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O SUJEITO, A AGRESSIVIDADE E A VIOLÊNCIA

Nos dois capítulos anteriores, acompanhou-se a teoria freudiana acerca da estruturação e perpetuação da civilização, sustentada pela instauração da Lei cuja gênese mítica remete ao assassinato do pai da horda primeva. Mas esse movimento, de interditar-se algo que é da ordem natural para adentrar na cultura da civilização, diz também respeito à constituição de cada sujeito, conforme aponta Elia (2007):

Esse mito diz que, como sujeitos, procedemos de um ato, um assassinato, que nos arranca da natureza, que nos faz culpados, sem que tenhamos matado Pai algum que fosse encontrável: matamos o Pai-natureza [...], e por esse ato ingressamos na cultura carregando uma espécie de “buraco em nossa alma”. O que significa este buraco? Significa que é só por uma falta no nível do ser, do ser vivo, natural, que o sujeito tem a condição de emergir como tal. [...] É por carregarmos o fardo do vazio da natureza assassinada que não somos meros anjos culturais, pacíficos seres civilizados, simbólicos, vivendo eternamente perplexos com a barbárie dos que ainda não se teriam civilizado como nós. (p. 47-49)

O que é isso de natural que se perde? E por que somos “arrancados da natureza” ao ingressarmos na cultura como sujeitos? Para responder essas questões, precisamos olhar para o momento em que o filhote humano surge em um contexto social, cultural e simbólico que o antecede. Em termos biológicos, esse bebê encontra-se na total dependência de cuidados que garantam sua sobrevivência, tal é sua situação de desamparo. E mais do que isso, ele está experienciando pela primeira vez sensações como fome, dor, frio e estímulos sensoriais, todos inexistentes na vida intrauterina. Não é difícil imaginar o impacto aterrorizante que tais sensações produzem no bebê. Mas no meio de todo esse caos sensorial, surge na cena do bebê alguém capaz de não apenas minimizar as sensações desagradáveis, como também produzir percepções agradabilíssimas, na medida em que seus desconfortos são remediados, e esse bebê experimenta as sensações prazerosas decorrentes desse cuidado que lhe é prestado. Até aqui, tal cenário, em termos biológicos, não diferiria o filhote humano de outras espécies mamíferas, se não fosse por um detalhe: o humano que o atende já está inserido numa estrutura social, cultural, simbólica e de linguagem, e é a partir desse lugar que ampara o bebê. Elia (2007) relembra-nos como Lacan define e nomeia a função desse humano que perpetra a ação específica necessária à sobrevivência do bebê:

Lacan propõe a categoria de Outro (com “o” maiúsculo) para designar não apenas o adulto próximo de que fala Freud, mas também a ordem que este adulto encarna para o ser recém-aparecido na cena de um mundo já humano, social e cultural, que, para simplificar nossa exposição, acompanharemos a sociedade e chamaremos de

bebê, como fazem as teorias que tratam desse assunto. O Outro não é apenas, portanto, uma pessoa física, um adulto, por exemplo, que, pelas mesmas razões mencionadas antes em relação à nomeação do bebê, chamaremos de mãe, porquanto em nossas sociedades seja esta a categoria que designa a função de cuidar dos bebês e também toda uma ordem simbólica que a mãe introduz no seu ato de cuidar do bebê. Cabe aqui uma diferenciação entre a categoria de Outro e a ordem social e cultural. Essa ordem é eivada de valores, ideologias, princípios, significações, enfim, elementos que a constituem como tal, no plano antropológico. O Outro é o esqueleto material e simbólico dessa ordem, sua estrutura significante, [...] o que nos permite portanto dizer que a ordem do Outro, que a mãe encarna para o bebê, é uma ordem significante e não significativa. O que a mãe transmite é, primordialmente, uma estrutura significante e inconsciente para ela própria (ela não sabe o que transmite, para além do que ela pretende deliberadamente transmitir), e não poderia ser simplesmente o conjunto de valores culturais (entendendo-se sob este termo toda a complexidade de elementos significativos ordenados na família e na sociedade à qual pertencem mãe e bebê). Esta diferença entre uma ordem social significativa e valorativa e uma ordem significante implica também, como consequência, que esta segunda ordem seja furada, subtraída da dimensão que lhe daria consistência e completude. Por essa importantíssima razão, o que chega ao bebê através do Outro materno não é um conjunto de significados a serem por ele meramente incorporados como estímulos ou fatores sociais de determinação do sujeito com os quais interagiria, a partir de sua carga genética, na “aprendizagem social” de sua subjetividade. O que chega a ele é um conjunto de marcas materiais e simbólicas — significantes — introduzidas pelo Outro materno, que suscitarão, no corpo do bebê, um ato de resposta que se chama de sujeito. (p. 39-41)

