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2 A ARTE IMITA A VIDA: OS CENÁRIOS E OS PALCOS DA VIDA

2.1. DELINEAMENTO TEÓRICO E METODOLÓGICO

2.1.1 Somos todos artistas

Quando a arte dá voz às esperanças e às aspirações imediatas da humanidade, adquire significado social. (...) A arte encontra-se tão intimamente ligada às forças da vida que empurra a sociedade em busca de manifestações dessa vida. (HERBERT READ 1962, p.211). 6

A arte em todas as suas manifestações imita a vida, por meio de múltiplas representações do cotidiano, de ideias e crenças que temos de nós mesmos e do mundo. Não importa o tipo de arte. Pode ser a pintura, poesia, música, literatura, teatro, fotografia, cinema, enfim, as mais variadas linguagens. A função da arte é

“enriquecer e desenvolver a consciência humana” (NAUM GABO 1962 p.203)7. Os mais diversos grupos humanos, desde a pré-história, representavam e deixavam suas marcas para comunicar seus costumes, suas tradições por meio de representações rupestres, que constituem testemunhos de diferentes evoluções culturais, como podem ser observadas na Figura 7.

FIGURA 7 - Representação Rupestre: Toca do Arapuá do Gongo Fonte: FUMDHAM8,2006

6 Idem. in MORAES (2000).

7 Ibidem p. MORAES (2000)

8 Fundação do Museu do Homem Brasileiro. Disponível em www.fumdham.org.br

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As pinturas retratavam cenas do cotidiano, como a procura por alimentos, proteção e abrigo, assim como a luta pela sobrevivência. De modo geral, as representações diziam respeito à vida do homem. Existem inúmeras pinturas rupestres em várias partes do mundo. Como as de Lacaux (França), Altamira (Espanha), La Cueva de Los Manos (Argentina), Parque Nacional da Serra da Capivara, Piauí (Brasil), entre milhares de outras (FUMDHAM, 2011).

Pode-se observar este enriquecimento dos registros gráficos rupestres diante da identificação das alterações nas técnicas pictorial ou de gravura utilizadas, mas também nos diferentes temas e formas como são representados.

Essas mudanças “não são resultado do acaso, mas de uma transformação social gradativa, que se manifesta em diferentes aspectos da vida dos grupos humanos” (FUMHAM, 2011). São mudanças que continuaram por longo período na história e continuam acontecendo, representando mudanças culturais no tempo e no espaço.

A partir do século XVI, buscam-se novas abordagens para representar o mundo. As representações passam a ter um caráter mais espacial. Paisagens, regiões, territórios e lugares foram retratados ora centrados nas ideias religiosas, ora na natureza “mãe pródiga”, que desde sempre foram motivos de inspirações.

As diversas atividades humanas também foram representadas. Quando a descrição detalhada da Terra passou a ser possível, a partir das grandes descobertas e da articulação da arte da ciência e de novas técnicas, os mapas, e as pinturas de vários cenários e territórios, apreendem-se momentos do tempo, de cenas e de cenários do espaço. Com o reconhecimento de novas terras e por meio de expedições por novos territórios, foi possível vincular a cartografia com a visão topográfica, incorporando-a em pinturas.

De acordo com Besse (2006, p.23)9, no século XVI, a cartografia e a pintura da paisagem trazem uma nova visão na representação cartográfica do ecúmeno, é a noção de uma paisagem do mundo. A paisagem ultrapassa os limites da região particular, traduz, agora, a paisagem, visualmente e imaginariamente, a promoção da geografia como discurso específico, distinto da

9BESSE, Jean-Marc – Seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. São Paulo, Perspectiva, 2006.

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cosmografia, consagrado à descrição da Terra universal. O mapa-múndi feito pelo cartógrafo e cosmógrafo português do século XVI, Lopo Homem, de 1519 (Figura 8), que ilustra a visão da época, é um bom exemplo.

FIGURA 8 - MAPA- MÚNDI – LOPO HOMEM 1519

FONTE: O olhar distante e o próximo - a produção dos artistas-viajantes Adaptado de AMBRIZZI10.

