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Solidariedade expressa a partir da mutualidade e reciprocidade

CAPÍTULO III – ARTE TECENDO HISTÓRIA

3.2 Solidariedade expressa a partir da mutualidade e reciprocidade

As mulheres que confeccionam o artesanato na associação não possuem carteira de trabalho e ganham de acordo com a quantidade de peças elaboradas, trata-se, consequentemente, de um trabalho informal. Setor formado por pequenas atividades urbanas que geram renda em mercados desregulamentados, competitivos e nos quais é por demais difícil a distinção entre trabalho e capital. Para Jakobsen, Martins e Dombrowski (2001, p.13-14), “[...] essas atividades se utilizam de pouco capital, técnicas rudimentares e mão de obra de baixa qualificação. Também proporcionam empregos instáveis de reduzida produtividade e baixa renda”.

É nesse contexto de informalidade que as atividades acontecem na CQJBV, cujas características principais são a baixa rigidez organizacional, pouca complexidade estrutural e a pequena divisão de trabalho. As formas de observação das atividades realizadas para a confecção do artesanato indicam que estas são individualizadas, autogestionadas, amplamente caracterizadas por relações de trabalho familiares, sem clara divisão entre trabalho e gestão e, raramente apresentam formas assalariadas de trabalho. Para França Filho (2004) experiências como essas que ocorrem entre os membros da comunidade são:

[...] marcadas por uma dinâmica comunitária do ponto de vista interno, mas ao mesmo tempo abertas ao espaço público - isto é, voltadas para o enfrentamento de problemáticas públicas locais -, são alguns elementos que parecem constituir uma primeira característica central do fenômeno da economia solidária (FRANÇA FILHO, 2004, p. 3).

Para os membros da comunidade, uma Economia Solidária deve ser pautada em práticas de produção, consumo e finanças orientadas pelos princípios da autogestão, isto é, da plena igualdade de direitos sobre o empreendimento de todos. Os participantes são o melhor caminho a ser seguido na produção do artesanato

visto que, como nos aponta Singer (2000), o trabalho coletivo, a confiança e a ajuda mútua são essenciais para que possam competir, e não é possível que haja aqueles que se beneficiam em função de outros.

A Economia Solidária mostrou-se como uma opção para aquelas quilombolas, que, num contexto de grande desocupação estrutural, buscaram mecanismos geradores também de autonomia.

A Economia Solidária seria uma forma de organização econômica, que incorporaria os valores da democracia dentro do contexto econômico, prezando pelo trabalho coletivo, pela igualdade entre os membros, pela divisão do poder de decisão, pelos iguais direitos diante de decisões, pela fidelidade na representatividade do grupo, sendo a igualdade e a democracia elementos centrais deste novo movimento econômico. Nesse processo, reúne-se um conjunto de iniciativas econômicas privadas direcionadas para o interesse coletivo e baseadas na solidariedade e na cooperação, sendo realizada a elaboração conjunta da oferta e demanda a partir dos espaços públicos de proximidade, os quais favorecem uma rearticulação econômica, social e política (RAMOS, 2011, p. 8). Para o grupo, a Economia Solidária reacende a ideia de coletividade, de práticas geradas para proporcionar ganhos fora do assalariamento formal, envolvendo ações de mulheres que sempre viveram à margem dos direitos trabalhistas. Neste tipo de práticas, a gestão do empreendimento é feita pelos interessados, bem como a propriedade social dos meios de produção, além do fato de que o controle do empreendimento e o poder de decisão, pertencer ao conjunto de trabalhadores (GAIGER, 2003).

Agregação social que elas criaram promove a mutualidade e reciprocidade no ambiente, pois, nessa condição, há uma racionalidade na qual a proteção àqueles que precisam trabalhar torna-se vital. Além disso, propicia-se uma experiência efetiva de dignidade e equidade. Dessa forma há:

[...] maior interesse e motivação dos associados, o emprego, mutuamente acordado, da maior capacidade de trabalho disponível, a divisão dos benefícios segundo o aporte em trabalho, são fatos relacionados com a cooperação, no sentido de acionar ou favorecer um maior rendimento do trabalho associado (GAIGER, 2003, p. 192- 193).

