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Ainda no sentido de ser o acesso à justiça tema abrangente e passível de ser compreendido a partir de diversos saberes, há de ser demonstrar de que forma a sociologia geral e a ciência do direito (vulgarmente denominada de dogmática jurídica) convergiram para um mesmo tema. Significa tanto compreender como a sociologia geral atingiu o direito enquanto objeto de investigação científica, quanto como a ciência formal do direito abriu as portas à sociologia. Não significa, no entanto, que a ciência formal do direito ou a sociologia geral tenham deixado de existir isoladamente, mas sim que, de fato, essas fundiram-se e deram origem a outra perspectiva, híbrida, nas ciências sociais: a sociologia do direito.55

Assim, quanto ao surgimento da sociologia do direito, implica compreender, portanto, como a sociologia alcançou o fenômeno social do direito enquanto objeto

54 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2006, p.168.

para uma ciência autônoma, e como tal objeto passou a relacionar-se ao acesso à justiça, à organização e instituição da justiça, enfim, aos tribunais nas sociedades.

Sabe-se da constituição da sociologia geral como ciência social autônoma a partir do século XIX. É geralmente pacífico e creditado a Auguste Comte sua fundação, tendo este sido o primeiro a utilizar o termo sociologia e mesmo o seu criador. Sabe-se, todavia, ter sido este pensador muito mais ligado ao positivismo que à sociologia clássica propriamente dita. Esta última é geralmente identificada na figura e obra de Èmile Durkheim. No entanto, fala-se numa perspectiva sociológica de estudos, anterior ao que se tem por sociologia enquanto ciência autônoma. São os chamados precursores56.

O mesmo ocorre quando do surgimento da sociologia do direito. Diz-se que existe certa perspectiva sociológica do direito, anterior ao início daquela enquanto ciência, provida de densa produção por parte de filósofos, economistas, sociólogos, juristas e tantos mais. Essa perspectiva anterior à fundação dessa ciência significa que houve uma

[...] preparação para um estudo sociológico do Direito [que] correu paralela com a preparação ao advento da Sociologia mesma, o que é evidente. Deve-se frisar, porém, que não são somente os problemas da teoria social que progridem nesse sentido desde certa época; também o interesse pela teoria do Direito vai-se ligando progressivamente ao aspecto social da ordem jurídica.57

Enquadrar a sociologia do direito como ciência social autônoma significa tomá-la como ramo especializado da sociologia geral e estudar o fenômeno essencialmente social do direito enquanto objeto teórico específico. Assim,

A sociologia do direito só se constitui em ciência social, na acepção contemporânea do termo, isto é, em ramo especializado da sociologia geral, depois da segunda guerra mundial. [...] [A] sociologia do direito verdadeiramente construiu sobre o direito um 56 O aprofundamento sobre este tema não se enquadra de forma exaustiva nesta pesquisa, mas deve-se ressaltar que até mesmo Montesquieu é considerado precursor ou mesmo um fundador informal da Sociologia. “Pode parecer surpreendente começar uma história do pensamento sociológico pelo estudo de Montesquieu. Na França, esse autor geralmente é considerado um precursor da sociologia e se atribui a Auguste Comte o mérito de ter fundado essa ciência – o que é verdade, se fundador for aquele que criou o termo”. In :ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. 6. ed. Tradução Sérgio Bath. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 884 p. (Coleção tópicos), p. 3.

objecto teórico específico, autónomo, quer em relação à dogmática jurídica, quer em relação à filosofia do direito. No entanto, antes deste período foi grande e rica a produção científica orientada por uma perspectiva sociológica do direito. [...] [A]o contrário doutros ramos da sociologia, a sociologia do direito se ocupa de um fenômeno social, o direito, sobre o qual incidem séculos de produção intelectual cristalizada na idade moderna em disciplinas como a filosofia do direito, a dogmática jurídica e a história do direito.58

É possível observar, dessa maneira, três momentos distintos na formação da sociologia do direito: primeiro, aquilo que se considera uma perspectiva sociológica do direito, produzida antes da constituição da própria sociologia geral enquanto ciência; segundo, uma sociologia do direito antiga, tendo em vista os estudos de visão ou mesmo aplicação sociológica ao fenômeno jurídico; terceiro, o que se denomina por sociologia do direito em seu sentido contemporâneo, isto é, aquela ciência autônoma que emerge após a segunda guerra.59

Constituída a sociologia do direito, é possível verificar uma imensidão de tendências em seus conteúdos, como em qualquer outro campo científico. Diz-se, neste sentido, que o século XIX – o que situa-se no que denominamos na segunda perspectiva da sociologia do direito, isto é, como uma sociologia do direito antiga – foi constituído de construções, nessa área, predominantemente normativistas e substantivistas.60 Noutras palavras, construções relativas à coerência e à eficácia

das normas.

