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PARTE I: ENQUADRAMENTO TEÓRICO-CONCEPTUAL

3. RELAÇÕES INTERGERACIONAIS

3.1. SOLIDARIEDADE PÚBLICA E SOLIDARIEDADE PRIVADA ENTRE

O aumento da esperança de vida que se fez notar desde o século passado e que vai continuar, prolonga o período em que os idosos necessitam de cuidados, permanecendo a família a fonte primária de cuidado aos idosos. No entanto, surgiu a percepção de que a família tem menos vontade de cuidar dos seus parentes idosos do que antes. Nos anos 90 foi realizado um estudo ao nível da União Europeia, no qual se verificou que este era o ponto de vista que prevalecia juntos dos idosos, sendo que 1/3 dos inquiridos concordava fortemente e outro 1/3 concordava levemente com esta ideia. Este resultado é da maior importância porque aponta para uma preocupante percepção junto dos cidadãos sénior, uma vez que não há evidências objectivas da redução da vontade de cuidar. Contudo, como um resultado das alterações a nível da estrutura e composição familiar pode tornar-se menos possível o Cuidar em algumas circunstâncias (Walker, 2002).

Lopes (2006), ao fazer referência ao mesmo estudo citado pelo autor anterior, acrescenta ainda que é em Portugal e Espanha que se verificam os maiores índices de idosos a concordarem com a afirmação de que as famílias têm menos vontade de cuidar dos seus parentes idosos do que antes, justificando que estes resultados podem ser devido ao facto dos idosos apresentarem altas expectativas em relação às suas famílias e/ou percepções crescentes das rápidas alterações a nível da solidariedade familiar. Contudo, apesar destes

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resultados, verifica-se que tanto em Portugal, como em Espanha, a fonte de cuidado primária são os filhos ou os cônjuges, sendo dois dos países europeus que apresentam maiores percentagens de apoio informal (Lopes, 2006). Também Silverstein, Gans e Yang (2006) consideram que a família continuará a ter um papel crucial no cuidar dos familiares idosos e consequentemente esta actividade é mais comum para os filhos adultos, sendo estes aqueles que continuam a ser os principais prestadores de saúde e suporte social a longo termo.

A solidariedade entre as gerações é representada de duas formas distintas de expressão: pública e familiar. A solidariedade ocorre no sector público, via instituições como a segurança social. Este tipo de solidariedade também pode ser denominado de “contrato geracional”, uma vez que os actuais pensionistas recebem benefícios que estão a ser pagos com o salário contribuído actualmente pela população trabalhadora (Rein, 1994). Também as transferências privadas entre as gerações familiares adultas são uma parte importante da ligação intergeracional na sociedade moderna, sendo de especial interesse a articulação entre estas transferências com as transferências públicas do Estado Providência (Kohli, Künemund e Vogel, 2005), o qual se refere ao “[…]direito a gozar de um certo padrão mínimo de bem-estar e de segurança que o Estado deverá assegurar mediante adequadas políticas sociais (no domínio da saúde, da velhice e de desemprego)” (Hespana, 1995, cit. Gil, 1998: 8). Assim, torna-se imperativo questionar se o contrato geracional público redefiniu, estreitou ou enfraqueceu a solidariedade intergeracional privada entre os pais idosos e os seus filhos adultos.

Pode o domínio público reforçar as transferências intergeracionais existentes tanto entre filhos adultos e seus pais idosos como nos pais idosos e os seus filhos adultos e netos, ou restringir estas? Por outras palavras, pode ser desenvolvida a política pública de “crowding in” (encorajamento) em vez de “crowding out” (substituição)? A controvérsia entre aqueles que acreditam que as provisões públicas restringem a provisão familiar, denominando-se o processo de “crowding out”, e aqueles que acreditam que a ajuda pública não só não retira a família, como ainda contribui para reforçar e encorajar a solidariedade familiar, cujo processo é identificado como “crowding in”, tem originado uma elevada pesquisa no sentido de comprovar cada uma destas posições (Rein, 1994; Motel-Klingebiel, Tesch-Roemer e Kondratowitz, 2005).

Com a modernização, o desenvolvimento do Estado restringiria o apoio privado da família - “crowding out”. Contudo, evidências recentes apontam para uma conclusão oposta: as provisões do Estado Providência, longe de restringirem o apoio familiar, ainda habilitam a família a providenciar novos apoios e transferências intergeracionais – “crowding in” (Kohli, Künemund e Vogel, 2005). Sendo assim, é imperativo definir duas hipóteses gerais: a

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hipótese da substituição e a hipótese da complementaridade, a qual se subdivide em suporte familiar e especialização familiar.

