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E SPAÇOS O CUPADOS NO C AMPO M USICAL

Nos primeiros dias em Salvador, Luiz Caldas ficou hospedado na casa de Orlando Campos, na Avenida Princesa Isabel. Sem amigos e deslocado da cena musical da metrópole baiana, dedicava todo o tempo livre ao estudo da guitarra baiana, instrumento dos mais destacados quando se fala em frevo de trio elétrico. Naquele ano, não só o artista estava de mudança. Dona Zuleika havia retornado para Feira de Santana e a namorada Sandra, então grávida, se dividia entre a cidade natal, Itabuna, e Feira de Santana, ficando à espera do momento certo para morar em definitivo com Luiz.

Desde a saída de Itabuna, tocar com desenvoltura uma guitarra baiana havia se tornado uma obsessão. O repertório específico do Trio Tapajós, a cada execução, era memorizado, resultado das exaustivas repetições dos inúmeros acordes estudados. Sem perder o foco do que pretendia fazer, começou a visitar os primeiros ambientes musicais da cidade, como o bar de Homero, o Luz da Noite, na Barra, local considerado ponto de encontro de artistas que gostavam de tocar e cantar o que não se ouvia em outros lugares. Aos poucos, com o violão sempre à mão, enturmava-se com os novos colegas do ramo, ampliando o leque de amizades e oportunizando novas perspectivas profissionais, muito embora estivesse garantido no trio principal do Tapajós.

Como havia sido requisitado para compor e gravar em mais um disco do Tapajós – o

Ave Caetano, que seria lançado em 1980 –, fixou residência com outros músicos do trio numa

casa alugada por Orlando Campos, no bairro do Uruguai. A estratégia de juntar sob o mesmo teto boa parte da banda assegurava o entrosamento dos componentes do trio, possibilitava mais horas de ensaios e projetava perspectiva de uma gravação rápida e de qualidade no Rio de Janeiro. Para Luiz Caldas, a experiência tornava-se cada vez mais enriquecedora, sobretudo pelo fato de manter uma maior aproximação com Anton Schultz, Levi, J. Morbeck, Melo, Nanuta, Eduardo, Than, Zé Carlos, Tião, Hippie, Escurinho e Lito, músicos especialistas em tocar frevos de trio elétrico. O momento possibilitava o cruzamento das correntes musicais vivenciadas, fluindo de um lado o que fora assimilado nos bailes e do outro, o que estava sendo aprendido com a turma do trio elétrico.

Outra comodidade para Orlando era a proximidade da casa alugada do galpão do Tapajós e da fábrica de trio, em Periperi, onde eram finalizadas as carrocerias em parceria

com o irmão Mundinho. No galpão ocorriam alguns ensaios com os músicos de cordas. Os clubes Flamenguinho e Periperi, também próximos, integravam o roteiro musical.

Em busca de mais liberdade, acertou com Orlando Campos fixar residência no Hotel Brasil, no bairro da Calçada, possibilitando a vinda de Sandra para Salvador e do filho André Mikcelle Caldas, nascido em 1980. O local, perigoso à noite, não deixou de se tornar um entrave para as suas incursões musicais noturnas, e foi preciso mudar.

Com o lançamento do álbum Ave Caetano, Luiz Caldas conseguiu se posicionar bem no emergente mercado de gravação de Salvador, passando a atuar como freelancer no estúdio de Wesley Rangel, na Graça. A esta altura, a inquietude do jovem e as articulações para que o Tapajós se destacasse quando o trio passava próximo de um outro concorrente, atraindo mais foliões por causa do repertório, lhe rendeu o apelido de Mafinha, batizado por J. Morbeck, cantor do Tapajós.

Em 1981, após o lançamento do disco Jubileu de Prata, o artista expandiu sua visibilidade na cena carnavalesca de Salvador. Como resultado, firmou acordo para puxar o bloco Traz os Montes no Carnaval do ano seguinte, porém sua imagem ainda estava liga ao Tapajós, tendo, inclusive, participado ativamente das gravações do LP Cristal Liso, gravado em Belo Horizonte e comercializado em 1982. Ao tempo em que a carreira de músico progredia, redesenhando posições no campo da música, a família aumentava com o nascimento, em 1983, do filho Aiac Steif’nes.

