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Impossível falar de qualquer aspecto da sociedade medieval sem tratar de algumas de suas mais conhecidas facetas, a sua religiosidade, que, sem dúvida, foi um traço marcante em todos os níveis da vida social. Nossa Idade Média é, sem a menor sombra de dúvida, muito religiosa, sobretudo a sociedade ibérica. Porém, antes de nos aprofundar na análise da tripartição do público feminino, é necessário algumas considerações acerca de que Idade Média iremos tratar.

Há toda uma preocupação, por parte dos especialistas em história medieval, em frisar que o período popularmente conhecido por Idade Média é um longo período de mil anos e que isso, por si só, já deveria bastar para não cairmos em generalizações que podem, muitas vezes, empobrecer ou distorcer uma fase tão longa e tão rica da história do ocidente. Como Marc Bloch já alertou: “o historiador não tem nada de homem livre, pois do passado apenas conhece aquilo que esse passado quer mostrar-lhe”45, e no que diz respeito à Idade Média, o cuidado deve ser redobrado.

Essa Idade Média, que foi arbitrariamente situada entre dois tempos, para alguns, gloriosos, a Antigüidade e a Modernidade, está marcada por toda uma pesada carga de variados preconceitos, na sua maioria preconceitos negativos, por vezes preconceitos positivos, porém sempre preconceitos que distorcem, em grande parte a já nebulosa e distante Idade Média46.

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BLOCH, 1987, p. 15. 46

Sobre as concepções deformadas da idade média consultar: LE GOFF, 1993, p. 9-42; PERNOUD, Régine. O Mito da Idade Média. Lisboa: Europa-América, 1989, p. 5-38.

Se do passado o historiador consegue acessar uma pequena parte, aquela que se deixa mostrar, da Idade Média, há muitos biombos justapostos a impedir que dela possamos ter uma idéia mais próxima daquilo que realmente ela possa ter sido. De qualquer forma, trata-se da história da sociedade pré-industrial que, numa cronologia mais flexível que a usualmente utilizada, encontra-se situada entre os séculos II e III da era cristã até a Revolução Industrial, que Le Goff vê na perspectiva da longa duração histórica:

Esta longa Idade Média é, para mim, o contrário do hiato visto pelos humanistas do Renascimento e, salvo raras exceções, pelos homens das luzes. É o momento a criação da sociedade moderna, de uma civilização moribunda ou morta sob as formas camponesas tradicionais, no entanto viva pelo que criou de essencial nas nossas estruturas sociais e mentais. Criou a cidade, a nação, o Estado, a universidade, o moinho, a máquina, a hora e o relógio, o livro, o garfo, o vestuário, a pessoa, consciência e finalmente, a revolução.47

Então, a Idade Média que temos diante de nós deve ser estuda tendo estas questões em mente, isto é, considerando que a cronologia com a qual normalmente se trabalha é uma cronologia arbitrária, elaborada pelos intelectuais da era moderna que viam os tempos medievais com um olhar comprometido com os valores da sociedade industrial. É preciso relativizar a Idade Média: ela é média em ralação a quê? Entendendo-a como o outro dos tempos modernos, como “aquilo ‘contra’ o que a cultura capitalista e, mais adiante, a cultura industrial se definem”48, faz-se necessário ver esse período da história do ocidente com um olhar disposto a contribuir para a sua compreensão49. E na presente pesquisa, a Idade Média que interessa é aquela da sociedade ibérica do século XIII, especialmente a Castela de Afonso X, o Sábio.

Finalmente, como já foi dito anteriormente, os medievais construíram suas próprias formas de representar a si próprios, nem melhores, nem piores do que os homens e mulheres de outros momentos da história ocidental. Eles tinham suas próprias maneiras de sentir e pensar, e também naquilo que nos interessa nesse momento: maneiras de regular as relações sociais entre os sexos.

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LE GOFF, Jaques, Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Estampa, 1979, p. 12. 48

RODRIGUES, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1999, p. 17. 49

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 20.

Na imensa tarefa de organização daquela sociedade, os homens dos tempos medievais, conceberam, entre os séculos IX e X, uma constituição social tripartida, isto é, a clássica configuração das três ordens do feudalismo: os oratores, aqueles que oram; os bellatores, aqueles que combatem e os laboratores, aqueles que trabalham. Para Le Goff: “Estas três categorias são distintas e complementares e cada uma delas tem necessidade das outras duas”.50 Tal como ocorre na tripartição do público feminino, essa tripartição social se caracteriza por uma forte hierarquização em que, na ponta da pirâmide, temos um único senhor que controla os destinos de seus vassalos, numa complexa teia de compromissos de parte a parte. Trata-se das relações de suserania e vassalagem, na qual o senhor é onipresente e onisciente, seu representante na cidade dos homens é a Igreja, ponte entre o sagrado e o profano.51

A Igreja esteve empenhada em manter-se à frente desse sistema que procurou manter mais ou menos inalterado até finais do século XIII. Como herdeira das duas principais matrizes formadoras do ocidente medieval, a romana e a germânica, a Igreja participou ativamente desde a implantação desse sistema até sua consolidação.

