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Capítulo 3: Os Afásicos e suas Narrativas

3.2. Subjetividade e afasia

Passamos a tratar, neste momento, de uma das questões que julgamos estar dentre as mais relevantes no estudo das narrativas no âmbito das afasias – a subjetividade, na perspectiva sócio-histórico-cultural, que concebe o sujeito constituído por suas relações com o outro e com a cultura. A abordagem discursiva das afasias destaca seu papel como aquele que trabalha sobre os recursos da língua para produzir/compreender enunciados. Bakhtin (1929/2010a) ressalta a relevância desta noção, diretamente ligada aos outros conceitos que postulou, como dialogia, alteridade mas conscientemente constroem uma metalinguagem sistemática com a qual falam sobre a língua” (p. 25).

e ideologia. O autor enfatiza o valor da interação verbal, que é o lugar onde a significação ocorre e critica tanto a ideia de sujeito enquanto criador individual da língua, posição que denomina de subjetivismo idealista, quanto a concepção de que a língua seja autônoma em relação aos indivíduos que a utilizam, corrente que caracteriza de objetivismo abstrato. A solução proposta pelo autor é, portanto, dialética, pois o que o sujeito faz para compor seus enunciados é selecionar, dentre os recursos da língua (fonético-fonológicos, lexicais, sintáticos), os elementos que lhe servem. Portanto, não se trata de um sujeito fonte dos sentidos e nem de um sujeito assujeitado. Sobral define o sujeito em Bakhtin como um sujeito situado, explicitado no trecho que reproduzimos a seguir:

A ênfase no aspecto ativo do sujeito e no caráter relacional de sua construção como sujeito, bem como na construção “negociada” do sentido, leva Bakhtin a recusar tanto um sujeito infenso à sua inserção social, sobreposto ao social, como um sujeito submetido ao ambiente sócio-histórico, tanto um sujeito fonte do sentido quanto um sujeito assujeitado. A proposta é a de conceber um sujeito que, sendo um eu para-si, condição de formação da identidade subjetiva, é também um eu para-o-outro, condição de inserção dessa identidade no plano relacional responsável/responsivo, que lhe dá sentido (SOBRAL, 2005, p. 22 apud NOVAES-PINTO, 2012a).

A partir dos pressupostos bakhtinianos, podemos afirmar que a subjetividade revela-se durante a construção dos enunciados nos processos dialógicos reais. Nesses processos, o sujeito produz seus enunciados motivado por um querer-dizer que é carregado de marcas de subjetividade. É dele – desse sujeito – a motivação para narrar, é dele o intuito de provocar no outro uma atitude responsiva. É ele quem escolhe se dirigir a um outro – mesmo que esse outro não esteja presente, como no caso de uma produção escrita, ou ainda num monólogo com ele mesmo (como quando “pensamos com os nossos botões”) – para compartilhar uma história, um ponto de vista, uma informação.

Para a construção do nosso discurso, lançamos mão dos recursos expressivos de uma língua comum aos nossos “parceiros do diálogo” (recorrendo à expressão usada por Bakhtin). Mais precisamente, escolhemos dentre os gêneros discursivos aprendidos nas inúmeras e precisas situações interlocutivas das quais participamos como sujeitos sociais aquele mais adequado para um momento preciso da interação verbal, pois cada situação dialógica é única, singular, e se realiza num determinado contexto sócio- histórico.

O gênero tem a possibilidade de se atualizar e modificar devido à atividade do sujeito que carrega com o seu querer dizer toda experiência passada e de projeção futura, marcada pela alteridade real, viva, ativa, que se revela no seu interlocutor. Essa alteridade é revelada pela alternância dos sujeitos, nos processos dialógicos. Os interlocutores vão dando, aos enunciados do(s) outro(s), acabamentos sucessivos (mesmo que silenciosos, não-verbais) e isso, por sua vez, interfere na enunciação seguinte. É a partir desses acabamentos que o sujeito se reposiciona, reelabora seu dizer, para alcançar seu intuito discursivo.

A partir de tais afirmações, consideramos, assim como Camargo (2010), que se apresenta aqui a possibilidade de estabelecermos uma relação entre os pressupostos bakhtinianos e a proposição de Labov e Waletsky (1967) e Labov (1972) com respeito ao que estes autores chamam de “avaliação”, aspecto fundamental na construção de uma narrativa. Para eles, é no momento da avaliação que decidimos o quê queremos contar e o porquê da narrativa ser reportável (digna de ser contada). A avaliação vai se dando ao longo de toda a produção da narrativa, não apenas antes de seu início.

Segundo Bakhtin (1979/2010b), para que nosso enunciado seja compreendido em seu todo (inteireza do enunciado), é necessário que tenhamos dito tudo o que era preciso sobre o objeto de que estamos tratando; ter um propósito discursivo (querer- dizer) e, por fim, escolher adequadamente o gênero discursivo de acordo com o interlocutor, situação e conhecimentos compartilhados. Como essas questões estão presentes o tempo todo na produção narrativa dos sujeitos afásicos, nos deteremos um pouco mais nesses conceitos.

Bakhtin explicita que “[...] os participantes imediatos da comunicação, que se orientam na situação e nos enunciados antecedentes, abrangem fácil e rapidamente a intenção discursiva, a vontade discursiva do falante, e desde o início do discurso percebem o todo do enunciado em desdobramento” (BAKHTIN, (1979/2010b, p. 282; grifo do autor).

