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A subversão teológica como nova ética

A subversão teológica como nova ética

Percebemos em Espinosa um ato multiplicador de subversões antiteológicas: “Deus é causa imanente de todas as coisas e não causa transitiva”. “Se segue clarissimamente de que aquilo que podemos chamar de ‘milagre’ só se pode entender em relação às opiniões humanas e que não significa senão uma obra cuja causa natural não podemos explicar”(ESPINOSA, 2003, TTP, cap.VI, pag. 97)161. “A dificuldade de se interpretar a Escritura nunca surgiu da falta de forças da luz natural, se não unicamente da negligência...” Proposições que abalam a crença no espiritual que define o próprio Deus, sua ação no milagre e os mecanismos para a interpretação de sua Palavra. Não há o sobrenatural: não há exceções... Ora, o fundamento da crença na autoridade está justamente na crença de que exista o espiritual, aquilo que é o elemento sobrenatural da origem do mundo, Deus, de sua ação no mundo e do próprio homem. Quando Espinosa subverte essa crença no espiritual, no sobrenatural, ele está advogando a possibilidade de compreensão de tudo o que existe a partir de uma feixe de causalidade natural. Nada mais típico de Espinosa. E com isso, abole-se o círculo de interpretação tanto das Sagradas Escrituras quanto da Natureza. No primeiro caso, para se fazer boa interpretação era necessária a fé. Ora, mas a fé só advém com a leitura do livro. No segundo caso, pode-se compreender a Natureza por si mesma, o que não fora conseguido por Descartes, que ainda colocava a causalidade natural dependendo do beneplácito de Deus. Descartes é ainda o criacionista mais radical da história.

161 “O vulgo, com efeito, pensa que a providência e o poder de Deus nunca se manifestam tão claramente como quando parece acontecer algo de insólito e contrário à opinião que atualmente se faz da natureza, em especial se resultar em proveito ou vantagem. (...) Por outras palavras, pensa que Deus está inativo quando a natureza age de acordo com a ordem normal e que, por seu turno, a potência da Natureza e as causas naturais estão paradas quando Deus age. (...) O homem comum chama, portanto, milagres ou obras de Deus aos fatos insólitos da natureza e, em parte por devoção, em parte pelo desejo de contrariar os que cultivam as ciências da Natureza, prefere ignorar as causas naturais das coisas e só anseia por ouvir falar do que mais ignora e que, por isso mesmo, mais admira. (...) Tal opinião, de resto, parece vir já dos primeiros judeus, os quais, para convencer os gentios de então, que adoravam deuses visíveis, tais como o Sol, a Lua, a Terra, a Água, o Ar, etc. e mostrar-lhes que esses deuses eram fracos e inconstantes, isto é, mutáveis e submetidos à autoridade de um Deus invisível, narravam os seus milagres, tentando assim demonstrar também que toda natureza estava ordenada em benefício exclusivamente deles pelo poder do Deus que adoram(...) Se admitíssemos que Deus faz alguma coisa contrária às leis da natureza, seríamos também obrigados a admitir que Deus age em contradição com a própria natureza, o que é um absurdo”. (ESPINOSA, Op. Cit, 2003, pág. 95 a 170)

A subversão espinosana consegue de cheio abalar a idéia de pessoalidade em Deus, a idéia de criação, a teodicéia, etc. Isso inspira um novo modo de pensar que abala qualquer tentativa de teísmo, seja panteísmo, seja ateísmo, seja misticismo. E isso ocorre com todos os léxicos que a tradição ocidental usou para justificar a crença nesse Deus pessoal: substância, atributo, liberdade divina, amor a Deus, beatitude, eternidade, ética... Tais subversões são a propedêutica de um novo ato filosófico. Assim, usar da linguagem teológica contra a linguagem teológica se inscreve como uma atitude similar a de usar a filosofia contra a filosofia tradicional, ou mesmo, recuperar e instaurar um novo sentido para a filosofia, enquanto novo uso da filosofia. (BOVE, L. La théorie du langage chez

Spinoza, disponível em: http://martinetl.free.fr/spinoza/bove.htm. O autor enfatiza muito a

noção de uso estratégico da linguagem).

Sabemos que em Espinosa corpo e mente não estão separados. Analisaremos neste capítulo, a subversão que coloca o corpo humano como ponto de partida. Depois, por conseqüência desse primado do corpo, como podemos operar com a linguagem filosófica. Ora, existe uma linguagem natural, do vulgo, que está no primeiro gênero de conhecimento. É a linguagem que advém da imaginação, a linguagem teológica. M as q u al l i n gu agem n ão é fru t o d a i m agi n ação? Espinosa não cria uma nova linguagem, não é adepto do formalismo da linguagem perfeita, como Leibniz, justamente porque a linguagem passa pelo corpo é ação do corpo. Não existe linguagem completamente depurada: a linguagem possui uma produtividade interna que a impossibilita não ser contaminada pela imaginação.

