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4 A REPROVAÇÃO SEGUNDO O ALUNO REPETENTE:

4.2 Categoria 2 Impactos causados pela reprovação

4.2.2 Subcategoria 2.2 Sonhos postergados

Sonhos, ou planos, são criados, também, em função de expectativas socioculturais internalizadas e que têm grande peso afetivo, uma vez que correspondem a objetivos de vida. Essa outra subcategoria, sonhos postergados, surgiu em função da alta frequência de menções feitas pelos entrevistados de que se sentem em “atraso” por conta da reprovação escolar, tanto em relação a seus colegas, como em relação aos projetos de vida que haviam traçado anteriormente.

“Bom, eu acho que na minha vida escolar atrasou mais 1 ano, não é? Tipo assim, eu tinha planos. A gente tem aquela listinha...”Ah. Eu vou terminar com tal idade...”. Com tal idade faço a prova do ENEM, entro para a faculdade, então eu fiquei triste porque eu queria mesmo já tá terminando, entendeu? Eu queria já ter quitado aquela agonia para fazer a prova do ENEM. Então o que me impactou foi isso, foi eu não poder estar um passo à frente nos meus sonhos e isso tudo mexeu comigo. Porque o que quero fazer tem bastante tempo, porque é Direito. Tipo assim, eu fico vendo... está um pouquinho mais longe...e tenho que passar de novo pelo 1º para chegar até lá... Então acho que o que impacta mais é isso, é você sentir que você não deu um passo a frente; fica ali parado e o tempo está passando e se você não correr, pode ficar para trás. Acho que foi isso.” (Entrevistado 07)

O atraso é mais uma marca fortemente associada ao insucesso escolar e uma grande preocupação, inclusive dos pais, quando se pensa na possibilidade de uma reprovação atropelar o curso da vida escolar do aluno. Isso é facilmente constatável no dia – a – dia da escola, em reuniões de atendimento aos pais para conversar sobre o desempenho acadêmico do filho, no discurso dos professores e, como as entrevistas deixam claro, dos alunos também.

“O ruim disso é porque atrasa bastante não é? Estou com 19 anos e estou no quarto ano ainda...e eu quero terminar o curso [se referindo ao curso técnico], mesmo não querendo seguir na área. Mas já fiquei tanto tempo aqui...” (Entrevistado 12) “Só o atraso mesmo. [...]A ter que fazer mais um ano, aí a idade vai passando, o tempo vai passando.” (Entrevistado 06)

Jacomini (2010), em pesquisa realizada sobre a organização escolar em ciclos e a progressão continuada na Rede Municipal de Ensino de São Paulo entrevistou tanto alunos quanto pais buscando conhecer a opinião destes sobre essa política educacional. Um dos itens

analisados foram as consequências da reprovação escolar nos depoimentos dos entrevistados e como aspectos negativos foram destacados a distorção série/idade, a evasão escolar, e a dificuldade de integração do aluno ao novo grupo.

A distorção série/idade35 é consequência própria da organização de ensino seriada e, em outros termos, refere-se ao atraso mencionado pelos entrevistados. Esse atraso diz respeito a muitos aspectos citados nas entrevistas, como por exemplo sentir-se em desvantagem em relação aos colegas que passaram de ano, ou o atraso ser sofrido por conta da perda da convivência com colegas, com os quais o aluno havia estabelecido vínculos, ou, ainda, pela necessidade de agora postergar muitos planos, sonhos, o que não parece ser muito confortável ao se analisar o contexto de sociedade imediatista no qual o jovem atualmente está inserido.

“Porque se eu tivesse passado, já estaria no 3º ano, já podia ter feito o ENEM, ter entrado na Universidade. E agora não. Vou ter que repetir mais um ano para poder ir para o 3º.” (Entrevistado 08)

“Mas assim, em relação a que era para eu estar no quarto ano, pensar que era para estar fazendo ENEM esse ano, estudando para o ENEM, para já ir para a universidade. É chato.” (Entrevistado 14)

Essa relação do homem moderno com o tempo tem origem em vários acontecimentos e fenômenos sociais que marcaram a história, mas cabe ressaltar um importante movimento sociopolítico que tem grande influência nessa relação: a Revolução Industrial. Com ela e com a proliferação dos relógios mecânicos o tempo passa a ser um modo de medir a produção, tempo de produtividade, que passa a ser pautado pelo dinheiro (GURSKI; PEREIRA, 2016). A escola não ficaria ilesa a essas influências e o Entrevistado 02 exemplifica bem este fato quando esclarece suas preocupações ao sentir-se atrasado pela reprovação escolar vivenciada:

“É... primeiramente quando você vê de fato que perdeu o ano, vem o mundo desabar na sua cabeça. Vem o pensamento da família, você mesmo, porque você recebe muita, joga muita coisa na tua cabeça que um ano perdido não é só o tempo, 360 dias perdidos, é muita coisa lá na frente, é um ano de salário que você vai deixar de receber, é um atraso total na tua vida.” (Entrevistado 02)