Essas duas características que participaram das construções mais antigas da sociologia ou da perspectiva sociológica do direito – o viés normativista e o substantivista – perpassaram as análises e produções desta área e atingiram o início do século XX. Afinal, as tendências e os usos provenientes do fim de um século naturalmente atingem a formação de novas diretrizes no século que se segue.

Tidos o normativismo e o substantivismo como características do primeiro desenvolvimento das pesquisas sociojurídicas, entende-se que as indagações científicas giravam em torno de dois sentidos: primeiro, a conformidade das leis oficiais para com a realidade fática social; segundo, o grau de eficácia na sociedade, isto é, até que ponto aferia-se harmonia e realização das normas jurídicas nas

58 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2006, p.161.

59 Ibid., p.161. 60 Ibid., p.160 e ss.

situações existentes enquanto casos.

Houve, contudo, transição na rota que se construía. A grande mudança de caminho que ocorre no desenvolvimento da sociologia do direito, ou melhor, os novos elementos que passam a fazer parte dessa ciência dão-se já no século XX, após a Segunda Guerra. Nesse sentido, quando tal sociologia volta-se ao tema da possibilidade de criação do direito através da decisão de juiz, e não não exatamente da lei – isto é, não normativista -, diz-se que o foco mudou dos elementos da norma e passa a ser análise processual, institucional e organizacional.

Essa alteração de foco dentro da própria sociologia do direito é o que possibilita a constituição da sociologia dos tribunais, sub-ramo voltado à pesquisa da administração da justiça de forma geral, o que, conseqüentemente, possibilita tratar do acesso à justiça. É dessa maneira que

[...] ao deslocar a questão da normatividade do direito dos enunciados abstractos da lei para as decisões particulares do juiz, criou[-se] as pré-condições teóricas de transição para uma nova visão sociológica centrada nas dimensões processuais, institucionais e organizacionais do direito.61

Não se trata, no entanto, de descartar a construção teórica fornecida pela perspectiva normativista e substantivista, visto que tal “[...] tradição intelectual diversificada mas em que domina a visão normativista e substantivista do direito teve uma influência decisiva na constituição do objeto da sociologia do direito no pós- guerra.”62

Parte dessa transição deu-se em Eugen Ehrlich, considerado um dos fundadores da sociologia do direito contemporânea – mesmo tendo produzido sua obra pouco antes da eclosão da guerra. Deste autor, sabe-se que seus estudos desdobraram-se em dois vetores: o estudo do direito vivo e a criação judiciária do direito. É precisamente neste segundo ponto que se diz ter existido o início da criação sociojurídica voltada para os aspectos processuais, institucionais e organizacionais.

A posição do sociólogo do direito Eugen Ehrlich, portanto, é estrategicamente

61 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2006, p.163.

situada na virada de perspectiva sociojurídica, tanto cronologicamente, visto que o mesmo produziu no início do século XX, quanto em relação à sua obra: esta encontra-se dividida em dois grandes rios de conteúdos, qual sejam, o direito vivo e a criação judiciária do direito.

A mudança de perspectiva deu-se por volta das décadas de 1950 e 1960 que, não por mera coincidência, é a época de primeiros norteamentos do movimento e pesquisa quanto ao acesso à justiça, no Projeto Florença. Diz-se que para a existência de tal transição existiram dois amplos motivos distintos: as condições teóricas e as sociais.63

Por condições teóricas, tem-se pelo menos três elementos. O primeiro deles é o desenvolvimento da sociologia das organizações, ramo que teve em Max Weber sua maior inspiração. Tal ramo interessou-se por uma organização social amplamente presente e institucionalizada: o judiciário ou, em sentido mais amplo, os tribunais nas sociedades contemporâneas.