Antes de prosseguir na dialética que se instala entre o bebê (que ainda não é um sujeito) e o Outro, é necessário destacar o papel do significante na linguagem. Diz-nos Lacan (1997 [1955-1956]): “O inconsciente é, no fundo dele, estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem. E não somente o significante desempenha ali um papel tão grande quanto o significado, mas ele desempenha ali o papel fundamental. O que com efeito caracteriza a linguagem é o sistema do significante como tal.” (p. 139). Lacan (IBID) ainda afirma, logo adiante, que a relação entre significante e significado está longe de ser biunívoca. O que, em termos práticos, quer dizer que não há uma colagem entre ambos, nem mesmo uma relação de correspondência. Vieira (2012) esclarece-nos melhor esse ponto, ao afirmar que a noção de significante de Lacan visava, sobretudo, ao elemento material da significação, que pode ou não ter sentido. Ou seja, tem vínculo com os conteúdos do saber, mas em sua materialidade não tem em si um sentido, sendo formado por blocos de massas fônicas. É um saber por ser letra, pois presta-se à leitura, mas não é em si nenhuma sabedoria. No entanto, tem o poder de inscrever na carne seu traço. Conforme a célebre metáfora de Lacan, evocada pelo autor (IBID), a linguagem é como o ferro que marca seu gado, fazendo referência aos rastros deixados pelos encontros com o Outro.

Retomemos a cena do bebê em desamparo, com necessidades marcadamente mamíferas de sobrevivência, e que é atendido por alguém que exerce a função materna, ao

mesmo tempo que encarna o campo do Outro para esse bebê. Nos encontros com esse Outro, os significantes inscrevem suas marcas, o que transforma esse momento de pura necessidade biológica em algo diferente. Segundo Lacan (1988 [1955-1956]): “Mas, no ser humano, as significações mais próximas da necessidade, as significações relativas a inserção mais animal no meio enquanto nutritivo e enquanto cativante, as significações primordiais, estão submetidas, em sua sequência e em sua própria instauração, às leis que são aquelas do significante.” (p. 225). Assim, a experienciação da satisfação das necessidades é desde o início mediada pela linguagem, o que produz uma laceração, uma desmontagem no humano do que seria o instinto para os animais. Elia (2007) aponta que não há no sujeito experiência instintiva, e sim a experiência do instinto fragmentado e remodelado pelo significante, ao qual denomina-se pulsão (Trieb), que para Freud (1996 [1914-1916]) é um “conceito situado na fronteira entre o mental e o somático.” (p. 127).

A linguagem provoca essa desmontagem no instinto, desnaturalizando a satisfação das necessidades e instituindo a pulsão. Entretanto, ela igualmente opera na representação dos objetos, que se inscrevem psiquicamente através da falta. Castro (2011) comenta a teoria hegeliana, da qual Lacan utiliza-se para formular a articulação do simbólico com os objetos:

Hegel (2003) precisa sua posição na Fenomenologia do Espírito: no capítulo VII, ele argumenta que a compreensão conceptual da realidade empírica funciona como um assassinato. Como explana Kojève (1979, p. 373, grifos do autor), “a palavra 'cão' não corre, não bebe e não come; nela o Sentido (a Essência) cessa de viver; isto é, ele morre”. A posição hegeliana é retomada por Lacan (1966, p. 627), para quem “o ser da linguagem é o não-ser dos objetos”. Quando utilizamos a linguagem, trocamos a coisa pela palavra: o símbolo passa a ocupar o lugar da coisa simbolizada. (CASTRO, 2011, p. 1411)

Se a palavra é capaz de evocar um objeto ausente, isso significa que a palavra opera com um vazio, o que implica o cancelamento, o assassinato da coisa: “Assim, o símbolo se manifesta inicialmente como assassinato da coisa, e essa morte constitui no sujeito a eternização de seu desejo.” (LACAN, 1998 [1966] p. 320). É necessário complementar esse ponto, para facilitar nossa compreensão. Quando se fala “cão”, por exemplo, a palavra remete a um cão no sentido ideal. Um cão que pode ser todos, ou qualquer um, que pode evocar um cão conhecido, ou ainda ser metáfora quando se diz “um dia de cão”. O símbolo “cão” abre inúmeras possibilidades, justamente por ser, em si, vazio. E por que o símbolo eterniza o desejo? Bem, só é possível desejar aquilo que está ausente. É a falta que institui o desejo. E mesmo o encontro com os objetos da realidade não reproduzirá o encontro com o objeto tal como foi registrado psiquicamente. Um bebê mamando pela primeira vez não pensa “isto é

leite”, porque essa representação se dá em um momento posterior, e depende de uma capacidade de simbolização que ainda está ausente. E é exatamente por esse motivo que o leite presente na realidade jamais será o leite experimentado pelo bebê. Aquele primeiro leite encontra o bebê, inscreve uma marca, e se ausenta. Elia (2007) complementa essa ideia, ao afirmar que quando o sujeito representa essa experiência, ele a perde como natural. O autor (IBID) relembra-nos que Freud era claríssimo ao postular que o psiquismo procurará reencontrar o objeto segundo as linhas em que ele foi registrado psiquicamente, denominando essa busca como desejo.