Neste contexto, Ambrizzi, (2011) demonstra que “há registros gráficos, pictóricos e literários produzidos no Brasil desde o período colonial”. Várias expedições são organizadas tendo como destino o Brasil. Naturalistas, cientistas e artistas, da Holanda, França, Áustria, Alemanha, entre outros, vieram ao Brasil com interesses diversificados, como “desbravar terras ainda não habitadas, explorar as riquezas naturais dos trópicos, coletar informações sobre os habitantes, a fauna e a flora brasileira, dentre outros mais”. Para o autor, podemos verificar descrições e representações da natureza, dos costumes dos seus habitantes e registros de espécimes vegetais e animais concretizados por esses artistas e cientistas que nos fizeram conhecer a vida brasileira desde a sua descoberta até o final do Império. Podemos verificar que, já em 1555,

10 AMBRIZZI, Miguel Luiz. O olhar distante e o próximo - a produção dos artistas-viajantes in Revista 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 1, jan./mar. 2011. Disponível em:

http://www.dezenovevinte.net/artistas/viajantes_mla2.htm

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estabeleceu-se na baía de Guanabara uma colônia francesa chefiada por Nicolas Durand de Villegagnon, com os geógrafos André de Thevet e Jean de Léry, que produziram obras geográficas extraordinárias. No século XVII (1630), os holandeses chegam à Capitania de Pernambuco. Comandados por Maurício de Nassau (governador, capitão e almirante-general), os artistas Albert Eckhout e George Marcgraff, além de geógrafos, médicos, engenheiros, geômetras e botânicos, estabelecem-se na região (AMBRIZZI, 2011).

A pintura de paisagem não ficou restrita aos artistas, na representação do espaço. Tivemos a contribuição de vários geógrafos e cartógrafos, que, com a produção de suas obras, influenciaram vários artistas. Durante o século XVII, a geografia cria relações com a pintura da paisagem, utilizando-a em suas descrições geográficas. Para as ciências da natureza, em particular a botânica, geologia e geografia, a partir do século XIX, “a questão da paisagem é explicitamente colocada, e a relação com os meios figurativos oferecidos pela pintura da paisagem é reconhecida” (BESSE, 2006, p. 62-63). Viajantes e geógrafos clássicos, que se dedicavam a grandes expedições, como Alexandre Von Humboldt, com seus estudos tanto de abordagens humana e física, elaborou, nesta última, representações da natureza de forma muito minuciosa e didática, por meio de cartas e perfis extraordinários que contribuíram para a divulgação e consolidação da Geografia como ciência (TRAVASSOS 2010) 11. Ver figura 9, que é a reprodução de um dos muitos perfis elaborados por Humboldt para ilustrar suas pesquisas. Na figura, a Parte do México, Sep. nº. 70. Viagem ao cume do Chimborazo, 23 Juin 1802, publicado em 1827.

11 TRAVASSOS, L. E. P. A importância cultural do carste e das cavernas 2010. 372f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Geografia – Tratamento da Informação Espacial. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Disponível em:

www.biblioteca.pucminas.br/teses/TratInfEspacial_TravassosLEP_1.pdf

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FIGURA 9 – PERFIL DE PARTE DO MÉXICO, VIAGEM DE HUMBOLT AO CUME DO CHIMBORAZO.

FONTE: David Rumsay Map Collection, 1998, apud TRAVASSOS, 2010.

Amorim (2008) apud Travassos (2010) destaca o papel importante que Humboldt teve para alguns pintores do “Exuberante Mundo Novo”. Demonstra também, apoiado em Diener (2007), que Johan Moritz Rugendas (1802-1858), Carl Friedrich Phillipp Von Martius (1794-1868), foram fortemente influenciados pelos livros de Humboldt. Outros geógrafos como Conrad Matt-Brun, Elisée Reclus, também produziram verdadeiras obras de artes, nas quais descreviam macrorregiões em detalhes, e influenciaram vários artistas.

A seguir, destacamos algumas representações de Rugendas e Martius.

Nelas, podemos observar a riqueza de detalhes que proporcionam uma reconstrução da geografia do lugar por meio da relação entre os elementos.

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FIGURA 10 –SERRA DA MANTIGUEIRA – JOHANN MORITZ RUGENDAS FONTE: TRIVELLATO T. Fred (2009)12 OLIVEIRA, M. Wenceslao, et.al., (2008 ) 13.

Incrível é imaginar que essa representação artística belíssima surgiu de estudos minuciosos de elemento a elemento dos trabalhos de Humboldt, intelectual de grande envergadura, que destinava seus trabalhos aos grandes intelectuais de seu tempo. Humboldt viajou entre 1799 e 1804, com o naturalista francês Aimé Bonpland, para regiões da Venezuela, da Bacia Amazônica, Colômbia, Peru e México, com o objetivo de pesquisar a relação de fidelidade entre as pinturas e a análise científica da natureza. O resultado desta viagem foi a produção de um tratado científico, obra monumental com trinta volumes, na qual o autor revela o contraste entre os continentes, europeu e americano, esperando superar as dificuldades para divulgar o conhecimento do “organismo terrestre”

como um todo, investigando sobre a unidade da natureza, assunto que constituía uma das paixões dos estudiosos no início do séc.19. Humboldt também produziu a obra Kosmos, um trabalho profundo e precursor dos estudos científicos de geografia. E, ainda, influenciou vários artistas a virem ao Brasil. Na figura 11, vê-se a aquarela produzida por Rugendas em visita à Cachoeira de Ouro Preto – Minas Gerais, em 1824. A concepção de paisagem resultará na apreensão do

