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“(...) em sonhos, o homem é livre para cometer os crimes mais hediondos; o sonho é embrionário, porque dá ao homem o abrigo trépido e a imunidade do útero” (DALÍ, 1992, p.20).

O processo imagético cognitivo expressado pelo inconsciente transcende a retórica do signo rompendo as barreiras de sua mensagem dicotômica, vazando por entremeios de sua funcionalidade de portador da mensagem ou de fragmento dela, gerando outros significados e propriedades para a imagem composta no universo dos impulsos elétricos. Esta imagem outrora simbólica e expressada por meio de significações é induzida no campo material tornando-se palpável, do seu real imaginário passa para um real tátil. Enfrentam-se dissonâncias e ressonâncias de suas múltiplas interpretações. É necessário entender que o universo do signo não está desassociado dos sentidos perceptivos que são capazes de compreender o campo das imagens como um espaço concreto, uma arquitetura que pode ser tocada. Ao libertar-se das exigências da lógica e da razão, encontramos uma zona de vizinhança com a natureza da órbita do Surrealismo.

O empirismo da escrita automática transbordava em um caos que não conseguia se resolver. Talvez fosse o método máximo, pensado por Breton, em um plano de escrita que se permitisse abrir, ao aleatório, as imagens do inconsciente e transpô-las em palavras sobre uma folha em branco. O desejo humano na sua mais profunda intensidade era o que se previa com este método que se comunicava através de palavras compostas sem um sentido gramatical, sem uma rítmica poética, era admitido que o acaso imperasse. O que se pretendia era o contato direto com o inconsciente sem uma significação imediata, apenas a livre associação de imagens e palavras que dele brotavam.

A interpretação, ou análise do oculto presente no sonho, proposta por Sigmund Freud3, mesmo

que deixada à mercê de um segundo plano, ao observador da obra, fora um dos motivadores que vieram a trazer aos artistas surrealistas um outro espírito artístico, repleto de novas possibilidades, de novos

insights. O sonho abriria as portas do inconsciente, como Max Ernst4 propôs ao apresentar sua obra

‘Revolução à Noite’ (figura 7), o que vinha de confronto direto com a dinâmica de Breton.

Ao apresentar a psicanálise de Freud ao universo do surrealismo – através de ‘A interpretação dos sonhos’5 (1900) – almejava-se que o caos do inconsciente tomasse alguma forma, não somente ao

aleatório, mas que pudesse ser explorado na sua interpretação, também pelo próprio artista, que ao entendê-lo, assim melhor compreendesse alguns dos signos nele presentes e então dialogar com inúmeras outras sensações da arte. Ernst não acreditava que o surrealismo deveria estar apenas no campo de ‘paciente’ e que o ‘psicanalista’ o analisasse, mas sim em um campo no qual o artista entrasse em contato com seu inconsciente, procurando entendê-lo e de alguma forma encontrasse signos que alimentassem sua produção. ‘Revolução à Noite’ foi uma das primeiras obras não-escritas do surrealismo que veio a afrontar o inconsciente e assim, o sonho.

O campo do sonho passou a interessar Breton, que após ler alguns dos materiais de Freud e de compreender o processo criativo de Ernst, transpôs a análise onírica para o campo da escrita, associando-a com sua escrita automática. Seu ‘Peixe Solúvel’ (1924) é associado a este novo campo onírico. As inclinações e os desejos que estruturam a vida de um indivíduo poderiam segundo Freud, serem estudadas através dos sonhos. Estariam na densa superfície do sonho, ocultas diversas verdades, pensamentos esquecidos, sentimentos retidos ou signos pessoais que talvez o indivíduo nunca tenha 3 Sigismund Schlomo Freud (6 de maio de 1856 — 23 de setembro de 1939), mais conhecido como Sigmund Freud, foi um médico neurologista austríaco e judeu, fundador da psicanálise. Ele teve contato com os surrealistas por volta dos anos 30, quando Dalí o procurou para lhe mostrar uma de suas obras.

4 ERNST, Max: (1891 - 1976) foi um pintor alemão, naturalizado norte-americano e depois francês. Entre os surrealistas praticou pintura e poesia além de colaborar com manisfestos de Breton.

tomado consciência. Breton, Ernst e outros surrealistas com os quais eles se encontravam neste período, apresentaram aos demais artistas do grupo, estes estudos freudianos e a maneira como eles poderiam ser emprestados ao processo criativo na arte.