O segundo motivo teórico para que se desse a transição normativista e substantivista foi o desenvolvimento da ciência política, a qual interessou-se pela instituição do tribunal enquanto centro de poder político nas sociedades. Essa aptidão fora importante para a posterior análise do poder político investido nas profissões jurídicas e em suas decisões.

A terceira e última condicionante teórica foi o desenvolvimento da antropologia do direito – ou etnologia jurídica. Esta estipulou a capacidade de estudos voltados não mais ou apenas para as sociedades coloniais, mas sim para os países em desenvolvimento e para os países desenvolvidos, orientando-se “[...] para os processos e para as instituições, seus graus diferentes de formalização e de especialização e sua eficácia estruturadora dos comportamentos.”64

Tomam-se por condições sociais dois eventos: primeiro, as lutas sociais de cunho coletivo e o surgimento de novos direitos; segundo, o desabrochar da crise da administração da justiça. Este último elemento eclodiu na década de 1960, mas é pertinente apontar para a continuidade deste problema até os dias atuais, acompanhado contemporaneamente de discussões interligadas sobre a crise da

63 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2006, pp. 164-165.

ciência, do direito, da norma e dos modelos de justiça e de resolução de conflitos estatais.

A possibilidade teórica da sociologia dos tribunais, portanto, foi viável num terreno em que a tendência normativista e substantivista produziu e acumulou conhecimentos que possibilitaram uma guinada, uma curva no caminho da sociologia jurídica em direção a temas antes não abordados. Não significa afirmar, todavia, que a primeira perspectiva sociojurídica contraponha-se à segunda; ao invés, significa que elas tanto se complementam que somente a partir da produção da primeira é que foi possível o surgimento da segunda.

É possível perceber três grandes temas da sociologia dos tribunais.65 O

primeiro deles é o acesso à justiça. É necessário enfatizar que, no âmbito deste sub- ramo da sociologia do direito, tal tema é visto como acesso efetivo à justiça, relacionando-se intimamente à prestação de serviços judiciários. Esta corrente abre espaço também para a investigação e indagação quanto ao consumidor da justiça, no sentido de averiguar o perfil do tipo de consumidor para o tipo de demanda e especificar caso a caso os óbices que dificultam o acesso à justiça.

Ora, dessa forma tem-se que o acesso à justiça, segundo a abordagem processual, institucional e substantivista é visto na sua relação de prestação de serviço inerente à organização das sociedades, e não enquanto acesso amplo aos direitos, mas estritamente à instituição da justiça: ao fenômeno social da justiça incorporado numa instituição material da sociedade.

O segundo grande tema da sociologia dos tribunais é a própria administração da justiça, visando analisá-la enquanto instituição política e profissional. Aqui há possibilidade teórica de investigação quanto à formação contínua e ideológica dos magistrados e do corpo de funcionários que compõem a justiça.

O terceiro grande tema é a análise dos conflitos e os mecanismos de sua resolução. Isto é, a indagação sobre a multiplicidade de tipos e formas de conflitos sociais e suas respectivas formas de resolução, de solução apresentada como oficial. Aqui tem-se a grande safra de pesquisas acerca das formas alternativas de resolução de conflitos.

Por ora já é notória a importância das pesquisas empíricas para a construção

65 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2006, p.166 e ss.

e o enriquecimento da sociologia dos tribunais. Se esta última lida com conteúdos fáticos mutáveis no tempo e no espaço, nem sempre constantes nas normas e nem sempre relacionados à eficácia destas, é evidente que a investigação de campo traz para tais pesquisas dados que a constroem. Diz-se até que o desenvolvimento da sociologia do direito de forma geral se deu principalmente a partir das pesquisas empíricas realizadas no pós-guerra.66

A análise sociojurídica processual, institucional e organizacional enquanto proposta teórica a que se faz referência aqui é sem dúvidas de cunho estrutural, interdisciplinar, dotada tanto de dados empíricos como de construções teóricas. Chega-se, em vista disto, à compreensão teórica do acesso à justiça enquanto possibilidade teórica da sociologia dos tribunais no interior da própria sociologia do direito. É verdade que o surgimento tanto da sociologia do direito (em seu sentido contemporâneo) no pós-guerra quanto o desenvolvimento de uma sociologia dos tribunais obtiveram seus reflexos nos campos de pesquisas sociológicas no Brasil. É o que se verá adiante.