Ademais, essa preocupação intensa com o atraso traz à tona a questão da temporalidade do aluno do ensino médio, no caso adolescentes, e também a temporalidade assumida pela instituição escolar seriada, que se exprime na organização do calendário escolar, nas festas

35 No IFPI, a distorção série/idade costuma acontecer mais por alguns alunos entrarem na escola com a idade não esperada para determinado ano uma vez que a Organização Didática não permite as múltiplas reprovações. Conforme apresentado em item anterior desta pesquisa, no Art. 43 da Organização Didática fica claro que “O aluno da educação profissional técnica de nível médio terá sua matrícula cancelada se for reprovado por duas vezes consecutivas em uma mesma série/módulo”.

escolares, nas datas e idades para matrícula, as datas das férias e da conclusão do ano letivo, etc.

Almeida (2015) destaca que o adolescente experimenta uma lógica temporal baseada na atemporalidade por si, uma vez que passado, presente e futuro são atuais e ativos. Cita Arias (1998) ao mencionar que “a concepção da temporalidade” e o “limite temporal” do adolescente, da escola e dos pais estão situados em um contexto social determinado no tempo, pois “a adolescência como etapa, processo ou passagem define-se também em função de uma variável temporal que a perpassa, porque toda adolescência implica um encontro do estado mental do adolescente com a própria temporalidade” (p. 144).

“Porque se eu não tivesse[reprovado], eu já estaria na faculdade.” (Entrevistado 09)

Zago (2003) atesta que para muitos estudantes, a escolaridade não segue um curso esperado (entrada, permanência e finalização de um ciclo escolar), mas se define no tempo do “possível”. E claro, aqui não se está referindo às incertezas que fazem parte da existência humana e dos imprevistos que podem atravessar o percurso de qualquer um, mas sim das infindáveis variáveis que influenciam no andamento da vida escolar de um aluno (a forma como as aulas e as avaliações são realizadas, a organização escolar, questões sociais, vivências pessoais e familiares, por exemplo) e que não necessariamente deveriam ser assim determinantes.

Um outro aspecto que faz parte do imaginário social referente à reprovação refere-se ao fato da reprovação ter por “objetivo” que o aluno aprenda mais, ou seja, que a reprovação é uma medida usada pelas escolas para garantir uma melhor aprendizagem, sendo esta uma justificativa bastante utilizada pelos que defendem a reprovação como “recurso pedagógico”.

O Entrevistado 03 lança mão dessa ideia ao mencionar que “o conhecimento adquirido no ano que eu tecnicamente passei por ele, só foi reaproveitado, foi melhor esclarecido”, justificando que o ano em que foi reprovado não foi “perdido” em termos de conhecimento, mas sim por ter perdido o convívio com determinados colegas. Ou seja, mesmo se baseando na ideia de que pode ter aprendido mais por ter repetido o ano letivo, isto não foi suficiente para sufocar o sentimento de atraso em relação aos demais.

“Assim, tecnicamente eu acho que é um ano perdido. [...]Tipo, não na questão de conhecimento, porque o conhecimento adquirido no ano que eu tecnicamente passei por ele, só foi reaproveitado, foi melhor esclarecido. Mas em relação as demais pessoas que eu convivia antes de vir para cá, acho que foi uma perda. Eu me sinto como se estivesse atrasado.” (Entrevistado 03)

O Entrevistado 10 também faz menção ao atraso em relação aos colegas e isso parece fazer muito sentido principalmente quando se destaca que os entrevistados são alunos do Ensino Médio, ou seja, adolescentes vivendo o auge da sua necessidade de identificação com os pares e onde os grupos são fundamentais para que vivenciem o sentimento de pertença. Os sonhos e planos deles devem ter sido construídos incluindo os colegas de turma que serão, agora, distanciados por conta da reprovação. Pensando sob essa ótica, fica um pouco mais compreensível o sentimento de atraso em relação aos demais que seguem o curso esperado dos anos letivos.

“O ruim é porque você se atrasa, né? Assim, eu tinha muitos colegas, pessoas boas do meu lado...passaram mais na frente. Outras já foram embora e tudo.” (Entrevistado 10)

É tanto que, mesmo em situações em que a reprovação não é vista como uma experiência necessariamente ruim, a perspectiva do atraso faz-se presente.

“Teve [impactos] porque as vezes, por causa do meio, quando todo mundo fala que nunca perdeu, que nunca foi reprovado. Eu também nunca tinha reprovado antes. Minhas colegas dizem isso e eu fico com aquela ...” ah.... me atrasei em relação a eles”. Não foi ruim, mas estou atrasada.” (Entrevistado 05)

Nesse contexto de sentir-se em atraso, em desvantagem em relação aos seus pares há uma gama de sentimentos sendo vivenciados e que merecem profunda consideração.