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A SPECTOS DO M OVIMENTO F UTURISTA I TALIANO E A RELAÇÃO COM O ATOR

A NOÇÃO DE ATOR-MARIONETE NO TEATRO DO SÉCULO

2.4 A SPECTOS DO M OVIMENTO F UTURISTA I TALIANO E A RELAÇÃO COM O ATOR

Outra referência para se pensar na relação da marionetização do ator é o Movimento Futurista Italiano39 que, no início do século XX, trouxe consigo um momento de grande ruptura nas artes plásticas, na poesia, na música, no cinema e também no teatro. Isso esteve diretamente relacionado com o fato de que aquele período histórico foi marcado por inovações técnicas, tecnológicas e industriais. O grande trânsito de informações, sobretudo a velocidade40 com a qual se propagavam, proporcionou uma efervescência no campo das artes e ainda uma necessidade de renovação artística: “Tudo em arte é convenção, e as verdades de ontem são hoje, para nós, também mentiras” (apud BERNARDINI, 1980, p. 42, A Pintura

Futurista – Manifesto Técnico).

Através dos Manifestos Futuristas, foram ditadas regras de conduta, desprezo, valorização, fragmentação e negação de diversos segmentos artísticos, sociais e políticos. As idéias futuristas para o trabalho do ator foram radicalizadas, na medida em que a proposta seria substituir a presença física do homem por objetos, em que tudo passasse a ser máquina, dessa forma estabelecendo uma apologia da máquina e dos procedimentos mecânicos. Os

39 Movimento artístico e literário iniciado em 1909 com a publicação do Manifesto Futurista, escrito pelo poeta Filippo Marinetti no jornal francês Le Figaro.

personagens e os atores seriam despersonalizados, transformados em raios de luz, cubos, cones, numa espécie de mutação tecnológica, fazendo parte da poesia futurista.

Marinetti afirmava que o teatro deveria estar pleno de uma sensação de domínio da máquina sobre o humano, e desse modo transformar a mentalidade, as ações e a sensibilidade do homem do século XX. Assim, o escritor italiano reivindicava que a arte dramática deveria “tender a uma síntese da vida nas suas linhas mais típicas e mais significativas” (apud BERNARDINI, 1980, p. 54) e jamais fazer uma fotografia psicológica da vida humana.

Para os Futuristas, a presença do homem em cena romperia o mistério que rege o teatro, um templo de abstração espiritual, metafísico. O ator seria um elemento inútil para a ação teatral, como exalta Prampolini:

[...] os atores humanos não poderão mais ser suportados, como títeres ou como supermarionetes de hoje que os reformadores recentes preconizam; nem estas nem aqueles podem exprimir suficientemente os aspectos múltiplos concebidos pelo autor teatral. Vibrações, formas luminosas [...] agitar-se-ão, retorcer-se-ão dinamicamente, e esses verdadeiros atores-gás de um teatro desconhecido deverão substituir os atores vivos (apud BERNARDINI, 1980, p. 194).

Marinetti buscava o aniquilamento da figura humana (e por conseqüência seus desejos e emoções) não só no teatro, mas em diversos manifestos relacionados às outras artes, como no Manifesto Técnico da Literatura Futurista, no qual, além de propor a destruição da sintaxe e de seus componentes, aconselha:

Cuidado para não emprestar à matéria os sentimentos humanos, mas antes, procurar adivinhar seus diferentes impulsos diretores, suas forças de compreensão, de dilatação, de coesão, e de desagregação, seus bandos de moléculas em quantidade ou seus turbilhões de elétrons.

Não se trata de apresentar os dramas da matéria humanizada. É a solidez de uma chapa de aço que nos interessa por ela mesma, isto é, a aliança incompreensível e inumana de suas moléculas ou de seus elétrons, que se opõem, por exemplo, à penetração de um obus41. O calor de um pedaço de

ferro ou de madeira já é mais apaixonante, para nós, que o sorriso ou as lágrimas de uma mulher. Nós queremos dar, em literatura, a vida do motor, novo animal instintivo, cujo instinto geral conheceremos quando conhecermos

41De acordo com Aurélio Buarque de Holanda (1993), a palavra obus refere-se a: 1. Pequena peça de artilharia semelhante a um morteiro comprido; 2. Projétil lançado por ela.

os instintos das diversas forças que o compõem (apud BERNARDINI, 1980, p.84 e 85).

E ainda,

Depois do reino animal, eis iniciar-se o reino mecânico. Com o conhecimento e a amizade da matéria, de quem os cientistas não podem conhecer senão as reações físico-químicas, nós preparamos a criação do HOMEM MECÂNICO DE PARTES TROCÁVEIS. Nós o libertaremos da idéia da morte e, portanto, da própria morte, suprema definição da inteligência lógica.42

Há de se perceber que o Movimento Futurista trouxe à tona a noção de fragmentação e, por sua vez, a valorização desses procedimentos e a necessidade de chegar a tal fim. O

Manifesto do Teatro Futurista Sintéticoexplicita a simpatia pela síntese que certamente vai

contra as práticas do teatro tradicional. Conforme a definição dos Futuristas Italianos, o Teatro Futurista Sintético seria brevíssimo, ou seja, dever-se-ia “apertar [sic] em poucos minutos, em poucas palavras e em poucos gestos e inumeráveis situações, sensibilidades, idéias, sensações, fatos e símbolos”43. Havia a necessidade de reivindicar a mudança, de criar uma nova modalidade de espetáculo. Segundo Haroldo de Campos,

[...] tratava-se de uma síntese de contusão, de choque, cujo propósito era não embalar o espectador, mas arrancá-lo, com uma risada ou um safanão, de seu engodo, para pô-lo defronte da redução ao absurdo da forma habitual de edificação ou de consolo veiculada pelo teatro. Compeli-lo a um ato de participação crítica [...] (apud BERNARDINI, 1980, p. 23).

Os atores, dentro do contexto do Teatro Futurista, deveriam atuar com ênfase gestual e vocal, às vezes grotesca, sem preocupar-se com a construção psicológica e verossímil dos personagens, pois seria perfeitamente possível “mover constantemente todos os personagens, da direita para a esquerda, fazer com que se sentem e se levantem, e enquanto isso, variar o diálogo de forma que pareça que a qualquer momento vá acontecer algo importante [...] sem que na realidade ocorra nada até o final do ato”.44

42 Op. cit., p. 87.

43 Manifesto do Teatro Futurista Sintético. In: BERNARDINI, 1980, p. 180.

44 O Teatro Futurista Sintético – Manifesto. In: SETTIMELLI, Luigi. Futurismo: manifestos y textos. Tradução: Jorge Milosz Graba. Buenos Aires: Quadrata, 2004, p. 36.

Os personagens seriam tipificados, reduzidos a uma síntese esquelética quase sem forma, ou, ao contrário, acrescidos por alguns figurinos volumosos, dando a impressão de uma maior estatura e altura no corpo dos atores. Combinado com os objetos cênicos, o ator marionetizado estaria em “relação direta com a mutação tecnológica. É um duplo; se dilui entre o ser humano e o objeto; o ser e sua aparência” (BELTRAME, 2003).

Assim, não havia a representação de um “personagem”, mas a presença do próprio ator-performer que, através do improviso e da espontaneidade, fazia cair por terra a ilusão da ficção.