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Sua invenção e a mesa cristãBoas

No documento Estética do gosto (páginas 38-41)

Embora os alimentos estivessem intimamente ligados à crença religiosa nas culturas grega e romana, em caso algum a religião tentou controlar quando e o que as pessoas comiam. Do tempo de Homero (séc. VIII a.C. aproximadamente) até a suspensão cristã do sacrifício pagão no final do Império Ro- mano, o papel da comida na adoração e nos fes- tejos a ela associados, permaneceu basicamente o mesmo: sacrifício solene de um animal, segui- do pela divisão da carne, com uma porção para a divindade colocada no altar e o resto partilha- do, igualmente, cozido e consumido numa festa – na qual se considerava a divindade presente como convidada de honra. Segundo Roy Strong (2003), com a conversão do imperador Constan- tino em 312, quando o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano, tudo isso foi condenado a mudar.

O cristianismo herdou da tradição judaica de prática regular, o que e quando as pessoas comiam. Juntamente com o sexo, a comida tornou-se sujeita a regras determinadas por Deus e, portanto, uma questão de conduta ética. Mas isso evoluiu ao longo do tempo. Os evan- gelhos, bem como as epístolas paulinas, não de- monstram qualquer preocupação especial com a comida. Sua abordagem é natural e casual, encoraja o bem-estar entre os que assistiam ao banquete, considerando as numerosas ocasiões para comerem juntos como meio de fortalecer o sentimento de irmandade e convivência. Em- bora o jejum tivesse tanto lugar na tradição reli- giosa greco-romana como na judaica, não havia qualquer tentativa no cristianismo primitivo de promovê-lo, visto apenas como um poderoso suplemento da oração.

No cristianismo jejum era um “martírio” auto-imposto durante um período de persegui- ção. Seu desenvolvimento como sinal de san- tidade vem tanto da tradição judaica, quanto dos escritos dos filósofos pagãos, defensores da serenidade e do rigor sexual. Envolvia tam- bém uma certa resistência ao culto difundido na

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antiguidade pelo corpo saudável, forte e boni- to, o que poderia ser em parte conseguido pela observação cuidadosa de certas regras na dieta. O efeito a longo prazo dessa prática foi uma for- ma de ascetismo cristão no qual a fome volun- tária se transformou num aspecto do caminho para a perfeição.

No século VI, o ato de comer era visto como uma tentação que levava ao pecado da gula. Aos poucos, sob a égide da Igreja Católica, o jejum sistematizou-se. Na Igreja ocidental, quar- tas-feiras e sextas-feiras tornaram-se dias de je- jum, que também precedia o batismo e acompa- nhava qualquer penitência prolongada. Inicial- mente praticado apenas da Sexta-Feira Santa à manhã de Páscoa, estendeu-se de início por toda a Semana Santa, e depois, no século IV, pelos 40 dias que vieram a ser chamados de Qua- resma. Para os leigos, jejuar não significa uma redução global da quantidade de comida, mas sim total abstinência de carne, aqui apresentada em seu papel de símbolo de violência, morte e todas as formas de corporeidade e sexua lidade.

(STRONG, 2003, p. 49)

Os documentos monásticos são os únicos registros detalhados sobre a comida e a mesa desses séculos. Foram estabelecidas uma série de regras, coisas permitidas e proibidas entre os monges. O monge não pode ser um “bebedor de vinho” nem “um grande comedor”. Cabia que fi- zesse as refeições em silêncio, se precisasse se co- municar deveria fazê-lo somente com sinais, era estabelecido o número de refeições por dia e em quais horários deveriam ser servidas. O que fica claro nesse momento, é a construção de regras de conduta, de boas maneiras à mesa e, de alguma forma, no mosteiro haverá a continuidade do que a vila interrompeu, inclusive foi preser vado um aspecto que só irá reaparecer com a vila renas- centista: uma sala usada apenas para as refeições. Outra mudança importante ocorrida nesse período diz respeito a posição do comensal à

hVila renascentista, ver em: CANFORA, Luciano. “Um ofício perigoso”. São Paulo: Perspectiva, 2003. Na página ao lado, festejo medieval.

mesa, de reclinado para sentado. É possível esta- belecer uma datação dessa mudança a partir de pinturas da Última Ceia. Se a posição do comen- sal mudou, o mesmo aconteceu no formato da mesa, que por volta de 1100 tornou-se retangular e quase universal. E por volta de 1300 muda tam- bém o lugar de honra, que anteriormente era ao centro da mesa como na figura abaixo de Vero- nese, e transfere-se para a extremidade esquerda como na figura de Caliari.

O banquete continua sendo, nessa época, uma importante forma de “contenção” social, e durante os séculos XI e XII torna-se fundamen- tal, esse importante evento culinário celebrava a relação entre senhor e seus vassalos – e o poder que essa relação produzia.

Na própria cozinha as relações hierárquicas ficavam cada vez mais fortes com o surgimento de novas e importantes funções, e com a espe- cialização: como o senescal, mordomo, camaris- ta, pasteleiro, cuteleiro, zelador. Comer tornou- -se cada vez mais um ato solene onde toda casa tomava parte.

