• Nenhum resultado encontrado

Para tratar dos aspectos interculturais nas letras de canções, seguiremos as orientações de análise temática feita por Napolitano (2002) e o conceito de lexicultura proposto por Robert Galisson e retomado por Barbosa (2008), além de algumas considerações sobre aspectos das discursividades argentina e brasileira levantadas por Fanjul (2002). Para as propostas de interculturalidade com canções brasileiras que poderão ser utilizadas nas aulas de LE nos apoiaremos em Serrani 2005.

Sobre a história da música nas sociedades ocidentais, Napolitano (2002) destaca três momentos: a) o da revolução burguesa, por volta de 1850, com o predomínio de formas musicais sinfônicas e valores culturais consagrados;b) a forma canção de gêneros dançantes que se inicia com o nascimento da cultura de massa e se consolidou entre 1920 e 1940; c) o rock’roll, BeBop e Free Jazz que surge após a segunda guerra mundial com o advento da cultura pop. De acordo com o autor, esta linearidade atende ao modelo europeu, e deve ser repensada para a realidade Latino Americana, continente, conforme aponta Canclini, formado por contextos culturais híbridos em que “os planos culto e popular, hegemônico e vanguardista, folclórico e comercial, freqüentemente interagem de uma maneira diferente em relação à história européia” (NAPOLITANO: 2002, p. 14). Não nos atentaremos aqui para as várias definições em torno da música popular, as críticas que relacionam o crescimento deste tipo de música com a indústria cultural, e a forma como estas canções contituíram-se. No

entanto, gostaríamos de ressaltar que na América tal gênero musical foi se constituindo por meio da contribuição de outros povos como a dos afro-americanos no jazz norte-americano, no son e rumba cubana e no samba brasileiro, as formas musicais indígenas, na cuenca chilena e o bolero mexicano ou o tango argentino que são síntese de algumas formas musicais européias, ou seja, a música popular nasceu do entrecruzamento de culturas.

Segundo Napolitano, ao utilizar o documento ‘canção’ como recurso didático é necessário respeitar alguns procedimentos, primeiro é preciso lembrar que o texto canção é composto por parâmetros poéticos (letra) e musicais (música) e “mesmo que durante a análise, para efeito didático e comunicativo, tenhamos que separar essas duas instâncias, não podemos esquecer de pensá-las em conjunto e complemento”. (NAPOLITANO: 2002, P.97). Os parâmetros poéticos englobam o tema geral da canção, a identificação do eu poético e de seus interlocutores, o desenvolvimento (o que é narrado) a forma, ocorrência de figuras e gêneros literários e intertextualidade. Os musicais envolvem melodia, arranjo, andamento, vocalização, gênero musical, efeitos e intertextualidade musical. Em nossa pesquisa nos atentaremos mais aos parâmetros poéticos, comentando os musicais quando nos parecer relevante.

Outro elemento de análise que Napolitano considera importante é o contexto de criação, a canção não é um produto isolado e os artistas pensam sua obra dentro de um grupo social e um campo sociocultural determinado. A participação do intérprete na produção da canção, o meio de circulação e escuta e as formas de recepção da canção (grupo social, faixa etária, preferências ideológicas e culturais, etc) também são destacados pelo autor.

De acordo com Barbosa (2008, p.130), o léxico também desepenha um papel importante nas letras de canções. Apoiada nos conceitos de lexicultura e carga cultural compartilhada proposto por Robert Galisson, a autora argumenta que as palavras vão incorporando significados de acordo com o uso que se faz delas em determinadas comunidades linguísticas. Tais usos nem sempre estão presentes nos dicionários e seus sentidos muitas vezes não são evidenciados para falantes de outras línguas, ou, acrescentando nossa opinião, até mesmo para falantes da mesma língua que não compartilham da mesma comunidade linguística. Quanto aos nomes de marcas de produto, eles podem passar a desempenhar um papel importante na memória coletiva de determinados grupos, deslocando- se assim da sua função inicial, a de vender. Em relação à carga cultural compartilhada, a autora acrescenta que:

“é o produto de julgamentos veiculados por [a] locuções figuradas, [b] locuções figuradas associando animais a defeitos ou qualidades humanasse, [c] inanimados culturais (objetos frabicados pelo homem ou coisa da natureza aos quais são creditadas cargas que qualquer nativo reconhece ao contato - visual ou auditivo – com a palavra que se refere ao objeto ou coisa.” (BARBOSA: 2008, p.130)

Para a realização das propostas interculturais, nos apoiaremos no trabalho apresentado por Serrani (2005, p.31-32), a autora enfatiza a importância da presença do elemento cultural nas aulas de LE a fim de garantir a heterogeneidade social e linguística. Para tanto, são apresentadas algumas atividades de exploração textual que estão baseadas em três eixos: a) territórios, espaços e momentos - ressalta a importância do espaço que se define por sua história, pelos conflitos, alianças e acordos sociais.

b) pessoa e grupos sociais - reflexão em torno das diferenças étnicas, raciais, de classe sócio- econômica, atividade profissional, etc.

c) legados socioculturais - seleção de materiais linguistícos discursivos correspondentes a territórios, momentos e grupos socias que permitam um enfoque cultural heterogêneo e que propicie a reflexão na língua alvo e na língua materna.

Seguindo um viés discursivo, gostaríamos de ressaltar também um elemento presente na discursividade de brasileiros e argentinos (Fanjul, 2002) que contribuirá para a análise das canções: as representações criadas ao longo da história em relação às sociedades brasileira e argentina. Enquanto a representação do brasileiro girou em torno da figura do homem cordial, cuja discursividade se relaciona à representação da pessoa a partir de sua sociabilidade, o argentino é caracterizado por um discurso centrado na pessoa, muitas vezes visto como individualista e orgulhoso. Outro aspecto diferente são as marcas históricas dos regimes políticos ditatoriais, segundo Fanjul dificilmente um argentino diria que “a violência política, sobretudo o terrorismo de estado de 1976-1983, não tenha deixado ‘grandes feridas que sangrassem pelo país todo’” (FANJUL: 2002, p.173). Pensando na sociedade de maneira geral (e não nos grupos que sofreram diretamente a repressão militar), a violência política não deixou marcas tão fortes no imaginário social de brasileiros como na Argentina, onde a repressão aconteceu de maneira mais direta e explícita.

Acreditamos que a observação dos elementos apresentados acima ajudará a identificar os aspectos culturais presente nas letras. O intuito não é transformar a canção apenas em um objeto de análise, provocando a morte do gênero musical, mas aproveitar a riqueza deste gênero que no que se refere ao componente cultural.