p. 26-27.

Outro problema é ver a divisão repressão/consenso por meio do encobrimento e da dissimulação do Estado em relação aos seus reais objetivos, conforme conclui Poulantzas:

O Estado não produz um discurso unificado, e sim vários, encarnados diferentemente por diversos aparelhos de acordo com a classe a que se destinam; discursos dirigidos às diversas classes. Ou então produz discurso segmentar e fragmentado segundo as diretrizes da estratégia do poder.63

A sociedade civil não é somente a esfera na qual o consenso é produzido; é também lugar de conflitos e competições pela conquista da hegemonia. Em outras palavras: é a esfera na qual diferentes ideologias se encontram, se opõem e disputam espaço, seja entre grupos seja entre indivíduos. A sociedade civil é um lugar de luta de hegemonias pela hegemonia. Na verdade, estabelece-se uma relação dialética: consenso-conflito-consenso.

Em um artigo recente, Marco Aurélio Nogueira sinaliza para o novo conceito de sociedade civil: em primeiro lugar, marcada pela complexidade, pela diferenciação e pela fragmentação social; em segundo lugar, pela integração e pela interligação econômica, política, social e cultural, bem como pela ampliação da desigualdade; em terceiro lugar, pela difusão de espaços democráticos, que propiciou a multiplicação de movimentos sociais.

Por fim, a democracia representativa entrou em crise, o que fez com que a política se tornasse

mais midiática e muito menos controlada pelos organismos tradicionais (os partidos e sindicatos, em sua maioria). Desta feita, o conceito de sociedade civil sofreu uma mutação, que muitas vezes nada tem a ver com a idéia de Gramsci.

A sociedade civil deixou de ser o lugar de organização da hegemonia, portanto, de conflito e consenso, para tornar-se um espaço de cooperação, gerenciamento e implementação de políticas.64 Hoje, sociedade civil é entendida como o conjunto de grupos organizados (sociedade

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POULANTZAS, 2000, p. 30.

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NOGUEIRA, Marco Aurério. As três idéias de sociedade civil, o Estado e a politização. In: COUTINHO, N. Carlos, TEIXEIRA, Andréa de Paula (Org.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Xamã, 2003. p. 216-218.

civil organizada ou vagamente definida como terceiro setor), no qual imperam as ONGs, que ocupam o lugar deixado pelo Estado Mínimo neoliberal, principalmente nas áreas sociais, onde se inclui a educação.65

1. 2.2 Aparelhos Privados: uma escolha involuntária

Voltando a Gramsci, ele entendia a sociedade civil como “[...] um conjunto de aparelhos privados de hegemonia”.66 Mas o que significa “privados” nesse contexto? Eles são “privados” no sentido de que, nesses organismos, o indivíduo adere voluntariamente, por meio de escolha, mesmo que relativa, e não em conseqüência do uso da força. Para ajudar a responder a essa questão devemos remeter-nos à gênese do pensamento gramsciano sobre sociedade política.

Já colocamos a necessidade de conseguir um novo consenso, após a ampliação da socialização política com o aumento progressivo do sufrágio universal e com a multiplicação dos movimentos sociais. Fica claro que a sociedade civil é uma das categorias que distinguem as sociedades complexas modernas, mesmo que o próprio Gramsci algumas vezes, a identificasse, não no sentido mais clássico do próprio autor, com a Igreja, durante o Estado Absolutista. Nesse período, a Igreja não estava desvinculada do Estado. Ela não se colocava ainda como organismo “privado”. Com a ajuda do Estado, a Igreja impunha a sua ideologia oficial de modo repressivo, meio que o próprio Estado usava para implementar a sua dominação.67

Com as “revoluções democrático-burguesas”, o Estado passou por um processo de laicização.

Aqueles instrumentos ideológicos, como a Igreja, deixaram de ser públicos (ou estatais) e passaram a ser “privados”, por um processo de reconfiguração historicamente determinado.

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O Estado é mínimo nos temas sobre investimento, como, por exemplo, aqueles nas áreas sociais. Mas a sua presença no interior da sociedade é cada vez mais ampliada, como elemento de coerção.

66

MOCHCOVITCH, 2001, p. 29.