Subverter a teologia possui uma conseqüência muito mais radical do que simplesmente desmerecer dogmas: pode-se contra a teologia construir-se outra. Os sistemas metafísicos de Descartes e Leibniz fizeram isso, uma vez que não se confrontaram radicalmente com a tradição. A criação de entes transcendentes, os quais servem de pronto como fundamento e legitimação do discurso acerca da verdade, não deixa de ser um resquício teológico para a atividade filosófica. Redescobri-la será redescobrir aquilo que ficou obliterado por essa tradição teológica: isso inclui o sentido da piedade, da verdadeira religião e da felicidade que nasce da fruição de Deus pelos homens. Isso inclui subverter todos os signos da autoridade e com isso, redescobrir a filosofia. (HERVET, 52)

Ora, qual seria o sentido dessa religião subversiva? Ela é um caminho estritamente individual em rompimento com a coletividade, ou seria um caminho estritamente coletivo sacrificando a individualidade? Minha proposta é que tanto o coletivo quanto o individual, são dois aspectos da existência política. Não se pode sacrificar nem um nem o outro completamente. Dessa maneira, o intento de reduzir ao máximo as afecções passivas e as idéias inadequadas só é possível quando se consegue um número suficiente de indivíduos com idéias adequadas, procurando aumentar a sua potência de compreensão. Assim, quanto maior for o número de indivíduos que ascendam a essa empreitada, maiores são as possibilidades também de uma realização individual: “O homem que é dirigido pela razão, é mais livre na cidade onde ele vive segundo um decreto comum do que na solidão quando ele obedece apenas a si mesmo”. (Ética IV, prop. LXXIII).

Vimos no capítulo anterior que a busca pela utilidade comum coincide com a de nossa própria utilidade, e coincide também com o que é útil à totalidade da Natureza, já que nossa potência depende completamente do restante da Natureza, a qual não pode ser ignorada. A sabedoria exige melhoria de nossas relações interpessoais: ela exige considerar nosso progresso ético com o progresso dos demais. A sabedoria não é senão o aprendizado do amor, que estreita laços, educa e compreende. Assim, o projeto de Espinosa sai do campo restrito de um sistema filosófico e se abre como uma nova perspectiva de futuro plantada a partir de novas condições concretas de vida. A melhoria ética não é o reino de Deus no sentido de que não é uma vida sem conflitos: mas uma perspectiva na qual eles surgindo possam ser resolvidos e levem em conta os interesses das partes conflitantes. (BOVE, op. Cit)

Ora, isso significa que esse novo projeto ético levará em conta o caráter agônico da existência humana. “Certas coisas existem na natureza (...) que me parecem vãs, desordenadas, absurdas (vana, inordinata, absurda)”, carta 30 a Oldenburg, procurando superá-lo pelo exercício de uma alegria ininterrupta. É possível um mecanismo que afirme a alegria de viver, mesmo nos momentos de abandono e sofrimento? Tal declaração faz menção a traços numerosos de agonia existencial, as quais precisam ser compreendidas para se edificar o todo da Ética. No início do TER (Tratado da reforma do Entendimento), por exemplo, Espinosa fala de bens perecíveis, incertos que são um verdadeiro veneno mortal. Sua busca no TRE, por exemplo, é a mesma de um

médico que desesperadamente procura um remédio contra uma doença de morte162. O absurdo é justamente a falta de ordem. Mas o absurdo também é a nossa maior tentação a qual devemos evitar. O pensamento precisa encontrar caminhos expressivos de alegria já que a tristeza é sempre um perigo constante. Nesse sentido, a filosofia de Espinosa mais parece ser a busca constante de ordenação lógica, de compreensão em meio ao caos, do que uma configuração eterna de uma ordem que ninguém consegue encontrar ou compreender. (RAMOND, Op. Cit, 2007, pág. 140 ) Esse exercício filosófico é justamente o exercício ético por excelência.

Ora, Espinosa sabe que “é raro que os homens vivam sob a condução da razão” (EIV, prop. XXXV, escólio). Nesse sentido, o problema da ética ganha uma dimensão enorme. Como dirigir a multidão? Como ordenar esse caos desordenado e confuso que é a multidão? Como fazer que ela se ordene de modo a progredir eticamente, usando da razão, que nunca usa? Como fazer com que sua potência verdadeiramente aumente?

O TTP nos ensina duas coisas: 1) é possível que os homens sejam postos em condições institucionais e jurídicas tais que possam acender a liberdade (esse percurso é feito dos capítulos 16 a 20); e 2) a história é o terreno da transição ética. Nela se encontram em ação os mecanismos afetivos que a Ética descreve e a ação das normas de vida em comum que são específicas à verdadeira religião. Há assim um otimismo diante dessa possibilidade real de transição ética que leva em conta o realismo da irredutibilidade das paixões, historicizando e humanizando os modos de vida religiosos. Dessa maneira política é coordenação proveitosa dos afetos; toda ciência política é ciência da afetividade e diante da impotência da razão devemos não mais apelar para a fé, mas com novos mecanismos produtores de bons afetos (BOVE, Op. Cit)

162 “O mesmo que um enfermo, que padece de uma enfermidade mortal, quando prevê a morte certa senão encontra um remédio,se vê forçado a busca-lo com todas as suas forças, ainda que seja inseguro, precisamente porque nisto reside toda a sua esperança” (SPINOZA, Tratado de la Reforma del Entendimento, Madrid, Alianza, 2006, parágrafo 7, página 79 e 80).