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Nos anos de 1980, outros grandes movimentos subversivos compuseram a cena cultural mundial, parte deles dividindo o entusiasmo pelos ―vagabundos iluminados‖ das décadas anteriores: ―Punk em 76, New Wave (mais fina, menos agrê) em 78, Post- Modernismo total, livre, saudável e sem culpa, nos 80s‖ (BIVAR, 1984, p. 131). A crise do petróleo nos Estados Unidos, entre outros condicionantes, fez ressurgir os movimentos de contracultura e o aparecimento dos enjeitados do sistema, além da promoção de uma releitura do poema ―Howl‖, de Ginsberg, para um momento mais recente da História:

A Contracultura – em suas mil ramificações de hippies, heads, freaks e estudantes drop-outs – baratinada por um lado, entre maus perdedores no limbo e, por outro lado, ex-heróis ex-contestadores agora milionários beneficiados do Sistema passando férias em Nassau, capitalistas sem outra energia a oferecer que carimbos, clichês e blablablás [...]. No meio do pessimismo de 1974 um bookzine obscuro e meio anacrônico chamado The Savoy Book – editado por um bando literrati de Manchester – trazia uma interessante reversão de Howl de Ginsberg. Era o uivo dos enjeitados do Sistema nos anos da Grande Decepção que foram os anos após-sonho (BIVAR, 1984, p. 127).

No início dos anos de 1980, muito dos beats já se consideravam ―aposentados‖ das estradas e da poesia. Quem ainda exercia seu papel de escritor e inicia um ciclo de palestras pelas universidades dos Estados Unidos é William Burroughs. Grande parte da chamada arte experimental surgida nos anos 1980 foi influenciada por ele.

Gostar ou não de Willian Burroughs é irrelevante. Ele simplesmente está lá, uma presença na cultura, uma influência maciça não só na prosa dos 60s, 70s e 80s, mas também em mais de duas décadas de artes performáticas, filmes experimentais e cultura pop. Muitos novos artistas de vanguarda atual trabalham em cima das ideias de Burroughs. Além do mais, qualquer um pode abrir oficina de arte, gravar disco, virar figurinista, inventar roupas e desfiles, artes gráficas, revistas e colagens, formar uma banda, mexer com informática e desvendar mistérios da tecnocrônica (BIVAR, 1984, p. 130-131).

Na década de 1980, Burroughs ainda estava presente na cena literária americana, menos como um underground e mais como escritor e palestrante. Toda a cultura pop dos anos 80 parece ter sido de alguma maneira influenciada por esse autor, que em 1982 publica seu último livro: Cidades da noite escarlate.

Burroughs trabalhou dez anos em Cities. Esta não é, claro, uma novela convencional; mas segue uma linha coerente que só ocasionalmente sai da trilha e cai no delírio. Centrada em cinco antigas cidades do deserto de Gobi, cidades que foram, em outras eras, populadas por uma sábia e graciosa raça Black, os habitantes originais da Terra. Sucedeu algo desastroso durante um misterioso estouro atômico que fez o céu vermelho para sempre, espalhando um vírus latente tipo B-23, causando a mutação da maioria dos blacks numa raça maldosa de gente White. Completamente inábeis no controle de si mesmos e de seus apetites sexuais esses mutantes fazem brotar mamilos extras, tornam-se escarlates e só conseguem atingir orgasmo estrangulando-se mutuamente durante o ato sexual (BIVAR, 1984, p. 133- 134).

Tem-se a impressão de que A fúria do corpo e Cidades da noite escarlate, escritos praticamente na mesma época, aproximam-se por apresentar comumente um projeto subversor, compostos por elementos anárquicos e excêntricos que apoderam-se de toda a obra. Vinte e três anos depois de publicar um dos mais reconhecidos livros da cultura underground, Almoço nu, Burroughs publica Cidades da noite escarlate, uma narrativa paradoxalmente envolvida por uma atmosfera pós-utópica, mas que não abandona seu aspecto onírico e fantasioso:

Meninos pequenos, nus, caminham ao longo das margens, jogando frutas na água e se masturbando, enquanto emitem pios de aves e ruídos de animais, rindo, cantando, gemendo, esguichando esperma, que faísca ao sol. Ao passarmos, os meninos se dobram, acenam e sorriem entre as pernas, como feixes de trigo entreabertos pela suave brisa que nos empurra até o cais (BURROUGHS, 1995, p. 198).