Sendo o desejo causado por um objeto faltoso (ou morto, desnaturalizado, inscrito como um vazio), pode-se dizer que “[...] o objeto na pulsão não tem nenhuma importância [...] A melhor fórmula nos parece ser esta - que a pulsão o contorna.” (LACAN, 1996 [1964], p. 160, grifo do autor). Castro (2011) explana melhor essa ideia lacaniana:

Em última instância, o propósito da pulsão não é um goal, atingir uma hipotética satisfação definitiva, mas um aim, obter satisfação circulando repetidamente no circuito fechado em torno do objeto. Ora, em termos lacanianos, a satisfação via repetição é o gozo. A pulsão evidencia, portanto, uma espécie de contaminação no homem da dimensão natural pelo excesso característico do simbólico, gerando uma natureza que opera num ritmo descontrolado - embora ainda subsista paralelamente no ser humano a capacidade "quase natural" [...] de autorregulação via princípio do prazer. (p. 1417)

Cabe aqui apontar uma precisão teórica realizada por Lacan sobre a natureza das pulsões. Ele acompanha a teoria das pulsões de vida e de morte elaboradas por Freud em Além do Princípio do Prazer (1996 [1920-1922]), ao estabelecer que “A distinção entre pulsão de vida e pulsão de morte é verdadeira na medida em que manifesta dois aspectos da pulsão.” (LACAN, 1996 [1964] p. 243). No entanto, como toda pulsão implica uma articulação com o significante, Lacan (1998 [1966]) postula:

A libido é a lamela que o ser do organismo desliza até seu verdadeiro limite, que vai mais longe que o do corpo. [...] O sujeito falante tem o privilégio de revelar o sentido mortífero desse órgão e, através disso, sua relação com a sexualidade. Isso porque o significante como tal, barrando por intenção primeira o sujeito, nele fez penetrar o sentido da morte. (A letra mata, mas só ficamos sabendo disso pela própria letra.) Por isso é que toda pulsão é virtualmente pulsão de morte. (p. 862- 863, grifo nosso)

Em relação ao gozo, contraparte da pulsão, Castro (2011) pontua que pelo fato desse situar-se no real, ao ser filtrado pela linguagem torna-se um gozo limitado. Um equivalente do

gozo pleno dentro da ordem humana seria o gozo do bebê fundido com a mãe, que por não ser representável, dissipa-se diante da emergência da linguagem.

Quando Lacan (1966, p. 821) diz que "o gozo é interdito a quem fala como tal", é a esse gozo primordial que ele se refere. Na medida em que a inserção na linguagem implica uma perda de gozo, pode-se considerá-la em si mesma como a castração inaugural, anterior à fase edipiana, uma castração inerente à própria linguagem. E, de fato, embora o simbólico e o gozo surjam no mesmo movimento e sejam manifestações da pulsão de morte, o simbólico desenvolve-se em contraposição ao gozo, seja no plano ontogenético (a partir do complexo de Édipo) seja no plano filogenético (a partir do assassinato do pai da horda descrito em Totem e Tabu). (CASTRO, 2011, p. 1422)

No trecho acima, já se anuncia uma equivalência entre o assassinato do pai da horda e o complexo de Édipo. A articulação de ambos será trabalhada adiante, mas por hora é necessário que fique bem demarcado que a entrada na linguagem não é um mero processo de construção das vias de comunicação, em um percurso suave no qual o sujeito vai encontrando e incorporando os elementos culturais que estruturam a sociedade. Pelo contrário, o encontro com a linguagem é feito de golpes que deformam o que seria o estado natural e biológico, transformando o instintivo em pulsão, que não cessa de bordejar seus objetos (inscritos como falta), impondo assim um limite ao gozo. A linguagem ainda suscita no bebê um ato de resposta na forma de sujeito, constituído com um vazio deixado por tudo o que o significante subtraiu de sua completude.