A imagem onírica vinha sendo estudada por De Chirico6, que muito se interessava pela

psicanálise. Ele apresentou ao grupo surrealista sua obra ‘A incerteza do poeta’ (1913) pela qual revelou quão próximo o artista está de seu inconsciente. Neste processo de interiorização através do sonho, De Chirico descrevia ‘um mundo interior imaginário repleto de características irracionais e perturbadoras’ (BRADLEY, 2001, p.34), pelo qual o familiar e o desconhecido eram transpostos, no caso de De Chirico, através da pintura, ‘numa justaposição tensa; o espaço onde estão situados é de muda e proibitiva incerteza’ (ibidem). Apesar de não fazer parte diretamente do grupo surrealista, o artista muito colaborou com o processo de interpretação do onírico, abrindo portas para outros estudos psicanalíticos.

O mergulho nas imagens do inconsciente, os signos que elas revelam, a fuga de um plano controlável para um plano incontrolável, sem rumo certo, sem direção, sem tempo, sem espaço e sem contornos definidos, encontravam um campo mais profundo de estudo, no momento em que alguns artistas se depararam com os escritos sobre inconsciente, sonhos, arquétipos e conceitos a estes interligados, apresentados por Carl Gustav Jung7. Em, 1936, Salvador Dalí apresenta a pintura

‘Canibalismo Outonal’ pela qual ao invés de ‘pintar um sonho específico, ele pesquisa os modos de ser do sonho: o que é, de repente, encontrar-se num mundo governado pelas normas aparentemente sem sentido do sonho’ (ibidem, p.36). Para Dali, era possível fazer esta pesquisa, pois ele acreditava na

6 DE CHIRICO: (1888 - 1978) foi um pintor italiano que fez parte do movimento chamado Pintura metafílistica. É considerado um precursor do Movimento Surrealista.

7 Carl Gustav Jung (1875 - 1961) foi um psiquiatra suíço e fundador da psicologia analítica, também conhecida como psicologia junguiana. Seu contato com os surrealistas foi pequeno, porém intenso, as poucas vezes que esteve em presença com um artista surrealista, pode observar obras em exposições em cafés ao longo da Europa.

possibilidade de se “mergulhar no inconsciente, ainda estando consciente”.

Joseph Campbell8 em O Poder do Mito (EUA, 2009) conta a experiência de um xamã ao entrar

em contato com o mundo das imagens dos sonhos. Quando se depara com aqueles inúmeros signos, o xamã encontra respostas para as ações de sua tribo além de muitas previsões. Quando o transe cessa, Campbell pergunta ao xamã se este havia voltado para sua sã consciência e a resposta do velho índio é de que ele nunca havia deixado de estar consciente, mesmo enquanto navegava pelo mundo dos sonhos. O xamã finaliza dizendo que o mundo dos sonhos é tão real e presente que é difícil saber quando estamos habitando um mundo ou outro.

Apesar de grande admirador de Freud, o método de análise do onírico, do inconsciente, de Dalí, muitas vezes se deparou com as teorias de Jung, encontrando em suas próprias análises conceitos como, por exemplo, o ‘arquétipo’. A figura feminina, muitas vezes representada pela sua musa, Gala, revelava diversas vezes a Grande Mãe, fosse em ‘Leda Atômica’ (1949) – a mulher nua ao centro da tela, sentada sobre uma espécie de pedestal: aquela que a todos vigia – ou em ‘The Madonna of Port Lligat’ (1949) – a imagem maior do feminino puro, a mãe na sua maior representação católica – ou nas suas diversas representações da ‘Vênus de Milos’ com gavetas entreabertas ao longo de seu corpo, tal como podemos observar em ‘Girafe em Feu’ – a mulher que se abre aos seus segredos, mas que ao mesmo tempo pode guardar em si a todos, como se suas gavetas fossem uma espécie de lugar-seguro (o ‘grande ventre’ como chamava Dalí). O ‘confronto’ entre anima e animus, uma dualidade existencial ou muitas vezes uma conjunção de sentimentos, como em ‘Sonho causado pelo voo de uma abelha em torno de uma romã um segundo antes de acordar’ (1944), pintura na qual a mulher é ameaçada pelos tigres, num confronto entre a natureza masculina representada por uma arma e a natureza feminina pela romã, fruto da fertilidade; no entanto, desta mesma romã desfrutam as forças masculinas, sendo o fruto

8 Joseph John Campbell, (1904- 1987) foi um estudioso norte-americano de mitologia e religião comparativa que publicou entre outros, os livros O Herói de Mil Faces (1992) e Jornada do Herói (2008), além do O Poder do Mito, compilado de sua entrevista dada ao jornalista e pesquisador Bill Moyers.

uma dualidade, assim como o peixe que devora um dos felinos.