Atentos para as necessidades de adaptação que, com o passar do tempo acabavam por se impor, os membros da Igreja estiveram sempre envolvidos na função de explicar aos homens o porquê dessa formação tripartida da sociedade, da mesma forma que se dedicava a apresentar para a comunidade de fiéis da qual faziam parte, orientações convincentes no sentido de estabelecer normas de convívio social.

Como única estrutura social de caráter universal, presente em quase todas os cantões do ocidente medieval, a Igreja construiu um elaborado conjunto de regras de controle das ralações sociais. Sua tarefa não foi fácil, entretanto parece ter conseguido realizar uma interessante síntese do precioso legado que recebeu, tecendo uma vigorosa rede de preceitos que tinha a ambição de alcançar toda a sociedade. Ao que parece, seu projeto de se constituir em única representante da vontade divina acabou por contribuir para a formação de um complexo sistema de idéias próprias daqueles tempos.

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LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Estampa. 1983, 2 v. p. 9. 51

Sobre esse tema, consultar entre outros: BLOCH, 1987; Ibid., 1983; DUBY; FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Eva Barbada. Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: USP, 1996.

Ao pretender ser porta-voz de um Deus único, defensor de uma só fé, e única Igreja possível, acabou por inventar uma sociedade que se vê como a imagem e semelhança do próprio Deus, como a única comunidade de fiéis, a Eclésia, contribuindo para engendrar uma civilização que recusa o diferente.

Nessa perspectiva, a Igreja teceu para as mulheres, em particular, toda uma ética que deveria ser observada tanto por elas quanto pelos homens. Sua preocupação, entre outras, era estabelecer formas de vigilância sobre as relações sociais entre homens e mulheres, o que resultou em uma estratégia de controle social exercida desde as relações mais primárias que as sociedades estabelecem aquelas entre os sexos, e levando para essa esfera a mesma forma hierarquizada que ocorre na estrutura social.

Nas relações de suserania e vassalagem ocorre uma hierarquização bastante marcada, em que o vassalo tem para com o suserano obrigações a cumprir, da mesma forma que este tem deveres para com aquele. Nessa sociedade, caracterizada por uma “subordinação de indivíduo a indivíduo”52, a subordinação da mulher ao homem era necessária e óbvia.

A história da Idade Média se confunde, muitas vezes, com a história do cristianismo como movimento de evangelização ou de colonização do ocidente, com seus sistemas de valores, suas idéias acerca das relações dos homens entre si e com a divindade. Nessa história, em seus primeiros momentos, as personagens femininas foram, em grande parte, responsabilizadas, quase que exclusivamente, pelas infinitas aflições da humanidade após a queda do paraíso.

Os homens da Igreja, quase que únicos a terem acesso às letras, tiveram de pensar constantemente a humanidade e a Igreja, engendrando as maneiras de a encaminhar no sentido da salvação. Nessa atividade, estiveram preocupados em encontrar um lugar para o feminino no plano divino.

Todavia, durante muito tempo, mais ou menos até o século XIII, esses sábios da Igreja permaneceram largamente apartados das mulheres, enclausurados em seus ambientes masculinos, nos claustros, nas escolas, nas faculdades de teologia, nos domínios das comunidades religiosas, preparando-se para uma vida de castidade que, pelo menos desde o século XI, passou a ser uma obrigação de todo clérigo.

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É este o ambiente no qual observamos desenhar-se lentamente uma imagem do feminino, que faria qualquer ser temente a Deus manter-se numa distância saudável daquelas que tanta estranheza e medo pareciam causar. Dessa forma, concordando com Jacques Dalarum, não é de se estranhar que “o traço dominante do pensamento clerical, neste tempo, seja a misoginia”.53

Esses homens foram freqüentemente afastados de suas mães, ainda meninos, para serem educados em ambientes exclusivamente masculinos. Era comum que as crianças fossem criadas longe de suas casas maternas, sobretudo no caso das elites medievais. As amas de leite e os preceptores os preparavam durante sua infância para a vida adulta.54 As crianças do sexo masculino eram preparadas para a vida profana como cavaleiros ou para a vida religiosa como clérigos. De qualquer forma, possivelmente conviviam longe de suas famílias biológicas, e em contato pouco freqüente com o feminino.