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Eu te procurei em dicionários e não encontrei teu significado. Onde está teu sinônimo no mundo? Onde está o meu sinônimo na vida? Sou impar.

Clarice Lispector463

A obra de Clarice Lispector nos revela o que Rainer Maria Rilke tem como modelo de existir. Para ele, em tudo o que você tiver de fazer e agir a grande solidão será remissão, “ela agirá ininterrupta e silenciosamente como uma influência anônima, assim como o sangue dos antepassados se movimenta em nós constantemente, misturando-se ao nosso e formando com ele a coisa única e irrepetível que somos em cada curva de nossa vida”.464 Clarice elege a solidão á categoria de entendimento da condição humana. Silviano Santiago nos diz que “Clarice erige o lugar da solidão como o laboratório experimental onde se pode melhor trabalhar as injustiças da sociedade contemporânea, envolvendo os materiais da pesquisa – homens e as coisas em estado de palavra – num clandestino amor”465. Ela elege a solidão como o lugar por excelência a partir do qual se pode por em questão o individuo e a sociedade, onde todas as dobras e perfis da condição humana são expostos a uma nudez que desmaterializa as realidades construídas.

A solidão, assim como a cultura, a história e o amor estão à frente e atrás de nós, sustentando-nos em nossos esparsos fios e na obra de Clarice constitui não apenas a tessitura interna dos personagens, mas condição primeira para pensar o ser, a existencialidade e a sociedade. Para a escritora ser é isolar-se pelo existir, “Ser só é um estado de ser”466, mas ter um corpo é dar-se e o homem aparece no mundo como um dar-se, dando-se.

No geral temos poucos estudos sobre solidão, mas temos também muito falatório sobre, o que contribui para banalizar a questão. Os estudos mais significativos estão na área da psicologia e psicanálise, embora o terreno comum da arte e da

463 LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida: (Pulsações). op. cit. p. 71. 464 RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. op. cit. p. 75.

465 SANTIAGO, Silviano. A aula inaugural de Clarice Lispector. Caderno mais!: Folha de São Paulo,

domingo/12/1997.

literatura seja a solidão. Dentre os trabalhos mais ricos podemos destacar o de Melanie Klein, Françoise Dolto e especialmente Donald Winnicott. Para este, geralmente fala-se muito do medo de ficar só, do desejo de ficar só, dos estados de reclusão, das organizações defensivas, do abandono, do isolamento social ou individual, mas a solidão em si, a capacidade para ficar só, pouco se trabalha.

Winnicott defende que para que a criança consiga estabelecer com o mundo e com os outros, laços que lhe dêem a sensação de constituir o próprio mundo se sentindo seguro quanto a precariedade da condição humana, se faz necessário que seus primeiros contatos com o mundo forneça um ambiente seguro, sobretudo em confiança e amor físico. Para ele,

(...) alguns bebês tem a sorte de contar com uma mãe cuja adaptação ativa inicial à necessidade foi suficientemente boa. Isto os capacita a terem a ilusão de realmente encontrar aquilo que eles criaram (...) depois que a capacidade de relacionamento foi estabelecida, estes bebês podem dar o próximo passo rumo ao reconhecimento da solidão essencial do ser humano467.

Caso esse primeiro momento não seja cumprido como cuidado e uma atenção suficientemente boa, a capacidade de criar vínculo do homem pode ficar comprometida. Para o psiquiatra, os “Bebês que tiveram experiências um pouco menos afortunadas vêem-se realmente aflitos pela idéia de que há um contato direto com a realidade externa. Pesa sobre eles o tempo uma ameaça de perda da capacidade de se relacionar (...)”468. Tais bebês crescem sem qualquer capacidade de ilusão de contato com a realidade externa; ou então esta sua capacidade é tão frágil que facilmente se quebra num momento de frustração, dando margem ao desenvolvimento de uma doença esquizóide.