Relevante sobressair também que, o trabalho consorciado “[...] age em favor

dos próprios produtores e confere à noção de eficiência uma conotação bem ampla, referida igualmente à qualidade de vida dos trabalhadores e à satisfação de objetivos culturais e ético-morais” (GAIGER, 2003, p. 192).

Figura 18 - Trabalho coletivo envolvendo a confecção das bonecas.

Fonte: Arquivo próprio. Fevereiro de 2018.

A utilização de uma mesa proporciona maior interação e diálogo entre as artesãs (Figura 18). Percebemos que se trata de momentos prazerosos nos quais há identificação entre criador e criatura, da mesma força em se reforçam os laços de companheirismo e amizade das mulheres. Praticar o trabalho coletivo parece nutrir a autogestão dos negócios associada à divisão dos benefícios de acordo com a produção individual. Esse formato de gestão e de trabalho leva a um maior interesse e motivação entre as associadas.

Ressalta-se que, por meio desta escolha, as mulheres deixam a condição de agentes passivos de benefícios, à perspectiva de agentes protagonistas do seu viver (SOUZA, 2011). Além disso, o trabalho é enriquecido pelos aspectos cognitivos e afetivos criados entre os membros. Logo, nesse tipo de organização do trabalho, as mulheres têm as condições necessárias, mesmo que exista precariedade na integração da atividade laboral e doméstica. A autogestão das atividades permite a conciliação entre as atividades da casa e a produção artesanal.

Apesar de funcionar em um imóvel cedido pela prefeitura em regime de comodato, alguns trabalhos são feitos na casa das mulheres, aproveitando os momentos de folga dos trabalhos domésticos. A identificação com os objetos produzidos faz com que essas mulheres se reencontrem com fragmentos de um modo de vida que ao mesmo tempo altera seus conhecimentos e habilidades,

reafirma suas identidades e pertenças aos espaços vividos. Desta forma, há uma apropriação simbólica e ideológica do território que propicia e cristaliza a territorialidade, o sentimento de pertencimento do sujeito ao lugar (ALMEIDA, 2008). Por conseguinte, a confecção do artesanato propicia a criação de relações sociais e políticas que se constituem em mecanismos sociais de união e cooperação. São no conjunto das relações sociais, importantes ferramentas para a organização e apropriação do território. Percebe-se que a produção artesanal, com a marca da comunidade, proporcionada pela icnografia criada para os quilombolas daquele lugar, se constituiu em elemento para a reafirmação da identidade cultural. “Identidade essa construída pelas múltiplas relações-territorialidades que se estabelece todos os dias e isso envolve as obras materiais e imateriais que produzimos” (SAQUET; BRISKIEVICZ, 2009, p. 8).

Há que se destacar também que a realização do trabalho em grupo proporciona trocas de saberes entre os membros, em que cada uma expõe como realiza o trabalho, evidenciando novos conhecimentos que contribuem para o aprimoramento das peças produzidas. A experiência trazida por cada uma contribui para o crescimento do grupo. Além disso, mais do que uma forma de obtenção de renda, o trabalho desenvolvido via Economia Solidária é uma forma de se conquistar a autonomia das mulheres da comunidade.

O modo de vida envolvendo o trabalho desenvolvido pelas mulheres na ACQUJBV evidencia essa busca por uma organização dos processos produtivos envolvendo o artesanato. No grupo, a identidade, os valores humanos e relações sociais locais, são tomados como norteadores de seus propósitos. Nessa lógica de trabalho, os vínculos coletivos são estreitados na medida em que as atividades laborais são desenvolvidas, visto que há uma perspectiva de produção voltada para o mercado. Contudo, os arranjos e estratégias socioprodutivas são estabelecidas em sintonia com suas pertenças, cultivadas no interior daquele grupo social.