A divulgação da etiqueta à mesa começou a ser feita de forma escrita, retirando dos mostei- ros a exclusividade dessas regras e demonstran- do sua importância e a demanda por tais orien- tações. O mais antigo tratado de boas maneiras, O Convidado Italiano, de Tommasino di Circlaria, data aproximadamente de 1215 e foi escrito em forma de poema, por um italiano para os germâ- nicos. O poema era dirigido aos jovens cavaleiros: hSenescal: Mordomo

das casas reais. Tinha sob seu comando um comprador de alimentos; três cozinheiros; um zelador, que tomava conta do fogo na cozinha e no salão; um cuteleiro, que tomava conta do sal e da cutelaria; um mordomo, com uma equipe que cuidava do vinho; um pasteleiro, que com uma equipe de quatro ajudantes, produzia o pão necessário para cada refeição. In: STRONG, 2003, p.63.

hGermânicos:Der Wälsche Gast (O Convidado italiano). Tem forma de um poema com cerca de 15 mil linhas, da autoria de Tomasino de Zerclaere (Tommasino di Circlaria).

Quando ele começa a comer, Com a mão nada toca Além da comida: isto é fazer bem as coisas. Não se deve comer o pão Antes de serem trazidos os primeiros pratos. O homem deve ter muito cuidado De não pôr [comida] Nos dois lados da boca. Neste momento deve ficar em guarda Para não beber ou falar Enquanto tiver alguma coisa na boca. Aqueles que se viram com o copo para os

companheiros, Como se estivessem prestes a entregá-lo, Antes de afastá-lo dos lábios, que balançam o vinho de dentro, Que, bebendo, olham sobre o copo [Fazem o que] não é adequado a homens cortezes.

(STRONG, 2003, p. 64)

Além da divulgação escrita das boas manei- ras aparecem inúmeros livros de culinária, o que pressupõe uma classe alta consciente do que co- mia, obviamente que para os cozinheiros medie- vais, provavelmente analfabetos, sua tradição continuava sendo transmitida oralmente e esses manuscritos, feitos um a um, e naturalmente ca- ros, não pertenciam aos que cozinhavam e sim àqueles para quem eles trabalhavam. Essa mul- tiplicação de manuscritos denota também um interesse leigo pela culinária, assim como nos

VERONESE, Paolo. Casamento em Cana, 1563. Óleo sobre tela, 666x 990cm. Museu do Louvre, Paris.

CALIARI, Benedetto. Última ceia, segunda metade do século XVI. Óleo sobre tela. Basília de São Giovanni e Paolo, Veneza, Itália.

manuais de etiqueta. Reflete também o fato da culinária estar se tornando tão sofisticada que era preciso uma transmissão escrita.

A enorme elaboração registrada nesses li- vros é um indício crescente do interesse da corte pela comida como aspecto importante da cultu- ra e da emergência de uma classe de nouveaux ri- ches – que encarava as artes da mesa como parte de uma nova arte de viver.

Por volta de 1420, um chef chamado Chi- quart – nos arquivos da cidade de Valais, Suiça, encontra-se o manuscrito “Du Fait de Cuisine”

datado de 1420 –, que durante 25 anos foi cozi- nheiro da família ducal de Sabóia, compilou um volume de receitas. Volume este escrito a pe- dido do duque Amadeu VIII e nele é possível ver que Chiquart descreve seu trabalho como arte e ciência. Os duques de Sabóia eram ligados dire- tamente, por laços de casamento, aos duques de Borgonha, o livro é citado como cheio de receitas de um tipo que impressionaria as cortes mais ri- cas e ostentadoras do final do período medieval.

h”Du Fait Cuisine”:

Texto disponível em inglês no site <http:// daviddfriedman.com/ Medieval/Cookbooks/ Du_Fait_de_Cui sine/Du_fait_de_ Cuisine.html>. Acesso em: 30 abr. 2006.

aparência. Aqui se testemunha a maior revolu- ção histórica da alimentação, na qual, o lado físi- co do comer é deslocado para o prazer estético do olhar. Em suma, a ênfase desloca-se da boca para os olhos. Passamos a ter o que chamo “es- tética do gosto”. Camporesi defende que o olho destrona o nariz nessa época, ou seja, o olho “ favorece e exalta a policromia do desfile, o minueto das taças, o baile das iguarias. Policromia e minia- turização fundem-se no concerto bem temperado da refeição como numa graciosa frase musical”.

A corte de Borgonha transformou as refei- ções quase numa versão de missa leiga, onde a mesa ficava como num altar, consumia-se pão e vinho e o foco era o processo cerimonial e lava- gens rituais, beijava-se objetos como se fossem relíquias, até mesmo a taça ducal era elevada quando levada em procissão, num gesto que evocava a elevação do cálice consagrado. O jan- tar real havia atingido a dimensão de um ato de Estado e a comida assumiu um papel importan- te, que mais tarde desempenharia nas monar- quias renascentistas e barrocas. „

hLe Menágier de Paris: é um guia medieval francês de 1393 que ensina as jovens esposas sobre o comportamento apropriado durante o casamento e a administração da casa. Inclui conselhos sexuais, receitas e dicas de jardinagem. Foi descrito por Viandier de Taillevent.

hMissa leiga: missa realizada por cidadãos comuns, condenada até hoje pela Igreja Católica. IRMÃOS LIMBOURG, As Mui Ricas Horas do Duque

de Berry, 1410. Iluminuras, 21 x 29 cm. Chatêau de

Chantilly, França.

O desejo de dotar o

alimento de forma e cor era

No documento Estética do gosto (páginas 38-41)

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