Como numa reconstrução da grande Pangea, o sonho pode conectar continentes dos mais abissais campos da psiquê, da memória e da não-memória9, dos inúmeros sentimentos e sensações.

Porém quando Dalí esteve em contato com Freud, em 1939, em Londres, e lhe apresentou o quadro ‘A metamorfose de Narciso’ (1937), a reação de Freud foi: “Não é o inconsciente o que eu vejo em suas pinturas, e sim o consciente” (ibidem, p.32).

Quanto à observação freudiana de que as pinturas surrealistas eram nada mais do que representações dos temas recorrentes da psicanálise, apenas uma fotografia da imagem do inconsciente, Salvador Dalí aproveitou-se desta crítica para desenvolver o que viria a ser a ‘nova fase da pintura automática’, nem freudiana, nem junguiana, e nem lacaniana10 (lembrando que alguns artistas, tais

como Magritte, Bellmer, e o próprio Dalí que tinha contatos diretos com Jacques Lacan, tentaram aproximar o surrealismo das teorias de Lacan)

Diferente de Ernst ou De Chirico, ou até mesmo dos textos de Breton, Dalí se interessou por esta ideia da fotografia do inconsciente – o que para alguns seria uma crítica negativa, para Dalí foi um

insight determinador que designou todo um novo “modo de ver surrealista”.

A interpretação do artista ficaria de lado, o que já acontecia anteriormente, porém agora o artista não escolhia um ou outro tema presente em uma imagem do inconsciente e transformaria em sua obra, mas sim representaria a imagem como um todo, da maneira exata (ou o mais próximo que se pudesse chegar dela). Entram neste momento, as técnicas da colagem e a pintura de colagem, além de uma 9 Não-memória: refere-se aqui, à imagem ‘visionária’. Quando sonhamos com algo ou alguém, que nunca tivemos

contato em estado de vigília, ou quando sonhamos com algo que ainda há de acontecer.

10 Jacques-Marie Émile Lacan (Paris, 13 de abril de 1901 — Paris, 9 de setembro de 1981) foi um psicanalista francês, que muito se interessava pelo surrealismo, mantendo contato direto com alguns artistas. Foi o seguidor que mais contribuiu e deu continuidade ao trabalho de Freud.

preocupação com o molde onde esta pintura estaria sendo representada – uma espécie de instalação, quando a imagem exigisse. Magritte e Tanguy foram alguns dos artistas que aderiram a esta proposta de fotografar o inconsciente. Ernst mais tarde também recorreria a este método.

Sucessivamente o sonho era pintado pelos artistas surrealistas; e por alguns outros escritos, nas composições que Breton chamara de “poesias do campo onírico” e que por sua vez também foram designadas por diversos outros artistas de “relatórios reais do mundo dos sonhos”. Mas não somente o campo da pintura ou da escrita transitaram por esta fotografia do sonho, pelas ‘imagens da irracionalidade concreta’ (Dalí); mas também o campo da escultura apresentado por artistas como Giacometti ou Duchamp; o campo da música; do teatro; da fotografia; e diversas outras artes.

Para o cineasta Luis Buñuel, a sétima arte foi a mais importante estrutura artística a entregar- se e colaborar com a estruturação da fotografia do onírico. Buñuel dizia que nem todo mundo sonha uma fotografia estática (ele dizia que ‘somente uma minoria vê as coisas paradas nos sonhos’) e que mesmo que a pintura, por exemplo, simulasse a sensação de movimento (e aqui ele recorria ao impressionismo europeu e as pinturas japonesas) as paisagens e personagens e objetos transformam-se constantemente nos sonhos, assim passando de uma cena à outra, o que na pintura, para se aproximar desta movimentação constante, deveria ocorrer era uma consecutiva sequência de inúmeras pinturas, mas que muitas vezes seriam inconcebíveis, por razões técnicas de espaço e material.

“Um filme é como uma involuntária imitação de um sonho” (BUÑUEL apud EDWARS, p.60)11.

