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“QUE EU SOU MAIS UM LOIDE DO QUE UM ANDROIDE.”

O doente subtraiu das pessoas ao seu redor e do mundo exterior em geral o investimento libidinal que até então lhes havia dirigido; com isso, todo se tornou indiferente e desinteressante para ele, e ele tem que o explicar, mediante uma racionalização secundária, como coisa “do milagre, feita às pressas”. O sepultamente do mundo é a própria projeção dessa catástrofe interior; seu mundo subjetivo foi sepultado desde que ele lhe subtraiu seu amor.

Face à maldição com que Fausto renega o mundo, o coro dos espíritos canta:

“Ai!, Ai! Está destruído com punho poderoso este belo mundo! Funda, Despenca!

Um semideus o despedaçou!

Mais potente

para os filhos da Terra, mais esplêndido, o reconstrua,

dentro de teu peito, o reconstrua!” [Goethe, Fausto, parte I, cena 4]

E o paranoico o reconstrói, claro que não mais esplêndido, mas ao menos de tal maneira que possa voltar a viver nele. Edifica-o de novo mediante o trabalho de seu delírio. O que nós consideramos a produção patológica,

a formação delirante, é, em realidade, a tentativa de restabelecimento, a reconstrução. (ênfase minha)

Sigmund Freud,

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N

OTAS PRELIMINARES À ANÁLISE

A análise que realizo abaixo se situa na fronteira entre Linguística e Psicanálise. Trata-se de uma análise exploratória em que, a partir da escuta da fala transcrita de um sujeito com diagnóstico de psicose, procuro depreender o estatuto da palavra que tem efeito neológico no dizer psicótico. A fim de situá-la, retomarei, de forma resumida, os pontos importantes anteriormente trabalhados.

Com Snell (1852) o termo ‘neologismo’ entrou para o campo dos estudos psiquiátricos sobre a linguagem na psicose, designando as palavras ou expressões novas criadas pelo delirante ou palavras existente utilizadas pelo doente num sentido não usual. Esse alienista voltou sua atenção para o fato de que tais palavras têm relação direta com o tema do delírio desenvolvido por cada doente. Tanzi (1889-1890) classificou os neologismos que aparecem nos dizeres dos psicóticos, entre outros, de acordo com a significação que assumem no delírio. A partir disso, ele chegou à conclusão de que a “mentalidade” do paranoico equivale à “mentalidade” do homem primitivo ou da criança porque todos eles atribuem à palavra um poder mágico ou místico. Para o psiquiatra italiano, o paranoico é um logólatra. Séglas (1892) retomou essas ideias entendendo que o neologismo do delirante, ao qual atribui o nome de neologismo ativo, devido ao fato de ser produto de um trabalho do delirante, atesta um fato supersticioso e as proporções de uma ideia fixa se desenvolvendo na consciência.

Do die Bildung neuer Worte de Snell ao néologisme actif de Séglas observamos uma única tendência, qual seja: os neologismos criados pelo delirante não se comparam aos criados pelos outros doentes porque eles são fixos e estão ligados a ideias delirantes que têm particular importância para o doente. Além disso, todos observaram que o delírio tem como característica marcante uma linguagem mais rebuscada e que o delirante se expressa com mais facilidade e segurança em seu delírio do que quando em “estado normal”. Séglas chega a comparar o delirante aos forjadores de sistemas científicos, por florear sua fala com termos pomposos e pitorescos, mas que, no fundo, revelam o vazio de suas teorias.

Com efeito, tais fatos são observados no dizer psicótico e estão amplamente atestados nos manuais, compêndios e dicionários de psiquiatria (cf., p.e., Hinsie and Campbell, 1960, p.481; Thuillier, 1996, p.638-639). Contudo, não encontramos uma explicação do ponto de vista do sujeito na linguagem sobre todos esses fenômenos.

Embora a clínica psiquiátrica clássica tenha avançado no tema dos neologismos no delírio, contribuindo para a descrição dos fenômenos de linguagem no delírio e no

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delirium, ela concebeu, contudo, a linguagem como instrumento e auxiliar do pensamento.

Por conta disso, toda a riqueza de suas descrições fica limitada a uma concepção de que há uma debilidade intelectual ou um déficit de percepção na psicose. O próprio Séglas atribui, como vimos, grande importância à linguagem na clínica. Contudo, afirma que há debilidade intelectual no delírio crônico77. Esse tipo de afirmação se sustenta no pressuposto de que há um antes da linguagem e que é pela observação dela que se chega ao pensamento (cf. Séglas, 1892, p.5).78

É em Freud que encontramos uma abordagem que coloca o delirante mais perto do médico, entendendo-o como um habitante da linguagem. Trata-se de uma abordagem que descreve os fenômenos de linguagem na clínica das psicoses do ponto de vista do sujeito na e da linguagem. A clínica psicanalítica, com isso, inaugura um novo modo de pensar o delírio e, consequentemente, as palavras de efeito neológico nele.

