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Capítulo 3- Um sorriso em meu caminho: Mateus

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“A gente precisa de poesia dentro da gente. De alma perfumada e riso de criança. As vezes o córrego da vida precisa de sal, de algo que nos desperte por dentro e sirva como melodia de dias felizes, tempero de momentos vazios, açúcar de horas amargas, perfume de noites futuras.”

Fabíola Simões

Encontro Mateus

Meu próximo encontro foi com um menino de dez anos, muito alegre e sorridente: Mateus. A localização de Mateus ocorreu em uma unidade básica de saúde (UBS) quase que como um presente de Deus para mim. A UBS estava muito lotada e os profissionais não tinham tempo para dar-me atenção, assim pensei comigo, “vou tentar algo aleatório...”. Chamou-me atenção uma jovem mulher com gêmeos de uns sete meses. Vou até ela na esperança de que ela tenha mais filhos e, quem sabe um com bronquite ou asma. Pergunto dos bebês, brinco com eles um pouco e disparo: “Por acaso você tem filhos mais velhos?”. “Tenho” é a resposta seca. Ela se mostra um pouco distante, não querendo muita conversa. Insisto e descubro que ela tem mais quatro filhos, sendo uma com bronquite e dois mais velhos que esta com bronquite.

Surpreendo-me com a possibilidade, faço o convite e ela aceita. Volto no dia combinado à UBS para conversar com o filho mais velho que ainda mora com ela, o outro não é possível conversar por motivos pessoais da família. Mateus tem porte pequeno e sorriso marcante, típico de “menino sapeca”. Diz prontamente que quer conversar sim, mas mostra-se bem tímido. Conversamos sobre sua família e a mãe decide ficar conosco.

No seu genograma5 aparece a família nuclear e também a extensa. Aparecem amigos, tios e madrinha. Ele gosta de brincar na rua e assistir filme no computador comendo pipoca. Não gosta muito de estudar, mas ama soltar pipa e brincar de estilingue.

Nessa primeira conversa, falamos brevemente sobre como é ser irmão da A., de quatro anos que tem bronquite desde que nasceu. Apesar da conversa ser curta, já faço o convite para que ele tire as fotos propostas nesse estudo. Ele diz que irá tirar, acredito que isso o ajudará a falar mais.

Na primeira conversa ele trouxe como primeiro fator a normalidade quando questionado como é ser irmão da A. Comenta: “Ah, é normal.” Diz ainda que briga com a irmã, mas que é legal ser irmão dela. Pergunto o que é ser normal, legal, entretanto, ele não consegue me explicar. Não consigo entender o que isso quer dizer. Será que é a idade que faz !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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com que seja mais difícil explicar? Eu esperava que uma criança de dez anos pudesse falar mais de suas experiências.

Mateus protege suas irmãs. Apesar de deixar que elas aprendam algumas lições de vez em quando, ele faz o papel de protetor.

Mateus: [...] Eu avisei, elas não quiseram. Foi brigar de novo, bateu na minha irmã, não gostei, fui e puxei o cabelo dela.

Ana: Parece que você defende as suas irmãs?

Mateus: Muito. Quando minhas irmãs estão erradas, eu deixo tomar uns cascudos. Mas quando não estão...(sorri)

Ao ouvir Mateus vou entendendo que sua irmã com bronquite é de certa forma mimada e tem regalias. Enquanto que os demais, não diagnosticados com nenhuma doença, não o são. Porém, todos vivenciam provocações típicas de irmãos o tempo todo.

Ana: E quando a A. fica doente? Como é?

Mateus: Ela quer tudo. “Mãe, quero papel” (faz voz de choramingando). “Mãe, o Mateus me bateu”. E daí eu apanho.

Ana: Mas só quando ela está doente?

Mateus: Hum hum (responde positivamente). Mas ela sempre fica me ‘enchendo o saco’.

Quando questiono sobre a doença da irmã ele responde listando os sinais da doença, porém, logo muda de assunto e conta como ele foi gravemente ferido uma vez.

Mateus: [...] Ela só fica com bronquite e fica tossindo, espirrando.

Acho interessante essa mudança de foco para ele e para algo que foi sério. Nesse momento tem a atenção e participação da mãe na conversa. Será que a criança não tem muita atenção para si? Será que foi essa uma tentativa de ter o foco somente nele? Todo irmão de criança doente crônica sente isso ou o Mateus sente reflexo de um contexto que tem tantos precisando da atenção da mãe que sobre pouca para ele? Será que Mateus acreditou que meu

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interesse é por adoecimento e trouxe algo associado a isto? Fiquei a pensar enquanto continuava a ouví-lo.

