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Os movimentos sociais buscavam uma igualdade material. Os trabalhadores começaram a reivindicar condições mais dignas de trabalho. Este movimento, que se consolidou na primeira metade do século XX, era um contraponto ao Estado Liberal de Direito.

Se na primeira “dimensão de direitos” a base era a liberdade, na segunda o foco era a igualdade. Nesta, há os chamados direitos positivos, haja vista exigir do Estado uma intervenção maior na sociedade. Na primeira, haviam obrigações negativas, ou seja, o Estado não deveria intervir nas liberdades, o sujeito se impõe

ante o autoritarismo absolutista, ante o Estado. Na segunda, este deveria intervir e promover direitos, como saúde e alimentação.

Os direitos referentes à relação do trabalhador assumem destaque neste segundo momento. Assumem a dianteira na luta por igualdade, justiça social. Arrancam direitos que pareciam impensáveis diante da estrutura econômica montada. No Brasil, esses direitos consolidaram-se com a CLT.

Assim, percebe-se a força deste grupo. Esses direitos foram adquiridos através de uma coesão. Os movimentos sociais assumiam uma identificação coletiva. O individualismo cedia ao coletivismo. Desta forma, segundo Luca (2003, p. 469), a “presença na cena política dos trabalhadores, por sua vez, desempenhou papel na concretização de mecanismos mais amplos de participação na vida pública e na busca por uma divisão mais justa e igualitária da riqueza social.”

As pessoas permaneciam mais tempo no mesmo trabalho. Em geral, a relação era muito mais longa que na contemporaneidade. Pesquisa baseada em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE afirmam que a média atual é de três anos em cada emprego (VILLAVERDE, 2014, online).

Era interessante para o trabalhador a estabilidade, enquanto para as empresas era importante que o trabalhador desempenhasse bem a função, e não tivesse que trocar seus funcionários constantemente. Betto esclarece desta maneira: “Lembramos de quando sentíamos orgulho de dizer: "Olha, meu pai educou a família trabalhando trinta anos na rede ferroviária"; "Minha mãe foi professora vinte e tantos anos”. O trabalho era fator de identidade”. (2009, p. 34)

Conhecer-se e ser conhecido pelo trabalho já não é a principal fonte de subjetividade:

a alienação do trabalhador completa-se na sua transformação em consumidor. Ainda quando não consome (as outras) mercadorias propagandeadas pelos meios de comunicação, consome as imagens que a indústria produz para seu lazer. Consome, aqui, não quer dizer apenas que o trabalhador contempla essas imagens, mas que se identifica com elas, espelho espetacular de sua vida empobrecida. (KEHL, 2004, p. 44)

O trabalho, entre outras mudanças já descritas, fragmentou-se, terceirizou-se, tornou-se instável e precarizou-se. Como consequência, constata Baumant (2000, p. 48) que “O papel — em outros tempos a cargo do trabalho — de

vincular as motivações individuais, a integração social e reprodução de todo o sistema produtivo corresponde na atualidade a iniciativa do consumidor.19

Mesmo assim, ainda permanece fonte de subjetividade, apesar de encontrar-se em decadência. As pessoas, que antes eram identificadas fortemente com esse papel, passam a se identificar com outras formas.

O trabalho possui, ainda, um valor inquestionável na comunidade brasileira. A Constituição Federal, reflexo dos valores e ideais de uma comunidade, coloca o valor social do trabalho como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, juntamente com a cidadania, a soberania, a dignidade da pessoa humana, a livre iniciativa e o pluralismo político. A Constituição é permeada pelo “trabalho”, tendo sido uma preocupação constante do constituinte.

O reconhecimento pela profissão continua exercendo influência na constituição de si, mas com um redimensionamento dessa posição. Observe Cortina (2009, p. 101): “O trabalho segue sendo em nossos dias o principal meio de sustento, um dos cimentos da identidade pessoal e um veículo insubstituível de participação social e política.20”

Pertencer a determinadas famílias também constituía traço de identificação. Hoje ainda há esta forma, mas bem mais restrita. Giglio relata que o sobrenome era também fator de identidade e foi perdendo-se, bem como a profissão. Estabelece então que o consumo encontra-se em evidência na identificação. Vide:

O homem ocidental perdeu primeiramente seu sobrenome como padrão de identidade. Posterior, mas não completamente, perdeu sua profissão como indicador de identidade. Agora sua identidade é dada pelos bens que possui e essa forma de definição de quem sou eu constitui o âmago do consumismo. (2004, p. 236)

Houve, consequentemente, um deslocamento na noção de cidadania: o trabalho perdeu sua força, o consumo ganhou a sua. O conceito de cidadania, então, acompanhou essa transformação motivada pelo supercapitalismo.

19

No original: “el papel — en otros tiempos a cargo del trabajo — de vincular las motivaciones individuales, la integracion social y la reproduccion de todo el sistema productivo corresponde em la actualidad a la iniciativa del consumidor.”

20

No original: “El trabajo sigue siendo en nuestros dias el principal médio de sustento, uno de los cimentos de la identidad personal y um vehiculo insustituible de participación social y política.”

