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SOCIOLOGIA POLÍTICA: PRODUÇÃO DE PRESENÇAS E DE AUSÊNCIAS

2. REALIZAR A POLÍTICA

2.2 REFLEXÃO QUANTO A ESSAS NOÇÕES, NA CONTEMPORANEIDADE

2.2.2 SOCIOLOGIA POLÍTICA: PRODUÇÃO DE PRESENÇAS E DE AUSÊNCIAS

A segunda nota característica do Estado é que essa entidade realiza a Política no mundo enquanto produtora de presenças e de ausências.

O Estado, aqui, é examinado especificamente no que e no quanto produz a presença ou a ausência de determinados discursos, mentalidades e práticas sociais, econômicas, éticas, morais, religiosas, científicas, dentre outras, expandindo ou contraindo as ‘possibilidades de aparecimento’ ou as ‘possibilidades de influência’ de outras temporalidades, outras espacialidades, outras produtividades, outros saberes, outras escalas, outras formas de reconhecimentos231 diferentes daqueles discursos, mentalidades ou práticas eventualmente maioritários em dado instante histórico.

A hipótese é a de que qualquer modalidade de agir do Estado (num linguajar mais clássico: qualquer modalidade de “ação política”) opera, necessariamente e em alguma medida,

230 Entre os séculos XVI e XX, durante o alvor e a expansão das potências modernas, houve também assombrosa exploração de recursos materiais e imateriais em colônias que mantiveram no estrangeiro. A quantidade de pessoas, de embarcações, de armas, de técnicas, de construções etc. necessários à empreitada era tão colossal que somente os Estados poderiam coordenar esses esforços – ainda que diversas companhias privadas tenham financiado essa forma de drenagem de recursos.

231 A ideia de que a sociabilidade se divide, especialmente, entre saberes, produtividades, reconhecimentos, escalas (local/regional/nacional/global), tempos e espaços é produto da imaginação sociológica de Boaventura de Sousa Santos. Queira ver, entre outras obras, SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova

cultura política. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. Vol. 4. 2ª ed. Porto: Afrontamento, 2010.

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um código de inclusão/exclusão, considerando a finita capacidade de uma iniciativa política de abranger toda a realidade presente.

Noutros termos, a extrema complexidade ou, diga-se, a tendência ao infinito exibida pelos pensamentos e pelos atos humanos nunca seria, completamente, abarcada por qualquer espécie de ação política e, sendo assim, todas elas devem exercer um controle da complexidade que suportam: devem incluir e devem excluir determinados pensamentos e determinados atos humanos de seu âmbito, optando por uma específica compreensão do que seja a realidade e, até, optando por uma ou algumas compreensões dos registros do imaginário e do simbólico232.

Portanto, não obstante as diferentes ações políticas tenham, cada qual, uma substância e certas características peculiares, uma condição, pelo menos, seria constante. A necessidade da Política em lidar com a incontornável pluralidade da (ou que é a) condição humana, como lembrara Arendt233. Uma das tarefas fundamentais do Estado, enquanto atuador da Política, desde logo, teria a ver, assim, com a escolha de uma forma de ser, de uma forma de conhecer e de uma forma de poder, por exemplo.

Uma ação política, nesse sentido, a cada momento, a cada ato concreto, a cada construção simbólica que elabora ou a cada desenvolvimento de imaginário que estimule, atua um código de incluir e de excluir umas opções (entre todas as possíveis), de admitir em seu âmbito determinados discursos, práticas e mentalidades e, inevitavelmente, não admitir determinados outros. Um meta-código (pois verificável a cada momento e a cada ação) que produz, no campo político, presenças e ausências.