Nesta análise, o problema da solidão é o problema do relacionamento inicial com a realidade externa, pois a solidão inicial é a base sobre a qual a solidão ‘sofisticada’ se constrói. A relação da criança com a mãe ou substituto é o substrato a partir do qual a amizade é feita, daí a importância do ‘ambiente facilitador’, como Winnicott denomina, ambiente que requer qualidade humana e não perfeição técnica. No inicio da vida há

467 WINNICOTT, D. W. Natureza humana. op. cit. p. 135. 468 Ibidem. p. 136 ss.

uma relação de interdependência quase absoluta entre o bebê e quem cuida dele e se o ambiente facilitador não for satisfatório, rompe-se a linha da vida e a criança terá serias dificuldade para viver uma plenitude pessoal.469

Por tudo isso, podemos afirmar que na visão de Winnicott a capacidade para o individuo ficar só é um dos indicativos mais significativos do desenvolvimento emocional do homem. Françoise Dolto nos diz que “Tanto a solidão que impede de estruturar-se quanto a que estrutura devem ser buscadas lá atrás, e não no momento em que estão sendo vividas.(...) Um ser humano não pode viver sem sentir solidão; não pode está constantemente com alguém”470

De um modo geral costuma-se afirmar que há uma solidão pesada ou ‘ruim’ e outra que é ‘criativa’ ou boa, ou uma solidão que estrutura e outra que dilacera, ou ‘solidão verdadeira’ e ‘falsa solidão’. A solidão pesada ou ‘ruim’, decorre do fato de não conseguirmos estabelecer com os outros e com o mundo relações que nos assegure a existência deles e daí, a nossa, visto que eu não existo sem o outro471, e aí “o indivíduo vinga-se da sociedade transformando sua individualidade numa arma destruidora”472.

Já o que denominamos ‘solidão criativa’ ou boa, ou solidão que estrutura, é a possibilidade que o homem tem de ensimesmar-se e ouvir-se para agir ou apenas para dar a si um mundo mais pessoal, menos anônimo. Esta solidão é a base para toda manifestação forte como é o caso da arte. Ela é a condição primeira para criar o que dura.

Solidão quer dizer que o homem é só, nasce só e morre só e o que ele fizer de si ao logo de sua existência é uma resultante da capacidade de transcender tal condição fundante.473 As classificações que tecemos: ‘boa’, ‘ruim’, ‘que estrutura’, ‘que dilacera’, ‘solidão criativa’, ‘falsa’ ou ‘verdadeira solidão’ são resultante do modo como o homem lida com a experiência originário de ser só, como ele transcende a isso. Transcender

469 Cf. WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa. op. cit.

470 DOLTO, Françoise. Solidão. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 435.

471 “Por mais que nos ausentemos do mundo, o nosso eu não existe sem o outro, ele se constrói numa relação”, ele

mesmo é relação. REZENDE, A. Paulo. ‘História, solidão e modernidade’. In, Territórios e Fronteiras - Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, vol. 5 n.1 jan-jum/2004 – Cuiabá – MT. p. 222.

472 Clarice citando Thomas merton em A descoberta do mundo. ‘Solidão e falsa solidão’. op. cit. p.2002.

473 “A solidão faz parte da condição humana, na sua acepção, e é uma atitude de estranhamento diante das coisas do

mundo, uma busca de refúgio, mas não necessariamente um ato de desistência ou de finalização da história. A solidão é fundante”. A. Paulo Rezende. ‘História, solidão e modernidade.’ op. cit. p. 222.

não significa livrar-se da condição originária, abandoná-la, emancipar-se como se tal não fosse começo e, portanto, inerência, significa aprender a viver na ponte entre ser- só e ser-com. Melanie Klein em O sentimento de solidão: nosso mundo adulto e outros

enganos, texto onde trata dos limites e ampliação da vida psíquica, nos diz que

(...) conquanto o sentimento de solidão possa diminuir ou aumentar pelas influências externas, ele nunca pode ser completamente eliminado, porque a tendência para a integração, assim como o pesar experimentado nesse mesmo processo, brotam de fontes internas que continuam operantes pela vida a fora.474

Em Clarice Lispector, por exemplo, essa “... transcendência (...) é uma espécie de mergulho nas potências obscuras da vida”475: “Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza”.476 Transcender aqui é a perplexidade face aos mistérios da natureza, que, mesmo após desvendados não cessam jamais de provocar encantamentos ao homem. É o poder de ensimesmar-se que o faz sentir-se como imanência e transcendência, estando imantado do mistério e da fala. Transcender é criar vínculos de entendimento que aceite o ininteligível como inerente à existência de homem e mundo, desde sempre sabendo e para nunca esquecer que o mistério não nos condena ao silêncio.