O trabalho era fonte prioritária de expressão e reconhecimento da subjetividade da pessoa. De acordo com Marques (2013, p. 249), “o trabalho é fonte de subjetividade, local no qual o sujeito expressa sua atividade, integra relações sociais e é reconhecido pela sociedade.” Esta era construída dia-a-dia, e por isso a noção de cidadania era imbricada com a de trabalhador.

No Brasil, a cidadania esteve ligada a direitos trabalhistas. Ser cidadão era possuir carteira de trabalho e ter as garantias e exigências dai decorrentes. Era o passaporte para se obter direitos políticos. Conforme Bercovici (2006, p. 31)

O instrumento jurídico que comprova o vínculo do indivíduo com a cidadania é a carteira de trabalho. A extensão da cidadania ocorre pela regulamentação de novas profissões e pela ampliação dos direitos associados ao exercício profissional, ou seja, os direitos trabalhistas. O cidadão, então, era aquele que possuía carteira de trabalho e uma profissão estabelecida em lei. A participação e filiação a um sindicato finaliza o tripé no qual a cidadania era construída. Quem preenchesse estas condições, podia-se considerar cidadão.

Guilherme dos Santos assim mostra como a cidadania era vinculada à questão social do trabalho:

São cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas por leis. A extensão da cidadania se faz, pois via regulamentação de novas profissões e/ou ocupações, em primeiro lugar, e mediante ampliação do escopo dos direitos associados a essas profissões, antes que por extensão dos valores inerentes ao conceito de membro da comunidade. (SANTOS, G., 1979, p. 75)

Verifica-se, portanto, que enquanto o fator de identificação primordial era o de trabalhador, a profissão que exercia, ser cidadão era definido por quem exercesse uma profissão. Mais uma vez, o fator de identificação preponderante é o mesmo que dá acesso a condição principal da cidadania.

Lince (1995, p. 148) corrobora tal ideia afirmando sobre o novo sindicalismo (á época) que “se constituía como instrumento de defesa dos interesses concretos dos trabalhadores, apontava para um alargamento da cidadania política, incluindo na sua agenda do debate a questão social com sua face renovada.”

Como se vê, é uma cidadania também seletiva. Assim como no consumo só é considerado cidadão aqueles que podem comprar produtos, na cidadania regulada só adquiria esse status aqueles que tivessem uma profissão regulamentada.

Com o supercapitalismo, sabe-se que o trabalho perdeu seu valor, como descrito anteriormente. A subjetividade, que durante muito tempo fora ligada ao trabalho, agora é preponderantemente buscada nas mercadorias e produtos fornecidos pelas empresas.

Há uma passagem nesta identificação, da subjetividade ligada ao trabalho à consumerista. O trabalho mostra-se flexível, tanto pelo viés das corporações, quanto pelo viés dos trabalhadores. A relação profissional então está mais “líquida”, fluida.

Com isso a faceta de cidadania que mais se expande é a de cidadão consumidor. Este vê uma ampliação de seu poder, de recursos, ferramentas, direitos subjetivos e tantos outros benefícios que decorrem da identificação com esse status.

As diversas faces da cidadania não são excludentes entre si, são complementares. O reforço da cidadania política, por exemplo, reforça as conquistas e abre novos caminhos para o exercício da cidadania civil, por exemplo. Os novos movimentos sociais, que vêm substituindo os “antigos” (como o sindicalismo e o partidarismo), vêm ganhando espaço na subjetividade, apesar de tímidos, e, logo, como estão conectados, na cidadania.

Boaventura Santos sugere novas formas de cidadania, que vão além das clássicas sociais, políticas e civis. Enxerga o autor a possibilidade de uma cidadania mais ativa, mais cooperativa, horizontal, onde os cidadãos possuem maior autonomia e não estão necessariamente dependentes de um Estado. Os novos movimentos sociais, tais como o pacifismo, feminismo e ecológico podem e devem reforçar a cidadania. Vide:

Sem postergar as conquistas da cidadania social, como pretende afinal o liberalismo político-econômico, é possível pensar e organizar novos exercícios de cidadania - porque as conquistas da cidadania civil, política e social não são irreversíveis e estão longe de ser plenas - e novas formas de cidadania - colectiva e não meramente individuais; assentes em formas político-jurídicas que, ao contrário dos direitos gerais e abstractos, incentivem a autonomia e combatam a dependência burocrática, personalizem e localizem as competências interpessoais e colectivas em

vez de as sujeitar a padrões abstractos; atentas às novas formas de exclusão social baseada no sexo, na raça, na perda de qualidade de vida, no consumo, na guerra, que ora ocultam ou legitimam, ora complementam e aprofundam a exclusão baseada na classe social. (2010, p. 263)

Para Betto (2009, p. 34), a identidade contemporânea é estar no consumo. “Não se menciona mais o trabalho, porque infelizmente o fator de identidade social não é o trabalho, é estar no mercado.” E entrar no mercado é tornar-se consumidor, ter seus direitos ampliados. Contraprestações são oferecidas a quem participa. Conseguiram transformar uma situação econômica e ingressaram em uma diferente condição social.

Prossegue o autor afirmando que "o grande drama das pessoas, hoje, não é ter ou não um trabalho, mas como se inserir no mercado". (2009, p. 35) Sedentas de identidades, os sujeitos buscam entrar no mercado consumidor, mais do que identificar-se com uma profissão. Consumir era consequência do trabalho; hoje, o trabalho é um caminho para poder consumir.