De maneira que as constantes disputas no campo político, em regra, podem ser reconduzidas a esse meta-código de inclusão/exclusão ou, numa linguagem menos sistêmica234,

232 Há, nesse trecho, uma analogia qualquer com Jacques Lacan, médico psicanalista francês que afirmara, no meio do século XX, que os registros psíquicos estruturais dos sujeitos seriam os do real, do imaginário e do simbólico. Cf., entre outras obras, LACAN, Jacques. Escritos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

233 Ver, entre outros, ARENDT, Hannah. A condição humana. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

234 As teorias dos sistemas, como se disse no primeiro tópico do capítulo, assumem estes códigos binários (“algo”/ “contrário-de-algo”) para sintetizar a partir de que parâmetro se desenrola a racionalidade de cada sistema. O sistema político, por exemplo, para Niklas Luhmann, desenvolve seu programa desde um código Poder/não Poder; o sistema econômico, um código Ter/não Ter; o sistema jurídico, Lícito/Ilícito e assim por diante. O próprio Luhmann indicara que, houvesse um meta-código (ou seja, um código que sobredeterminaria a racionalidade de cada um e de todos os sistemas), esse seria Inclusão/Exclusão. Ver, entre outros, LUHMANN, Niklas. Sociologia

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podem ser reconduzidas ao seu efeito essencial, que seria delimitar a presença de algumas forças e produzir a ausência de diversas outras forças nesse campo. Este aspeto, de que uma ação política produz, ativamente, ausências – exclusões – necessita alguma ênfase.

Algumas teorias contemporâneas (filosóficas ou científicas) sobre a ação política235 explicitam que a causa que leva a essa seletividade (optar por uns conceitos e práticas entre todos os possíveis) é a filiação de toda ação política a uma “ideologia” e o efeito principal dessa seletividade seria “dar como ausente” tudo o que não esteja filiado a tal “ideologia”. Haveria diversos mecanismos antropológicos, culturais, psicológicos, linguísticos, científicos, econômicos, religiosos, éticos etc., ao redor da ação política, cuja tarefa conjunta seria tornar impronunciável, invisível, inacreditável, incorreto, inadequado, antiético, ilegítimo etc. qualquer iniciativa política que não compartilhe as mesmas premissas “ideológicas” da ação política hegemônica.

Aos propósitos desta pesquisa, basta uma compreensão relativamente ampla – não específica nem problematizada, aqui – sobre “ideologia”. Uma noção de “ideologia” como limite estrutural de uma produção simbólica236 de um indivíduo ou de uma sociedade de indivíduos, ou seja, “ideologia” como uma série de ideias válidas por determinado tempo, determinado espaço e a determinados sujeitos na explicação, manutenção e transformação de uma realidade. Essa noção incluiria perspetivas epistemológicas, jurídicas, ético-sociais ou econômicas, por exemplo, na medida em que a “ideologia” direciona modos de ser, de estar, de conviver, de conhecer, de reconhecer e de poder.

Uma “ideologia” se torna hegemônica através de um processo em que, gradualmente ou revolucionariamente, as únicas presenças toleradas no campo político lhe são familiares. Em regra, isto ocorre de modo paulatino. Determinadas ideias tomam vigor no campo político depois de rivalizar, por tempo razoável, com outras ideias igualmente vigorosas. Na sequência, obtêm espaços a partir dos quais podem agregar novas ideias (ou novos discursos e práticas) e segregar as ideias rivais (tanto as antigas rivais como, eventualmente, novas rivais),

und Exklusion in der Weltgesellschaft – am Beispiel der Schule und des Erziehungssystems. Zeitschrift für Inklusion, Bonn, nr. 1, 2013. Disponível em www.inklusion-online.net.

235 Entre outros, BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2ª ed. Lisboa: Edições 70, 2012, JAMESON, Frederic.

O marxismo tardio. São Paulo: Boitempo/UNESP, 1997 e ŽIŽEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. São Paulo: Boitempo, 2012.

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até que a maior parte ou todos os espaços relevantes estejam ocupados. Essa “ideologia”, agora hegemônica, funciona, depois, como um filtro de presenças (políticas): aquilo que converge às ideias estruturais daquela sociedade permanece visível, crível, adequado, ético, correto, pronunciável, legítimo etc.; aquilo que diverge, como se antecipou, é dado como ausente.

O conceito de “legitimidade”, conquanto ostente um valor normativo inegável, isto é, ilumine as discussões sobre a Política quando procuram identificar a “forma correta de fazer política”, o “governo adequado” ou o desempenho apropriado da “autoridade”237, é, inúmeras

vezes, cooptado por uma ação política hegemônica, passando a traduzir a adequação de variantes sociais à “ideologia” daquela ação política. Nesse instante, aquilo que está presente se confunde com aquilo que é legítimo, que, por sua vez, seria aquilo que está de acordo com a ação política hegemônica.