A interrupção de algum membro da família durante o diálogo me incomoda. Na minha percepção isto atrapalha a plenitude do que podemos ter em nosso diálogo, mas sinto-me presa quanto ao que fazer. Permito e não bloqueio ou sinalizo.

Ele percebe que cuida das irmãs, é o cuidar de irmão mais velho. Quando ele abre mão de jogar para que elas joguem, ou brinca das brincadeiras que elas propõem, ele mostra seu cuidado e amor para com as irmãs e também coloca-se em segundo plano por elas. Fala de todas de forma similar, sem fazer distinção.

Mateus: Mas às vezes ela quer brincar de mamãe e filhinho e eu brinco. Às vezes elas querem jogar no computador e eu estou jogando primeiro, eu vou lá e coloco da Barbie, de bicicleta, de moto, de piscina e elas ficam brincando. Daí elas saem do computador, vão lá brincar com as outras meninas, daí eu vou lá jogar.

Fico impressionada com sua generosidade. Ele vende um dos seus estilingues e compra um pudim que faz questão de dividir com toda a família. Fica orgulhoso de ter conseguido algo para eles sozinho. Vejo-me conversando comigo mesmo e percebo que sou egoísta, que talvez eu não quisesse dividir com meus irmãos.

Sinto que o diálogo foi importante, mas não consegui a fusão de horizontes que eu queria. Talvez seja melhor sempre ter a primeira entrevista na casa da criança. Ali ela está em seu ambiente, que é mais conhecido. Será que o diálogo com a criança de dez anos é mais difícil? Como entrar nessa fusão de horizontes com a criança mais nova? Acredito que é possível. Nesse caso a fusão de horizontes é mais fácil no diálogo com o texto fruto da transcrição da entrevista.

Com esses pensamentos faço um convite para que o próximo diálogo seja em sua casa. A mãe aceita, a criança também. Peço que ele tire fotos que mostrem o que é ser irmão da A.

Um encontro emocionante

Tenho dificuldade para chegar à sua casa. Sinto insegurança pelas características da vizinhança. Estou sozinha e repenso a questão de vir sozinha para o diálogo.

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Mas já estou ali, é o horário e eu vou até o portão. A mãe recebe-me surpresa. Esqueceu-se da entrevista e o filho foi ao centro da cidade e vai demorar a voltar. Fico um pouco decepcionada, mas marco para outro dia. A oportunidade foi boa para conhecer melhor o local.

Volto no dia combinado e encontro o Mateus feliz, assim como as duas irmãs. Era o horário de aula delas e pergunto para a mãe porque elas não foram à aula. “Por sua causa” é a resposta, elas queriam me conhecer. Fico preocupada por elas faltarem à aula por esse motivo e ao mesmo tempo me pergunto por quê? Por que elas quiseram faltar à aula para me conhecer? Que impacto essa pesquisa tem na vida dessas pessoas, dessa família? O que faz a minha presença ser tão importante? Será a invisibilidade dos irmãos para os profissionais de saúde? Penso na Carolina, e a vontade que ela teve de saber mais sobre a pesquisa e sobre mim. Será que essas duas situações querem dizer algo? Se sim, o quê?

Nessa visita percebo que todos querem participar. A mãe me conta de seu problema de saúde e também pede conselhos sobre o que acha ser um atraso de desenvolvimento da filha. As meninas querem participar do diálogo e contar suas próprias histórias. Percebo que ali meu papel é de cuidar dessa família ouvindo-os, acolhendo suas histórias e demandas. Todos querem atenção e eu posso oferecer isso a eles, assim, depois que todos foram escutados consigo conversar com o Mateus.

Entretanto, percebo no nosso diálogo, em determinados momentos, que novamente ele quer atenção para si ou afirmar-se. Conta como é forte, como é alto, como consegue ajudar o pai, conta de quando ficou doente. Só depois eu entendi algo importante: o irmão quer atenção para si, para suas questões e quase que pede por essa atenção. Eu ouvi a todos, mas ele não teve o seu momento livre de conversar do que quisesse ou de questões que desejasse, porque as minhas primeiras perguntas já nos direcionavam para um assunto específico. Dessa experiência posso afirmar que o irmão tem menos atenção dos pais e quer ter atenção para si. Lembro-me da Fernanda, ela pedia atenção, o Mateus pede, mas de outra maneira. Aliás, não pede somente atenção, mas reconhecimento em suas virtudes, algo que Carolina também sinalizou para mim.