Ao captarmos aquilo que o autor chama de querer-dizer do sujeito naquele determinado momento da interlocução, conseguimos medir a conclusibilidade do enunciado. Temos nessa afirmação, portanto, dois diferentes conceitos relacionados – o de querer-dizer e o de conclusibilidade. O querer-dizer (ou intuito discursivo) está presente em cada enunciado e o interlocutor interpreta, sente essa “vontade discursiva do falante, que determina o todo do enunciado, o seu volume e as suas fronteiras”

(1979/2010b, p. 281). O interlocutor imagina o que se quer dizer e então, por meio de como entende essa vontade verbalizada, pode medir a conclusibilidade do enunciado.

Já o conceito de conclusibilidade é “uma espécie de aspecto interno da alternância dos sujeitos do discurso; essa alternância pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condições” (BAKHTIN, 1979/2010b, p. 280). A possibilidade de responder, de assumir uma posição responsiva (como por exemplo, cumprir uma ordem) é o primeiro e mais importante dos critérios de conclusibilidade de um enunciado. Ainda nas palavras do autor:

[...] Alguma conclusibilidade é necessária para que se possa responder ao enunciado. Para isso não basta que o enunciado seja compreendido no nível

de língua. Uma oração absolutamente compreensível e acabada, se é oração e

não enunciado constituído por uma oração, não pode suscitar atitude responsiva: isso é compreensível mas ainda não é tudo. Esse tudo - indício da

inteireza do enunciado – não se presta a uma definição nem gramática nem

abstrato-semântica (BAKHTIN, 1979/2010b, p. 280; grifos do autor).

Consideramos que os conceitos bakhtinianos podem auxiliar na compreensão da relação instaurada entre os interlocutores em episódios dialógicos, quando se encontram frente às dificuldades discursivas dos sujeitos com comprometimento de linguagem, como a afasia. É bastante frequente nos depararmos com enunciados que revelam a dificuldade dos sujeitos para dizerem tudo o que gostariam de dizer. Citamos, como exemplos: “Eu não sei falar”, “Eu não falo nada” ou “Falo sem falar”45. Entretanto, os sujeitos dizem isso falando, construindo enunciados verbais. Por outro lado, podemos tomar tais afirmações como indícios de que o intuito discursivo (querer-dizer) e a exauribilidade semântico-objetal não foram plenamente alcançados (NOVAES-PINTO, 1999; CAZAROTTI-PACHECO & NOVAES-PINTO, 2011).

É a linguagem que organiza nossa experiência no mundo. É por meio dela que expressamos nossa identidade – quem somos, o que pensamos, com o quê concordamos ou não, o que pretendemos. As narrativas, por sua vez, nos permitem “recapitular” nossas experiências; expressamos nossa identidade por meio de histórias que contamos e recontamos.

Reproduzimos abaixo as palavras de Oliveira, também a esse respeito:

45

Enunciados de duas senhoras afásicas, cujos dados foram analisados por Novaes-Pinto (1999): os dois primeiros produzidos por CL e o terceiro por EV.

Esse caráter “historiado” da identidade permitiria referir-nos a ela como identidade narrativa (WINDERSHOVEN, 1994). As histórias contadas por uma pessoa são simultaneamente uma prática social (dirigidas a uma audiência, estruturadas com base numa língua pela qual a pessoa torna pública a experiência privada, e contendo crenças, valores e ideologias provenientes do contexto sociocultural), e uma atividade auto-epistêmica (WORTHAM, 2000), por meio da qual o sujeito se reconhece e se transforma, ao engendrar novos significados e comportamentos e ao tomar posição frente a eles, numa perspectiva ética (OLIVEIRA, 2006,p. 431).

De acordo com a autora, a abordagem narrativista e dialógica do desenvolvimento humano que se pauta nas práticas narrativas considera a dimensão de criação de novidade, o narrar como ato de emergência, contrapondo-se à noção de linguagem como janela para a mente. Nesses trabalhos, a narrativa recebe lugar central, pelo fato de possibilitar a construção do real e pela experiência de alteridade, relação na qual se processa a construção da identidade.

Segundo Oliveira (2006), ao se tomar o estudo do desenvolvimento humano como o estudo do tempo46 e suas implicações sobre a subjetividade pessoal e social e entendendo que por meio da narrativa a subjetividade se organiza e se traduz (abordagem narrativista e dialógica do desenvolvimento humano), o modelo linear e progressivo do tempo precisa ser superado. Essa visão, que dominou o campo científico por um século, necessita dar lugar ao tempo cíclico, a flecha de duas pontas de Mishler (2002 apud OLIVEIRA, 2006); tempo esse que se comprime, expande e que pode se recriar nas histórias e narrativas, que por sua vez são apresentadas e negociadas no jogo das interações sociais. Veremos que essa subjetividade revela-se constantemente nos discursos narrativos dos sujeitos afásicos que fizeram parte do corpus de nossa pesquisa.

46

Oliveira afirma que “como cenário do senso de si, as narrativas são o contexto do entrecruzamento de temporalidades, permanente tensão entre a ilusão de continuidade e coerência temporal e o tempo vivido, experiencial, cíclico, ilógico: de um lado, a ilusão de continuidade (identidade) preservando a noção de que se é uma mesma pessoa, apesar das profundas mudanças que cada um perpassa no ciclo de desenvolvimento; de outro, a passagem do tempo (desenvolvimento) como a própria condição de inteligibilidade da narrativa” (2006, p. 431).