A película, material fotossensível pela qual a luz é captada e depois transposta em sombra (negativo), registra a imagem que é vista através de uma câmera. O processo de fotografar em velocidade acelerada, gerando vinte e quatro quadros por segundo seguidos, causa por sua vez uma sensação de animação, proximidade com o real. Esta técnica desenvolvida pelos irmãos Lumière, em 1985, permitia simular o mundo real, aquilo que o olho estava vendo.

Entre cada quadro da película, há um espaço neutro, o qual é utilizado na montagem do filme para fazer-se os cortes e remendos, montando assim, a sequência final desejada. Buñuel sempre fora fascinado com esta técnica e com as possibilidades diversas da linguagem que ela atribuía. Ele dizia que na montagem, a película permitia que fossem feitas experimentações: recortar um quadro ao meio, sobrepor quadros, contornar quadros com tinta, borrar, manchar, enfim, extravasar na criatividade, o que até então, pelos cineastas, era pensado ser possível apenas na filmagem.

Suas técnicas e experimentações de montagem permitiram alguns efeitos especiais de Um Cão

Andaluz (França, 1928) como as formigas que saem de dentro da palma de uma mão. Muito se inspirou

no contato que teve com Entr’acte (França, 1924) de René Clair, e algumas montagens como a sobreposição do barco de papel sobre a cidade.

Luis Buñuel acreditava que por estas e outras possibilidades o cinema era a chave mais próxima para abrir as portas do onírico, assim como colocava que uma sala de cinema era o núcleo do inconsciente na qual o projetor permitia jogar para fora - para os olhos do espectador - as imagens que ali estavam guardadas. Entrar em uma sala escura e assistir a um sonho, de maneira realista.

Buñuel ainda acrescentava nesta sua associação do sonho com a arte do cinema, que nesta forma física da película, cada quadro representava apenas um fragmento deste sonho, e chamava o

espaço entre cada quadro de ‘tênue borda entre um signo e outro’, pois acreditava que mesmo que os quadros fossem praticamente similares, um vinte quatroavos de segundo era o bastante para discernir uma imagem de outra, neste micro tempo algo poderia acontecer (talvez por esta razão acreditava que as pinturas não eram fortes o suficiente para registrarem o sonho por completo, uma pintura para Buñuel era apenas um fotograma do sonho todo). Buñuel disse certa vez que “era preciso permitir ao expectador sair de uma paisagem para outra, de uma ação para outra para poder dar a dinâmica de um sonho, ao ritmo em que o sonhador o vivenciou” (EDWARDS, 2005).

“Em Plano Aproximado, aparece bruscamente o homem dos panos, que leva a mão rapidamente à boca, como alguém que perde os dentes. A moça olha-o desdenhosamente. Quando a personagem retira a mão, vê-se que a boca desapareceu. A moça parece dizer: "Bom. E agora?" e acentua a pintura dos lábios.” (BUÑUEL e DALÍ, trecho do roteiro de

[Figura 7] Max Ernst

“Pietá ou Revolução a Noite” ano: 1923

Óleo sobre Tela 116 x 89 cm Tate Gallery, Londres

[Figura 8] Giorgio de Chirico “A Incerteza do Poeta”

ano: 1913 Óleo sobre Tela

106 x 94 cm Tate Gallery, Londres

[Figura 9] Salvador Dalí “Leda Atômica”

ano: 1949 Óleo sobre Tela

61 x 46 cm

Teatre-Museum Dalí, Figueres [Figura 10]

Salvador Dalí

“The Madonna of Port Lligat ” ano: 1949

Óleo sobre Tela 48,9 x 37,5 cm

[Figura 11] Salvador Dalí

“Vênus de Milo com Gavetas” ano: 1936/1964

Bronze 98,5 x 32,5 cm Teatre-Museum Dalí, Figueres

[Figura 12] Salvador Dalí “Girafe em Feu”

ano: 1936 Óleo sobre Madeira

35 x 27 cm

[Figura 13] Salvador Dalí

“Sonho causado pelo voo de uma abelha em torno de uma romã um segundo antes de acordar” ano: 1944

Óleo sobre Madeira 51 x 40,5 cm

[Figura 14] Salvador Dalí “Metamorfose de Narciso”

ano: 1937 Óleo sobre Tela

51,1 x 78,1 cm Tate Gallery, Londres

[Figura 15]

Luis Buñuel e Salvador Dalí “Um Cão Andaluz”

ano: 1928 (roteiro publicado em 1929)

foto 'still' [Figura 16] René Clair “Entr'acte” ano: 1924 foto 'sill'

[Figura 17]