Para que eu possa conversar mais tranquila com o Mateus a mãe pediu que as meninas olhassem os gêmeos. Percebo que nessa casa todos participam do cuidado um do outro (crianças) e do cuidado da casa. Compartilhar o cuidado é algo do cotidiano deles. Nesse sentido o Mateus diz:

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Mateus: Eu lavo a louça, depois eu lavo o banheiro, e M., sabe a outra que mora aqui? Ela limpa o quarto e a sala. Daí minha mãe limpa o quarto dela, eu junto o lixo da cozinha, ela junta as pedras (refere-se à uma parte da casa).

Todas as crianças e adolescentes que participaram até aqui tinham responsabilidades no cuidado da casa e com os irmãos. Seria essa uma característica de famílias com criança doente crônica? É uma característica de todas as famílias? Tem alguma correlação com condição socioeconômica?

Os privilégios e mudança de comportamento que a criança com bronquite tem são trazidos novamente nesse diálogo. Esse comportamento de ‘poder fazer o que quer porque está ou é ‘doente’ é reforçado pelos pais e acatado pelos demais irmãos. Além disso, os pais criticam ou até mesmo brigam com o filho que for contra isto. Quase que um legado organizador da dinâmica familiar. Além disto, a criança com asma ou bronquite percebe tal aspecto e faz uso dele para receber benefícios, fato desaprovado pelos irmãos.

Mateus: Porque quando está doente ela fica: “Então me traz água”. Daí eu vou lá e pego. “Ah, traz isso, isso, e isso”, daí eu dou para ela, então ela pede para a E. Ela fala "não vou, não quero”. A A. vai lá e bate na E. [...] Ela fica muito chata e daí eu não gosto.

E o irmão saudável não gosta dessa maneira que a irmã age, dessa mudança e deixa bem claro preferir a irmã sem crises de bronquite porque a condição crônica intensifica esse comportamento de ter tudo o que pede, de ser mimada. Quando ela fica doente, fica mais manhosa, mas com a bronquite é ainda pior. Será que é o comportamento dos pais de proteção que intensifica a atitude da criança doente crônica? Os pais percebem esse favoritismo ou deveríamos chamar de proteção? Quanto isso afeta a relação entre irmãos? Quanto isto é percebido pelos pais?

Apesar disso, o irmão tem uma relação mais estreita e de companheirismo com a irmã A. Ele afirma que quando ela não está em crises ele a prefere à outra irmã. Parece ser uma proteção de A., até porque as pessoas falam muito da beleza da outra irmã, deixando A. de lado. Acredito que tanto por sua situação de maior fragilidade devido à doença e por essa relação diferenciada de companheirismo que ele prefira e defenda mais A.

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Mateus: Ela fica muito chata, daí eu não gosto. Ana: E isso muda a sua vida ...

Mateus: Quando ela está chata, não muda, quando ela está legal muda sim. Ana: Como que muda?

Mateus: Por exemplo: Eu tenho um real, daí eu falo: “A., vamos lá ao bar?” Ela responde: “Vamos!”. Nós compramos salgadinho, fazemos piquenique, eu e ela.

É interessante que o irmão vê sua vida impactada pelo lado positivo das atitudes da irmã, ou seja, quando ela não está com as crises de bronquite. Eu esperava que ele fosse trazer que é ruim quando ela fica doente e faz o que quer, mas não, é exatamente o contrário. Ele traz o que parece ser o melhor adjetivo em seu vocabulário:

Mateus: Que ela é muuuuuito legal. (ênfase dada pela criança) Ana: Explica para mim o que faz uma pessoa ser legal.

Mateus: Ajudar os outros e brincar.

E a parte em que senti que ali éramos dois horizontes que se cruzaram é quando ele fala do que a foto que ele me mostrou significa para ele. Apesar de não conseguir expressar com as palavras o que sentia, descreve o sentimento e tem lágrimas nos olhos ao fazê-lo. Vejo então a criança no máximo de sua sinceridade e emoção. É como se eu pudesse olhar dentro do seu coração.

Ana: Mas essas fotos mostram para você como é ser irmão de A.?

Mateus: Deu um negócio assim em mim, no meu corpo (aponta para o coração) e eu falei “Ah, essa foto é boa para mostrar para ela.”

Ana: O que foi isso que você falou que sentiu assim no seu corpo?