12 Fonte: TRIVELLATO T. Fred (2009) – Unicamp – CNPQ- PIBIC 2008- Orientação do professor Dr.

Wenceslao Machado de Oliveira Jr. Disponível em: http://www.enhpgii.files.wordpress.com/2009/10/fred-teixeira-trivellato1.pdf

13 Fonte: OLIVEIRA, M. Wesceslao, et al.(2008 ) - Unicamp - Dr. Wenceslao Machado de Oliveira Junior.

Disponível em www.prp.unicamp.br/pipic/congressps/Xvcongresso/inscritos.php

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todo e numa nova maneira de contemplação; o detalhe, o pitoresco transita para uma compreensão mais abrangente das massas de vegetais, valorizando o conjunto ao invés de apenas a realização de pranchas com formas isoladas, como se pode ver na figura 12, com uma árvore gigantesca na selva tropical brasileira, 1830, Johann Moritz Rugendas (1802-1858), (AMBRIZZI, 2011).

FIGURA 11 - AQUARELA CACHOEIRA DE OURO PRETO VISITA - JOHANN MORITZ RUGENDAS

FONTE: Adaptado AMBRIZZI, Miguel Luiz (2011).

FIGURA 12 - ÁRVORE GIGANTESCA NA SELVA TROPICAL BRASILEIRA, 1830 - JOHANN MORITZ RUGENDAS (1802-1858)

FONTE: Adaptado AMBRIZZI, Miguel Luiz (2011).

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A bibliografia científica derivada das expedições é vasta, e parte dos materiais, anotações e diários ainda não foi publicada. O conjunto iconográfico reunido por Martius, por exemplo, é de grande importância e complexidade. Exigiu a participação de numerosos artistas e cientistas. Entre os desenhos e aquarelas atribuídos a Martius, é possível ver traços de outros artistas que ajudaram nos trabalhos. A participação do grupo na elaboração de uma grande obra, coerente e harmoniosa, era a única maneira de obter um resultado realmente coletivo e não uma coletânea de contribuições pessoais. A Viagem pelo Brasil (Reise in Brasilien) cujo primeiro volume é de 1823, relata a viagem de Martius e Spix, tem quarenta e uma gravuras paisagísticas, etnográficas e zoológicas, além de sete mapas. Nesta última obra, Martius incluiu desenhos de Benjamin Mary, um diplomata belga que esteve no Rio de Janeiro e retratou paisagens locais. Estes trabalhos são aguadas e nanquins, datados entre 1834-38, mostrando o gigantismo da vegetação em traços muito leves (ABRAHÃO, 2009).

FIGURA 13 - CARL FRIEDRICHI P. VON MARTIUS - REISE IN BRASILIEN

FONTE: ABRAHÃO, Cinthia Mª, 200914. SÍNTESE E COMPLEXIDADE NO PENSAMENTO GEOGRÁFICO.

14 KURY, 2001 in Abrahão, Cinthia Mªde Sena (2009), SÍNTESE E COMPLEXIDADE NO PENSAMENTO GEOGRÁFICO, revista Sociedade & Natureza, Uberlândia, 21 (2): 211-225 ago. 2009. Revista Sociedade &

Natureza, Uberlândia, 21 (2): 211-225 ago. 2009. Disponível em On-line version ISSN 1982-4513.

www.scielo.br/scielo.php?pid=S1982...sci_abstrac

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Do discorrido, é possível verificar que é pela visão dos mais diferentes artistas, que se desvendava o mundo. A visibilidade da Terra se deu e se dá por meio das mais diversas representações do espaço. Estes se constituem em cenários nos quais a vida é encenada. Desse modo, “há teatro o tempo todo onde quer que estejamos...” (JOHN CAGE, in MORAIS, 2000, p. 37). Apenas se faz necessário perceber os vários palcos e cenários onde a vida é interpretada, com atores e plateias; os que se interessam podem assistir ou participar dos dramas, das comédias ou tragédias da vida. Desse modo, “toda obra de arte é, de alguma maneira, feita duas vezes. Pelo criador e pelo espectador, ou melhor, pela sociedade à qual pertence o expectador” (BOURDIEU, 1968, in MORAES 2000, p.173)15.

Neste sentido, ao discorrermos sobre paisagem, território, desenvolvimento, planejamento e representações sociais e educação, também estamos nos reportando à arte de viver, pois, como afirma Claval, “existem várias maneiras de conceber a Geografia”. No entanto, o que importa mesmo “é compreender o sentido que as pessoas dão à sua existência” (CLAVAL, 2002, p.37).