Dessa maneira, o próprio conceito de “legitimidade” é passível de apropriação “ideológica”. Note-se, por exemplo, que tanto o mais cruel dos governos ditatoriais quanto o mais suave dos governos democráticos se entendem “legítimos” e, aliás, ambos podem se considerar “legítimos” pela inclusão que promovem (para voltar ao meta-código inclusão/exclusão). Uma “legitimidade autoritária” incluiria os diferentes discursos, práticas e mentalidades que, eventualmente, circulem pela sociedade, através do “resultado” – o governo autoritário considera que todos participam de seus resultados. Uma “legitimidade republicana” incluiria os diferentes discursos, práticas e mentalidades circulantes através do “processo” – o governo democrático considera a participação como um insumo e não como um produto.

Portanto, a “legitimação autoritária” se mostra preocupada com o bem-estar ou a felicidade da população, porque os incluídos e os excluídos se verificam ao fim do processo político. Ao passo que a “legitimação republicana” se mostra preocupada com o processo político mesmo, com a participação mesma: incluídos e excluídos se verificam no início, no decorrer e ao fim do processo político, justamente porque todo o processo importa238. O bem- estar ou a felicidade da população seriam, no máximo, consequências de uma ação política includente (que evidenciasse mais presenças que ausências), e, de toda forma, não determinariam o grau de legitimidade numa sociedade que se suponha democrática. E porque

237 Cf. nesse sentido, especialmente o terceiro capítulo (Auctoritas) de MORGADO, Miguel. Autoridade. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), 2010.

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o próprio conceito de “legitimidade” pode ser cooptado, “ideologicamente”, é que sua substantividade terminou adjetivada, havendo distinções como essas entre as “legitimidades” que cada ação política acomoda.

Toda essa análise é particularmente oportuna ao contexto dos Estados de Direito democráticos ocidentais, nos quais o modelo de democracia representativa têm, de maneira crescente, seus horizontes e seus limites discutidos. A ação política enquanto definidora do que está presente e do que está ausente se pode denominar, para todos os efeitos, uma ação representativa (considerando que o desempenho da “representação” é fazer presente algo que, por qualquer motivo, está ausente). Em sentido contrário, talvez se possa dizer que degenera a “re-presentação” quando torna ausente algo que está presente – decaindo a um tipo de “des- presentação”.

Essa crise de representatividade que atravessa Governos e Parlamentos de, praticamente, todos os países, poderia encontrar algumas saídas numa preocupação autêntica dos Estados para com as presenças e as ausências que afirmam ou infirmam. Uma preocupação de equalizar a capacidade de inclusão/exclusão de discursos, práticas e mentalidades sociais, nomeadamente no sistema político, ao enfatizar a inclusão como insumo do processo de decisão política (tentando, pois, uma “legitimação republicana”) e não como produto dele (o que levaria a uma “legitimação autoritária”), como hoje em diversos territórios se faz.

Aliás, uma tal preocupação é urgente, tendo em conta que, por mais avançados que os mecanismos de democracia semi-direta ou direta possam estar, a representação continuará a existir, até ao último dia da Política. Não há ação política que não esteja, minimamente, a re- presentar eventual ausência: sejam grandes ausências (as gerações futuras, o meio ambiente, a memória nacional etc.) sejam pequenas ausências (um único indivíduo que faltou à praça pública – ou ao sítio eletrônico – para debater e deliberar). O Estado atua, a todo instante, uma ficção de contar a presença de quem, concretamente, não pode estar.

Assim, a expressão sociologia política indicaria, sintética e didaticamente, uma segunda parte essencial do conceito de Estado: todos os agrupamentos humanos, desde milênios antes de Cristo ou, num recorte menor, todas as nações organizadas politicamente desde o início da Modernidade, exibiram uma sistemática de representação, a fim de incluir determinadas reivindicações como impulso do Estado e excluir outras.

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