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O Estado não impõe mais, coercitivamente, uma religião.68 Além disso, acompanhando a evolução das sociedades, foram criados outros instrumentos ideológicos, que já nasceram privados, como é o caso dos partidos, dos sindicatos e da imprensa. Coutinho conclui: “As ideologias, ainda que obviamente não sejam indiferentes ao Estado, tornam-se algo ‘privado’ em relação a ele: a adesão às ideologias em disputa torna-se um ato voluntário (ou relativamente voluntário), e não mais imposto coercitivamente”.69

1. 2.3 Ideologia: “cimentando a unidade de uma formação social”

Sabemos que são as “organizações privadas” da sociedade civil as responsáveis pela criação, organização e difusão das ideologias. A hegemonia e ideologia apresentam-se “irmãs siamesas” para Gramsci. A luta pela hegemonia passa pela construção de uma nova ideologia, ou de uma “contra-ideologia”.

Ao mesmo tempo em que Gramsci amplia o conceito marxista de Estado, também o faz com o conceito de ideologia. Enquanto para Marx e Engels, ideologia tem um sentido negativo, como se fosse sinônimo de deformação da realidade, para Gramsci, o conceito ganha uma visão positiva: “[...] como a visão de mundo, mais ou menos coerente, da qual todo ser humano carece para viver na realidade”.70 Ele a compreende, sobretudo, como uma realidade prática. Ele materializa a ideologia. O próprio consenso possui um substrato material. A ideologia, nessa concepção, supera a visão abstrata e liga-se à ação voltada para influir no comportamento dos indivíduos. Até na linguagem está contida uma determinada concepção de mundo, uma determinada ideologia.71

Partindo da mesma premissa gramsciana, Poulantzas assim caracteriza a ideologia:

68 COUTINHO, 2003, p.133. 69 Ibid., p. 133. 70

FINELLI, Roberto. Hegemonia e nova ordem mundial. In: COUTINHO, N. Carlos, TEIXEIRA, Andréa de Paula (Org.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Xamã, 2003. p.107.

71

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. PÊCHEUX, Michel.

A ideologia não consiste somente ou simplesmente num sistema de idéias e representações. Compreende também uma série de práticas materiais extensiva aos hábitos, aos costumes, ao modo de vida dos agentes, e assim se molda como cimento no conjunto das práticas sociais, aí compreendidas as práticas políticas e econômicas.72

Assim, a ideologia é constituída, ao mesmo tempo, de práticas materiais (realidade concreta) e sistemas de representações, que preenchem uma função muito importante: “[...] a de cimentar a unidade de uma formação social (sob a égide da classe dominante)”.73 Isto é, a ideologia funciona como fator de aglutinação de várias articulações sob o comando de um grupo hegemônico, que viabiliza a predominância dos seus interesses como interesses universais.

Como parte da ideologia, está a cultura,74 que, para Gramsci, vai além do aspecto do costume, do hábito e da tradição. Ele a pensa no quadro mais geral: do Estado, da classe e da cidadania.

Em “Socialismo e cultura”, Gramsci, em 1916, já dizia que a revolução, para ser bem-sucedida, deve operar em conjunto com a cultura, por ser algumas vezes considerada, na teoria marxista, como algo marginal. A cultura é um dos meios mais eficazes de “cooptação” da classe trabalhadora para a revolução, eliminando o caráter individualista alimentado pela ideologia da burguesia.75

Gramsci entende a cultura como forma de intervir na realidade para transformar e superar o individualismo, e uma forma de disciplina do eu interior. Como diz Coutinho, “[...] é um modo de pensar a realidade concreta”.76 É também o espaço de conquista da consciência e da liberdade.

Posto isso, pela própria concepção de mundo, formamos um determinado grupo que compartilha modos de pensar, viver e agir. Por vezes, podemos escolher outra concepção de mundo (mesmo 72 POULANTZAS, 2000, p. 27. 73 Ibid., p. 86. 74

Como já dissemos no início, quando tratamos do contexto, desde a sua juventude Gramsci deu uma atenção especial ao tema cultura e isso o diferencia dentro do pensamento marxista.

75

DIAS, 2000, p. 67.

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que embrionária) que não aquela pertencente ao nosso grupo, tomá-la emprestada, afirmá-la com palavras e atos, acreditar nela, segui-la, mas não de forma independente e autônoma. Nesse sentido, a escolha de uma concepção de mundo é um ato político. Por isso entendemos que a ideologia não é algo neutro; trata-se de uma escolha feita pelo indivíduo ou categoria social.

A ideologia dominante é a materialidade do poder da classe dominante, que consegue difundi-la e torná-la comum, porque já domina os “instrumentos hegemônicos” (como verdadeiros canais de transmissão), que fazem parte do Estado em seu sentido amplo. Ela sempre consegue re-atualizar a sua “estrutura ideológica” - “[…] a organização material voltada para manter, defender e desenvolver a ‘frente’ teórica ou ideológica”,77 para, dessa forma, manter o consenso.