A hipótese da substituição é reflectida na formulação teórica da relação entre família e Estado Providência. Neste sentido, é necessário fazer referência à hipótese compensatória hierárquica, na qual a família é o apogeu das preferências sobre quem deverá prestar o cuidado, sendo esperado que apenas sejam utilizados as pessoas mais afastadas e os serviços quando o topo da hierarquia não está disponível (Cantor e Little, 1985 in Daatland e Herlofson, 2003). Aqui a responsabilidade familiar é assumida como primária, enquanto o Estado Providência toma um papel residual e funciona como uma rede de segurança que é activado quando os recursos familiares são insuficientes para garantir a provisão mínima - princípio da subsidiariedade (Lopes, 2006). Nesta hipótese, está subjacente a ideia de que as responsabilidades familiares e cívicas são desencorajadas com a expansão e o desenvolvimento de novos serviços, ficando a obrigação moral de prestar apoio mútuo dentro da família deteriorada caso estejam disponíveis outras alternativas de apoio fora da família (Lowenstein e Ogg, 2003). Os autores citam mesmo Wolfe (1989, in Lowenstein e Ogg, 2003), o qual designou este quadro de “risco moral do Estado Providência”. Assim, a teoria da substituição sustenta que quando o Estado providencia cuidado, a solidariedade familiar declina, sendo também esta teoria referida como a hipótese “crowding out” (Van der Pas, 2006).

A posição alternativa é que as famílias reduzem a sua responsabilidade se tiverem essa oportunidade, contudo sem se afastarem completamente, sendo a ênfase dada à complementaridade entre apoio familiar e apoio de serviços públicos (Van der Pas, 2006). Portanto, a teoria de complementaridade diz-nos que a família apresenta mais vontade de prestar ajuda, e os idosos mais vontade de a aceitar, quando o fardo não é tão pesado. Os serviços ao partilharem a sobrecarga do cuidado com a família reforçam o comprometimento desta, assim como os destinatários do cuidado também estão mais receptivos a aceitar a ajuda familiar uma vez que se sentem menos um peso para a família (Lowenstein e Ogg, 2003; Van der Pas, 2006). Assim, a ajuda familiar é encorajada através da provisão de serviços públicos, verificando-se os efeitos da hipótese “crowding in” (Motel-Klingebiel, Tesch-Roemer e Kondratowitz, 2005).

Em relação à segunda variante da hipótese de complementaridade, a especialização familiar, é referido que cada rede formal e informal especializou-se em distintas competências, sendo que as famílias se concentram no apoio emocional e os serviços públicos no apoio instrumental (Van der Pas, 2006). Assim, famílias e serviços desempenham papéis diferentes no sistema de cuidado, sendo este modelo baseado na ideia Parsoniana da diferenciação estrutural da família moderna, na qual “[…]as

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necessidades sócio-emocionais substituíram as funções instrumentais no cerne da família pós moderna” (Lowenstein e Ogg, 2003: 283).

Tanto os argumentos teóricos como empíricos não suportam a hipótese da substituição “crowding out” e, em parte, suportam a hipótese inversa, nomeadamente que existe o processo de “crowding in” – hipótese de complementaridade/encorajamento - nas relações entre o Estado e a família. Generosos sistemas de Providência fornecem os recursos à família para que ajudem a aumentar, e não a enfraquecer, a solidariedade (Kohli, Künemund e Vogel, 2005; Lowenstein e Ogg, 2003). Já Daatland (1991, cit. Rein, 1994), argumenta que existe o efeito destas duas hipóteses ao longo do ciclo de vida, ou seja, por vezes é a família que faz tudo, outras vezes é o Estado ou há uma partilha de tarefas entre o Estado e a família. Desta forma, torna-se pertinente compreender as diferentes políticas a nível da organização dos modelos de cuidado social existentes nos países da UE, sendo que Grammenos (2007) os divide em três grupos:

 Modelo de responsabilidade do Estado: característico dos países escandinavos e da Inglaterra. O cuidado familiar é cada vez mais incomum, enquanto os serviços públicos são providenciados. Este modelo, à primeira vista, parece favorecer a participação laboral enquanto os cuidadores são assistidos por serviços públicos.  Modelo de cuidado familiar: nos países onde o modelo de cuidado familiar é

dominante (Portugal, Espanha, Grécia, Itália), a família é a principal provedora de cuidado social e o Estado apenas providencia serviços muito modestos. Este modelo pode constituir um obstáculo à participação laboral por parte dos cuidadores.

 Modelo subsidiário: a família é a principal responsável pelo cuidado ao idoso com o intermediário de organizações que fornecem serviços que podem substituir o cuidado informal quando necessário (Holanda, Alemanha, Bélgica, e França).

Pode-se então dizer que a introdução de serviços contribuiu mais para uma mudança da forma como as famílias apoiam os seus idosos, sendo que através da combinação entre serviços e cuidado familiar é mais possível ir ao encontro das necessidades do idoso, comparando com um sistema de cuidado dominado pela família. Os serviços não desencorajam a ajuda familiar, em vez disso, eles demonstram mais em produzir um equilíbrio do esforço familiar em relação a outras necessidades e preocupações, e até talvez ser um estimulante para as trocas intergeracionais.

4. SOLIDARIEDADE FAMILIAR INTERGERACIONAL - CONSTRUÇÃO DO MODELO