Da leitura do Caso Schreber, publicado por Freud em 1911, já é possível, logo na

Introdução ao texto, depreender que não há distúrbio ou debilidade intelectual na psicose (cf.

Pincerati, 2008). Mais a adiante, Freud afirma que o delírio é uma tentativa de cura, é uma reconstrução (cf. Freud, [1911] 1996, p.65). Segundo ele, é a partir do momento em que o presidente Schreber, um paranoico, recusa de forma muito enérgica (verwefen) uma representação homossexual que advém a doença. Falam a todo momento com ele; é invadido por vozes que o torturam e o blasfemam. Seu corpo é submetido a um despedaçamento impiedoso pelo outro. Ele fica num estado de perplexidade e angústia. É somente quando ele se reconcilia com a representação homossexual rechaçada que a angústia é atenuada e advém a estabilização. Nesse sentido, dizer que o delírio é uma tentativa de cura é dizer que ele tem como objetivo atenuar, mediante um trabalho doloroso, aquilo que suscita a angústia (cf. Maleval, 1998). E mais ainda, entender o delírio como uma reconstrução significa dizer que ele é linguagem e que o delirante habita essa linguagem.

Mas é no texto O Inconsciente, de 1915, que podemos entender o delírio como uma tentativa de cura em relação com o investimento na palavra. Freud, nesse texto, escreve que é porque ocorre uma desistência de investimento nos objetos do mundo que o delirante percorrerá os caminhos das palavras. As alterações de fala na esquizofrenia revelam essa

77

Atente-se que, para Séglas, o neologismo ativo denota “um trabalho intelectual anterior” (Séglas, 1892, p.51), porém ao mesmo tempo afirma: “a palavra dita tudo e sua presença revela, no fundo, uma debilidade

considerável do pensamento” (1892, p.52; ênfase minha); e, mais à frente: “o neologismo ativo denota um

delírio já muito sistematizado, tendendo à cronificação e repousando sobre um fundo de debilidade

intelectual” (Ibid., p.59; ênfase minha).

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Certamente, a premissa que sustenta essa concepção é a de que a linguagem é ‘aprendida’ (cf. Séglas, 1892, p.5-8). Para uma crítica contundente à noção de ‘aprendizagem’ e de ‘desenvolvimento’ para pensar a aquisição da linguagem, ver De Lemos, 2006.

50 prevalência da palavra nessa psicopatologia, bem como revelam a particular relação do Eu-

objeto. Essa relação tem a ver com o fato de o esquizofrênico tratar as palavras como coisas, já que ele procura por meio delas os objetos perdidos. O estranho advém do fato de que as palavras não têm a ver com as coisas no mundo; essas últimas estão perdidas. É por meio do investimento nas palavras que o psicótico reconstrói o seu mundo.

Diante disso, parto para a análise com as seguintes perguntas: qual é o papel do neologismo, ou melhor, da palavra que tem efeito neológico na reconstrução do delirante? O que ele diz desse processo; que é um processo que tem como característica uma oscilação entre angústia e reconstrução? Enfim, como as palavras com efeito neológico funcionam no texto delirante?

Porém, antes de iniciar a análise, é preciso fazer duas observações. A primeira é a de que, neste trabalho, me filio à proposta de Maleval (1998) de pensar o delírio como um processo de significatização. Isto é, um processo que consiste na mobilização do significante como recurso do delirante para atenuar a angústia (Ibid., p.121). O termo ‘angústia’, por conta disso, será utilizado nesta dissertação nesse sentido. Ou seja, remetido ao desmoronamento e à perplexidade; opondo-se, por conseguinte, à reconstrução.

A segunda observação a ser feita é a de que as falas analisadas são de LC, sujeito que foi entrevistado por Fernanda D. Picardi, com o objetivo de constituir o corpus para sua pesquisa de mestrado, que deu origem à dissertação Linguagem e Esquizofrenia: na fronteira

do sentido (cf. Picardi, 1997). LC, na época, era um paciente semi-interno do Serviço de

Saúde “Dr. Cândido Ferreira”, Campinas/SP, tinha 29 anos e o diagnóstico psiquiátrico de esquizofrenia (Ibid., p.15). As falas transcritas desse paciente constituem o corpus desta dissertação e estão reproduzidas integralmente no ANEXO.

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