O que chamamos solidão pesada ou ‘ruim’ está relacionado com as dificuldades no processo de formação e amadurecimento da personalidade que, impedindo-nos de criar vínculos significativos com o mundo, impede-nos de pertencer477. Na visão de Françoise Dolto, o “... adulto está na solidão que destrói quando não tem vida simbólica suficiente para si”478, isso porque a vida simbólica possibilita a superação da condição primeira instalando-nos no mundo. Para ela, “é no passado que a comunicação deve ter sido cuidada, se não quisermos estar no futuro impossibilitados de suportar a

474 KLEIN, Melanie. O sentimento de solidão: nosso mundo adulto e outros enganos. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

p. 156.

475 NUNES, Benedito. O dorso do tigre. op. cit. p. 138.

476 LISPECTOR, Clarice. ‘A descoberta do mundo’. In, A descoberta do mundo. op. cit. p.115.

477 Para Clarice Lispector ‘pertencer é viver’. Ver ‘Pertencer’, crônica publicada em A descoberta do mundo. op. cit.

p. 110.

solidão de maneira criativa.”479 É pela linguagem que nos abrimos enquanto humanos à existência e pertencemos a nós mesmos e aos outros.

Já para Clarice Lispector a solidão de não pertencer é talvez a mais grave de um homem porque o deixa todo só, sem ao menos saber o que é solidão. Hannah Arendt em Origens do totalitarismo, refletindo sobre a perda das raízes e o que isso acarreta para o homem enquanto singularidade e universalidade, nos diz que

Não ter raízes significa não ter no mundo um lugar reconhecido e garantido pelos outros; ser supérfluo significa não pertencer ao mundo de forma alguma. O desarraigamento pode ser condição preliminar da superfluidade, tal como o isolamento pode (mas não deve) ser condição preliminar da solidão.480

A solidão, seja na acepção negativa, seja na positiva é um fenômeno resultante da consciência do ser separado, do ser si mesmo e portanto, diferente. Segundo Octávio Paz, nossa “... sensação de viver se expressa como separação e ruptura, desamparo, queda num âmbito hostil ou estranho. À medida que crescemos, esta sensação primitiva se transforma em sentimento de solidão”.481 Esta solidão primeira da ruptura não se confunde com isolamento porque somos recebidos pela cultura e nesta iniciamos nossos primeiros passos, também não se confunde com o isolamento social a que mais e mais as sociedades tecnocentricas expõem seus indivíduos, pois este é resultado de uma opção histórica pela técnica enquanto modelo para a construção da sociedade. Na visão de Antonio Paulo Rezende

Na pós-modernidade, os homens repartem seu mundo, de forma cada vez mais estreita, com as máquinas que inventou. Com elas também repartem sua solidão, talvez a multipliquem, pois as máquinas representam os outros, uma forma de torná-los presentes, de firmar sua surpreendente comunhão.482

Na contemporaneidade, o processo cada vez mais amplo de tecnicização do mundo e, por conseguinte, do homem, tem exercido sobre as relações humanas uma

479 Ibidem. p. 447.

480 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 528. 481 PAZ, Octávio. O labirinto da solidão e post scriptum. op. cit. p. 175.

influência no modo como essas são constituídas e organizadas, a tal ponto de podermos afirmar com Hannah Arendt

(...) a época moderna com sua crescente alienação do mundo conduziu a uma situação em que o homem, onde quer que vá, encontra apenas a si mesmo. Todos os processos da terra e do universo se revelaram como sendo ou feitos pelo homem ou pontecialmente produzidos por ele.483 O homem, sobretudo nos últimos cinqüenta anos, provocou mudanças tão radicais na configuração da terra, como denuncia Hannah Arendt em A condição

humana, que efetivou uma fuga seja para a exterioridade, o fora do planeta, seja para a

interioridade, o núcleo da célula, o domínio do envelhecimento e portanto, da própria morte484. Essa ‘fuga’ da existência na terra se institui porque o domínio da técnica que se instala amplamente como dominante pela racionalidade instrumental, tem sistematicamente nos excluído como autônomos na fundação do mundo e das coisas. Tratamos a técnica como um fenômeno neutro, mas sua expansão universal vem negar isso. Na visão de Umberto Galimberti, “A técnica não é neutra, porque cria um mundo com determinadas características com as quais não podemos deixar de conviver e, vivendo com elas, contrair hábitos que nos transformam obrigatoriamente”485.