Mas, nem todos os acontecimentos foram de alegria para Luiz Caldas neste ano de 1983. A notícia da morte do pai Durval Pereira Caldas selaria uma convivência marcada por um amor mantido à distância. Mesmo sentimento, possivelmente, se preservou hibernado em Dona Zuleika, já fixada em Salvador, no conjunto Santa Madalena, à Avenida Vasco da Gama, ambiente popular aonde Luiz Caldas também viria morar.

Ao deixar o Tapajós, a estratégia adotada de seguir carreira solo começou a dar certo, pois além de ter uma banda com músicos experientes, a Acordes Verdes, Luiz Caldas passou a compor com o objetivo de manter uma trajetória com independência. O lançamento do primeiro trabalho individual, o compacto O Beijo, marcou esse momento, reforçado pelas constantes apresentações no Circo Troca de Segredos, point de encontro e de shows erguido

na praia de Ondina. Desde sua inauguração, com um show de Caetano Veloso, o espaço estava aberto para todo tipo de evento e público2.

Como o burburinho cultural de Salvador fervilhava no Circo Troca de Segredos, a visibilidade do emergente artista passou a ser afirmada com as repetidas apresentações no local. No entanto, a produção de um show não era tão fácil como se imaginava. Além de se preocupar com o repertório, Luiz Caldas fazia o trabalho de corpo-a-corpo, começando com o aviso de boca-a-boca até a colagem de cartazes, à noite, pelas ruas da cidade, ao lado de Cezinha, baterista da banda e dono de uma Brasília, carro usado nesta investida de divulgação. Após a apresentação, já na madrugada, restava a obrigação contábil de conferir o resultado da bilheteria.

Foi numa dessas apresentações de Luiz Caldas no Circo Troca de Segredos, que o produtor Roberto Sant’Anna – que havia deixado a Polygram para lançar o selo Nova República, tendo como sócio José Vicente Brizola – conheceu o artista, que então produzia um disco autoral, o LP Magia, na WR. O trabalho mostrado por Rangel, em fase de acabamento, interessou a Sant’Anna, que achou o som moderno e diferenciado para o que o mercado tinha para oferecer na época. A fim de fechar a negociação, o produtor queria conferir, ao vivo, a performance do artista, a sua presença de palco, a extensão da voz, a capacidade de improvisação e o desprendimento musical.

Relembra Roberto Santa’Anna:

Como o show estava marcado para 21 horas, cheguei às 20h45, para pegar um lugar. Não tinha absolutamente ninguém no circo, nem porteiro tinha. Entrei e sentei lá na arquibancada. Deu 21 horas e nada. Saí, fui perto do alambrado, fiz um lanche e retomei perto das 22 horas, quando encontrei as primeiras pessoas. A curiosidade era tanta que fiquei. Aí começou a chover como nunca choveu na Bahia e pensei: não vai vir ninguém e esse circo vai desarmar. Aos poucos, o público foi chegando e às 23h30 o circo estava lotado, começando o concerto à meia-noite. Fiquei no último degrau da arquibancada e cheguei a pensar que ia morrer e tudo ia cair. Porém, fiquei atento e surpreso quando vi, no palco, Luiz Caldas comandando uma platéia que participativa ativamente do show. Ele tinha o público e a banda na mão. Entusiasmado, no outro dia, acertei com Rangel a compra do disco (Sant’Anna, entrevista, 2009).

2 Pelo circo também passaram Gilberto Gil, Batatinha, Gerônimo, Barão Vermelho, Legião

Urbana, Camisa de Vênus, Margareth Menezes, dentre outros artistas de expressão local e nacional.

Conforme o depoimento de Sant’Anna, a apresentação de Luiz Caldas foi decisiva para o fechamento da negociação com Rangel. Em função do ocorrido, o Circo Troca de Segredos, pelo que representava para a cena musical de Salvador, passa a ser espaço importante decisivo para a visibilidade de Luiz Caldas, constituindo-se como cenário favorável à concretização da possibilidade que se apresentava. O local, então, ganhou relevância na história de vida do artista, que revelou:

O Troca de Segredos tem importância máxima para a Axé Music. Foi lá que começou tudo. Não foi nos clubes, nos blocos, em lugar nenhum. Foi debaixo daquela lona. Mesmo sem termos (o grupo Acordes Verdes) disco ou fama nacional, a casa ficava lotada! Quem estivesse na cidade ia sempre dar uma canja: Alceu, Caetano, Zé Ramalho e Belchior. Não adiantava o Português (clube social) com toda a sua pompa, porque, mesmo sendo pequeno, o Troca era o lugar (Caldas, Correio da Bahia, 2006).

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