Nessa novela de Burroughs, que faz lembrar muito A fúria..., existem dois grupos inimigos: os tiranos da raça White, liderada por Skipper Nordenholz que, através de um banco

genético especial, reproduzia ―hitlerettes‖. Do outro lado, encontram-se ―os garotos selvagens‖: homossexuais e assassinos que tinham o poder de viajar no espaço e no tempo. A maior inspiração de Burroughs para essa novela foi um pirata francês conhecido como Capitão Mission, que criou na África, pelo menos um século antes das revoluções francesa e americana, uma comunidade chamada Libertatia. Nessa comunidade, todos os marginais da civilização tornaram-se livres da escravidão e da religião. Pensando nisso, William Burroughs pontua na Introdução do romance:

A oportunidade existiu. E foi perdida. Os princípios das revoluções francesa e americana tornaram-se mentiras pomposas na boca dos políticos. As revoluções liberais de 1848 criaram as supostas repúblicas da América Central e do Sul, com uma lamentável história de ditadura, opressão, corrupção e burocracia, fechando assim esse vasto e pouco povoado continente a qualquer possibilidade de comunas que seguissem as linhas propostas pelo capitão Mission. De qualquer forma, a América do Sul será em breve cruzadas por estradas, pontilhada por motéis. Na Inglaterra, Europa Ocidental e Estados Unidos, a superpopulação possibilitada pela Revolução Industrial não deixa muito espaço para comunas, que em geral ficam sujeitas a leis estaduais e federais e com frequência são assediadas pelos habitantes locais. Não resta simplesmente nenhum espaço para a ―liberdade da tirania do governo‖, pois os habitantes das grandes cidades dependem disso para o alimento, energia, água, transporte, proteção e bem-estar. Seu direito de viver onde quiser, com companheiros de sua escolha, sob leis com que concorda, morreu no século XVIII com o capitão Mission. Só um milagre ou um desastre poderia restaurá-lo (BURROUGHS, 1995, p.12).

O começo dos anos oitenta parece ter sido marcado, então, por uma mistura de utopia e melancolia causada pelas guerras e ditaduras. O neoliberalismo e a massificação do sujeito contemporâneo contribuíram para esse sentimento complexo de luto. Em entrevista ao jornal ―Gay Sunshine‖, lançado em 1980, Burroughs afirma:

Não quero parecer pessimista, mas tenho a impressão de que nenhum movimento revolucionário tem qualquer chance real de êxito no ocidente. São muitas as razões para isso. Uma é que o processo industrial já está muito avançado. Depois de um certo momento de industrialização, uma revolução vinda de baixo – isto é, nas ruas, nas barricadas – é completamente impraticável. Até o México já atingiu esse estágio. O que significa simplesmente que as pessoas que estão numa posição de poder são capazes de manter debaixo de seu tacão noventa e cinco por cento da população pela força, se tiverem que fazer isso, e se tiverem as armas necessárias para tal (BURROUGHS apud BIVAR, 1984, p. 167).

Mesmo com esse discurso pessimista, Cidades da noite escarlate vive da confluência de um futuro pouco otimista com ecos de uma utopia ressonante. William Burroughs, assim como Noll, reintegra essa possibilidade perdida de comunhão social, partindo da premissa comum de liberdade religiosa, política e social. Mesmo com o sentimento de fracasso, há uma

insistência naquilo que ―poderia ter dado certo‖, não deixando de lado seu sentimento de desprezo e luto frente as batalhas de poder, as guerras.

Trabalhamos com frequência nus, no quarto do governador, examinando os mapas com todo o corpo, efetuando cópulas rituais na frente dos mapas, animando-os com nosso esperma. O mapa principal é a Visão Geral, mostrando toda a área atual de ocupação, de Cartagena no lado do Altântico até as Pearls Islands no Pacífico, e para o norte, até um ponto 150 quilômetros ao norte da Cidade do Panamá. Os alfinetes verdes no mapa indicam as cidades ocupadas pelos guerrilheiros. Os alfinetes pretos designam as áreas ocupadas pelos espanhóis (BURROUGHS, 1995, p. 174).