É bem verdade que estamos entregues à técnica quando a consideramos como algo neutro, quando deixamos de tomá-la como meio para um fim e um fazer humano e a transformamos em um fim em si mesmo. Tal compreensão é vista por Heidegger como a “...determinação instrumental e antropológica da técnica”486 que invade todos os setores da vida humana e proporciona uma profunda intertroca de ações, pensamentos e experiências, mas também abre um fosso nas nossas relações. Ainda segundo Umberto Galimberti,

483 ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. op. cit. p. 125s

484 Para Hannah Arendt, “Recentemente, a ciência vem-se esforçando para tornar ‘artificial’ a própria vida, por

cortar o ultimo laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta, no desejo de misturar, ‘sob o microscópio, o plasma seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes a fim de produzir seres humanos superiores’ e ‘alterar(-lhes) o tamanho, a forma e a função’; e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos”. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 10ss.

485 GALIMBERTI, Umberto. Psique e Techne: o homem na idade da técnica. São Paulo: Paulus, 2006. p. 8. 486 HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. op. cit. p. 43.

Pelo fato de habitarmos um mundo em que todas as suas partes estão tecnicamente organizadas, a técnica não é mais objeto de uma escolha nossa, pois é o nosso ambiente, onde fins e meios, escopo e idealizações, condutas, ações e paixões, inclusive sonhos e desejos, estão tecnicamente articulados e precisam da técnica para se expressar487.

A técnica funciona, ela “não tende a um objetivo, não promove um sentido, não abre cenários de salvação, não redime, não desvenda a verdade: a técnica funciona” e seu funcionamento se torna planetário num duplo foco488, de descortínio e de ocultamento das coisas e se nos entregarmos ao seu funcionamento como última palavra sobre o real, então a reduziremos a seu caráter de isolamento social, mas isto não constitui sua essência. Sua função inaugural é libertar o homem face as necessidade que os limites da natureza lhe impõe. Neste sentido a técnica é um elemento constitutivo da essência humana489.

De acordo com isso poderíamos fazer uma leitura da solidão como decorrência do desenvolvimento técnico e comunicacional das sociedades contemporâneas e o conseqüente isolamento que elas geram, mas não podemos reduzir a solidão a tal sob pena de apequenarmos a existência. Na visão de André Comte-Sponville, “...a solidão não é o isolamento (...) Ser isolado é não ter contatos, relações, amigos, amores – o que, evidentemente, é uma desgraça. Ser só é ser si mesmo, sem recurso, se é a verdade da existência humana”.490 A solidão devolve-nos à verdade de ser: a verdade que por sua vez, é “... a discussão mais intrínseca á essência humana” (...) ela “... conjuntamente enraizada no destino do ser-aí.(...) é algo velado, e, como tal, o mais elevado”491. Mas Clarice Lispector no diz em Água viva, “... enquanto eu tiver a mim não estarei só.”492

Numa rápida análise histórica nos damos conta que nas sociedades primitivas a experiência da solidão é redimida pela necessidade constante da existência da comunidade como modo de segurança da espécie. No ocidente, mais especificamente a partir da Idade Média, a solidão foi vista com desconfiança, pois não havia espaço

487 GALIMBERTI, Umberto. Psique e Techne: o homem na idade da técnica. op. cit. p. 8. 488 Ibidem. p. 40.

489 Cf. HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. op. cit.

490 COMTE-SPONVILLE, André. O amor e a solidão. op. cit. p. 29.

491 HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude e solidão. op. cit. p. 36. 492 LISPECTOR, Clarice. Água viva. op. cit. p. 85.

para a intimidade individual que é condição primordial para a experiência da solidão. A ênfase era na individualidade da família voltada para o sacro-santo.