Mateus: Senti uma coisa e falei: “Ah! É bem bonito. Daí eu pensei, posso mostrar para ela, gostei de você, né? Nós ficamos brincando. As meninas estavam vendo uns castelos de umas meninas que tem uns baldes grandes, daí eu falei, já que tem copo, umas garrafas, eu fui, fiz um castelo, depois pegamos uma garrafa. Ficamos flutuando. [...] foi um momento que estávamos brincando muito legal, e eu estava gostando dela. (olhos se enchem de lágrimas). Antes ela era chatinha, mas eu estava gostando mais lá no parque.

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Seu amor por sua irmã me emociona, assim como a simplicidade do momento e a emoção que sentiu e decidiu partilhar. Mais uma vez confirmo a importância do vínculo, ele mostrou porque “gostei de você, né?”. Meu papel aqui vai além de compreender, eu toco uma vida.

Em determinado momento Mateus me pergunta se pode contar uma história. As irmãs também me contaram histórias. Para a criança o melhor jeito de falar de si é contando histórias? Parece que sim. Conta uma história de uma brincadeira dele, ele parece feliz.

Diante da possibilidade de compreender melhor essa relação, decido pedir o desenho para ele também. Ele concorda e marcamos outro dia para nos vermos.

Despedida

Fui ao nosso terceiro encontro. Mateus, suas irmãs e mãe estavam brincando na rua. Ele foi ao meu encontro no carro, e ficou feliz em me ver, assim como as irmãs. É boa a maneira como eles me receberam, mas sem rodeios me disse que perdeu o desenho. Perguntei se ainda sim ele queria falar dele e a resposta é positiva.

Tentei explorar suas histórias, mas não consegui. Ele me contou do desenho, que fez a A. e meu carro. Isso me chamou a atenção para nossas classes sociais. O fato de virmos de classes sociais diferentes faz com o que temos como expectativas mudem. Ele encanta-se com o fato de eu ter um carro. Sua família não tem um. Quanto essa diferença pode impactar nosso diálogo ou nossas percepções da vida?

Mateus traz o reconhecimento de alguns sinais da doença da irmã como tosse, gripe e um “negócio no peito”. Como cuidado, diz que a mãe dá sopinha e os remédios, mas não se percebe no cuidado com a irmã, apesar de ajudar a mãe nesse sentido.

Um ponto que destaco desse diálogo com ele é o vínculo que tivemos. Ele fica triste ao saber que, por enquanto, essa seria nossa última conversa. Diz que gostaria de me dar um presente, uma foto dele e da irmã no parque que tanto gostaram. Aprecio o carinho e fico confusa quanto ao que devo sentir. Gostaria de ficar por mais um pouco na vida dessa família e gostaria de cuidar mais deles, mas sei que agora não cabe isso.

1976 Pai 38 1983 Mãe 30 1999 irmão 14 2003 Mateus 10 2008 Irmã 5 2009 Irmã 4 1963 Avô 50 1962 Avó 51 1986 Tia 27 Bisavó Madrinha Padrinho Padrasto 2013 Irmão 7m 2013 Irmão 7m 1953 Avô 60 Avó Marido da avó

Simbolos do Genograma

Gêmeos Pessoa índice Ano de nasciimento Masculino Feminino xxxx xxxx

Legenda de relacionamento de

família e patologias

Casamento Bronquite Vivendo juntos Divorciado

Entretenimento - Filme com pipoca - Jogos no Computador

Escola - Quinto ano - Faz ref orço

Atividades Domésticas - Ajuda a cuidar dos gêmeos

e das irmãs - Ajuda a limpar a casa

Brincadeiras - Estilingue - Soltar pipa - Jogar f utebol - Andar de bicicleta

Primos (f amília paterna) - C. (15 anos), M. (11 anos), P. (22 anos) Amigos - Da escola - Da vizinhança 1983 Mãe 30 1999 Irmão 14 2003 Mateus 10 2008 Irmã 5 2009 Irmã 4 1963 Avô 50 1962 Avó 51 1986 Tia 27 Madrinha Padrinho Padrasto 2013 Irmão 7m 2013 Irmão 7m 1976 Pai 38 1953 Avô 60 Avó Marido da avó Bisavó

Legenda de

relacionamento

emocional

Indiferente Briga eventualmente Não gosta Harmonia Distante Melhores Amigos / Muito

Proximos Amor Amor forte/ vínculo forte

Às vezes gosta, às vezes não Gosta Gosta muito

ECOMAPA 3- MATEUS

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