A satirização da guerra e o discurso libertário de Capitão Mission, que queria tornar livres todos os escravos do mundo, vivendo em uma comunidade sustentável onde todos teriam suas liberdades garantidas, é assumida – mesmo que por uma postura variável – pelos ―garotos selvagens‖ em Cidades da noite escarlate, e também pelo casal-protagonista de A fúria...,

Afrodite segura na minha perna dilatando as narinas porque é Carnaval e o Carnaval é o momento de encarnar definitivamente na sua missão de justiceira na vanguarda da luta dos oprimidos machucados humilhados fodidos Afrodite Barbarela Bela encontra passionária seu êxtase triunfal ao som agora do Navio Fantasma Wagner já não cabe nas cinco linhas da pauta que lhe deram e transborda pelas cordilheiras dos picos mais altos do Universo (NOLL, 2008, p. 165).

Há, também, alguns outros aspectos que aproximam Noll de Burroughs. A cidade ocupa um lugar de destaque nessas duas narrativas e em praticamente todas as narrativas desses autores. A representação invade as margens dos espaços urbanos, evidenciando hábitos e identidades do submundo dos grandes centros, mesmo que esse submundo não se apresente de forma elucidativa, representando uma cidade real. A atmosfera grotesca, ou a escatologia propriamente, é outro ponto de aproximação desses dois autores. O narrador de A fúria... se despe de qualquer recato que o possa impedir de dizer uma palavra ou expressão ―ordinária‖, tendo, pois, um sentimento menos romantizado em relação à sociedade.

[...] precisava ser profissional ao menos uma vez na vida, era meu caralho que contava e não informações sobre cantatas, o homem segurou meu pau, tirou ele pra fora, deitou comigo num sofá branco, foi tirando minha calça, camisa, e entrou numa sessão de chupada, o negócio do homem era chupar e comecei até gostar até que ele enfia o dedo pelo meu cu adentro e pensei em cortar aquela brincadeira, doía aquele dedão no meu cu, mas logo vim a mim e pensei o homem tá me pagando o que pedi, me dá o dinheiro gritei um pouco alto demais pra ocasião, o homem se assustou e procurou no bolso da calça as três notas de mil e lá vieram elas, novinhas pra minha mão, ah sim assim que eu gosto, falei isso me sentindo um pouco ridículo (NOLL, 2008, p. 106).

As relações homoeróticas, tanto em Noll como em Burroughs, se dão de uma maneira muito visceral, excessiva e hipermimética. O corpo e as relações sexuais são proeminentes, dissolvendo os limites do erotismo. As relações homoeróticas estão associadas à transgressão moral, e a maneira ―libertina‖ de representar o ato sexual demonstra abertamente um recôndito do instinto humano associado tanto aos prazeres do corpo, quanto aos prazeres do espírito. As figuras ligadas ao cristianismo subvertem um modelo religioso senso-comum, para encontrar uma nova forma de espiritualidade ligada ao sexo. Diferentemente de Marques de Sade10, por exemplo, que recusava por completo a figura de Deus em nome de uma revolução moral, o erotismo em Noll e Burroughs associa-se a figuras espirituais e mitológicas a fim de estabelecer um novo modo de associação. Por isso, principalmente em Noll, a representação do sexo, mesmo que de maneira escatológica, relaciona a ideia de orgasmo/gozo a epifanias espirituais.

[...] ontem foi um bedel de uma escola que queria feri-la com cravos como os de Cristo, queria porque queria pregá-la em cruz, mãos e pés contra a porta e ela ainda viu charme nisso tudo, é louro de olhos azuis ela argumentou efusiva, ele dizia que há ouro no seu cativeiro, e que é nesse cativeiro que ele quer redimir o mundo dos pecados, mas quer redimir o mundo dos pecados no cativeiro de uma mulher como Afrodite porque Afrodite viveu até a última instância do pecado mas tem a santidade inata para ressurreição (NOLL, 2008, p. 86).

Burroughs, que ficou conhecido na década de 1950/60 pelo seu experimentalismo literário com a técnica cut-up11, em Cidades da noite escalarte constrói uma narrativa mais linear. Enquanto isso, Noll está dissolvendo paradigmas estéticos, experimentando alternativas técnicas e possibilidades literárias, já em seu primeiro romance.