No renascimento e, sobretudo, na modernidade, o tempo é o da urgência, do fazer, do produzir coisas, e aí novamente a solidão foi rechaçada a um plano inferior e só permitido às crianças, aos velhos, aos artistas, aos loucos: todos excentricidades à normalidade que cria a amorosidade ‘sadia’, o modo mais fácil de caber num sistema. É essa consciência que vive Ana, do conto O amor, de Clarice Lispector para quem a vida se apresenta com amorosas coleiras criadas para nos defender da novidade que é viver: “E por um instante a vida sadia que levava até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver”493 com laços e coleiras vistos com amor e compreensão.

Em nossa época, que tem como égide a equação de que solitário é igual a

fracassado, o pânico é ao fato não apenas de estar só, mas à sensação terrificante de

desamparo pessoal e social, de não pertencer a uma instituição, a alguém, de estar dentro de um contexto onde não se possa ser reconhecido como aquele que faz, aquele que brilha, que é comentado. O impacto dessa equação é avassalador para a subjetividade, todos querem fugir do estigma social da inércia e para isso criam todo tipo de subterfúgios que impedem a experiência de solidão, basta apenas que recordemos a planetária indústria do entretenimento especializada em nos manter ocupados já que o trabalho ou a falta dele nos mantém constantemente pré-ocupados. Na visão de Rilke, nesse tipo de contexto “Não é apenas a preguiça que faz as relações humanas se repetirem numa tão indizível monotonia em cada caso; é também o medo de algum acontecimento novo, incalculável, frente ao qual não nos sentimos bastante fortes”.494 Nesse tipo de relação se dá um empobrecimento das relações dos homens entre si resultado do empobrecimento do homem em si, dando margem a denúncia que Clarice faz em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres: “... nós, os macacos de nós mesmos. Nunca atingiríamos em nós o ser humano”.495 Nós que sabemos tão bem imitar o ‘sucesso’ dos outros que chegamos a ser o que os outros nos vêm ser pelas lentes de si mesmos.

493 LISPECTOR, Clarice. O amor’. In, Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 26. 494 RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. op. cit. p. 66.

Queremos fórmulas que funcionem como qualquer instrumento técnico. Colocamos nossos destinos nos desígnios dos aparatos técnicos e nos redimimos de termos uma posição sobre. Colocamos-nos como anônimos no mundo e assim nos assumimos, e por isso sentimos a solidão como peso, ameaça a esse castelo de cascas secas dentro do qual edificamos a existência. Para Anthony Storr, a ênfase excessiva que damos hoje aos relacionamentos interpessoais, são já uma decorrência desse empobrecimento da relação do homem para consigo, onde a “... nossa atual preocupação e angústia pelos relacionamentos humanos substituíram a antiga ansiedade a respeito da condição imprevisível e precária do mundo natural”.496 A ordem imprevisível e precária do mundo foi ao longo dos séculos se petrificando no emaranhados de conceitos que criamos para nos sustentar, aliviar, nos justificar e nos ocuparmos no mundo. Nesse movimento, a grandeza interna de homem e mundo é solapada pelas sucessivas ordens instituídas como podemos ler nas palavras de Heidegger: “... todos e cada um de nós somos os funcionários de uma palavra de ordem, assim adeptos de um programa, mas nenhum de nós é gerenciador da grandeza interna do ser-aí e de suas necessidades.”497

Somos funcionários de uma palavra de ordem que impõe a todos um conceito de felicidade, de amorosidade e de realização que tem na sua origem a impossibilidade de se efetivar. Daí todo o desespero por não conseguirmos acompanhar a idéia que se faz de um homem feliz, que não sofre, e além de tudo está conforme os padrões de beleza. Tal vivência nesse mundo gera uma base conflitante esmagadora, que, se o sujeito não tiver a experiência da solidão, não conseguirá avaliar dentre as ‘coleiras’ sociais, as que são imprescindíveis. Tal experiência vive em profundidade os personagens de Clarice que irrompem de suas solidões para nos mostrar a fragilidade de tal mundo.

Donald Winnicott vai nos dizer que a capacidade de ficar só é na verdade uma