Nesse sentido, é preciso lembrar que a criança assujeitada aos significantes do Outro materno precisa encontrar uma escavação nessa alienação ao Outro, e tal processo carrega em si uma cota de violência, conforme elabora Jerusalinsky (1996):

No fundamento de nossa condição de sujeitos há uma articulação que obtém sua consistência de uma relação violenta. A relação ao olhar do Outro primordial se inscreve inevitavelmente numa dimensão paranoica, na medida em que desse olhar o sujeito depende, de modo radical, para a conservação de sua existência. Ocorre que no momento mesmo em que aquele que encarna esse Outro para o pequeno filhote da espécie humana marca com seu olhar uma diferença, no contínuo do real, este recorte que no corpo o filhote suporta entra pela via da pulsão num circuito de demanda do Outro, em que o ser que neste ato se constitui se vê diante do imperativo de ter que oferecer essa fatia ao gozo do Outro. Tal é a posição em que o olhar amoroso desse Outro primordial se constitui, levando então o pequeno sujeito a entrar no circuito da pulsão pela via da suposta agressividade na alterização. Supor o Outro em tal posição de agressão leva o filhote a sua "agressivização" primária, na qual este procura provocar no Outro ou encontrar no Outro, a escavação que, inicialmente, suporta passivamente. A dimensão de saber acerca do que ali entra no registro da falta, pertencendo ou estando atribuída completamente ao agente desse olhar, coloca o sujeito na dimensão paranoica de estar submetido a uma demanda, cujo alcance ainda não deixa transparecer sua dimensão simbólica. (JERUSALINSKY, 1996, p. 7-8)

Há vários elementos significativos nesse momento de “agressivização” do filhote humano. Primeiro, a dependência do olhar do Outro. Esse olhar, ao mesmo tempo em que instaura uma dimensão paranoica (que, conforme veremos, irá marcar as relações do sujeito com os outros), demarca um recorte no corpo do filhote no contínuo do real, que precisa ser “recoberto” pelo corpo imaginário, a ser constituído no estádio do espelho. Nesse sentido, Ferrari (2006) lembra-nos que Lacan situa a agressividade na especularidade imaginária, elaborada durante esse estádio.

Conforme Joël Dor (1989), no estádio do espelho esboça-se para a criança um certo tipo de identificação, tendo por pano de fundo uma relação de alienação específica com a mãe. Durante essa identificação fundamental, a criança faz a conquista da imagem de seu próprio corpo, sendo que a identificação primordial da criança com essa imagem irá promover a estruturação do “Eu”. Esse processo passa por etapas, partindo de uma confusão primeira entre si e o outro (os semelhantes), que se atesta na criança pelo transitivismo normal (por exemplo, a criança que bate diz que bateram nela, a que vê cair, chora), e que por fim culmina na identificação da criança com a própria imagem numa totalidade unificada. Dessa forma:

[...] esta conquista da identidade é sustentada, em toda a sua extensão, pela dimensão imaginária, e no próprio fato da criança identificar-se a partir de algo virtual (a imagem ótica) que não é ela enquanto tal, mas onde ela entretanto se re- conhece. Não se trata, pois, de nada mais do que um reconhecimento imaginário [...]. O estádio do espelho é uma experiência que se organiza, com efeito, antes do advento do esquema corporal. Por outro lado, se a fase do espelho simboliza a “pré- formação” do “Eu” (“Je”), ela pressupõe em seu princípio constitutivo seu destino de alienação no imaginário. O re-conhecimento de si a partir da imagem do espelho efetua-se - por razões óticas - a partir de índices exteriores e simetricamente invertidos. Ao mesmo tempo, é, portanto, a unidade do corpo que se esboça como exterior a si e invertida. A própria dimensão deste re-conhecimento prefigura, para o sujeito que advém, na conquista de sua identidade, o caráter de sua alienação imaginária, de onde delineia-se o “desconhecimento crônico” que não cessará de alimentar em relação a si mesmo. (IBID, p. 80, grifo do autor)

Se o sujeito parte de uma “confusão primeira entre si e o outro” para constituir um reconhecimento imaginário que sustenta sua identidade, e esse “re-conhecimento” é dado a partir de índices exteriores e simetricamente invertidos, não é difícil perceber o quanto a sustentação da própria imagem, (bem como de seu próprio “Eu”), depende do que do outro lhe retorna, justificando assim a dimensão paranoica das relações. Ferrari (2006) pontua que, segundo Lacan, não há identificação sem agressividade, tampouco agressividade sem identificação: “Tal identificação supõe um desgarramento original do sujeito, deixando na

subjetividade a paranoia original, ou seja, a marca da relação agressiva com o outro. Assim, a relação com o outro é fundamentalmente agressiva, ainda que sublimada.” (IBID, p.56).

Ana Costa (1996) corrobora e amplia as implicações da articulação da agressividade com a identificação:

Lacan lembrou-nos disso fazendo, na sua língua, uma equivalência entre o tu - segunda pessoa do singular - e o matar (tue em francês). A agressividade, aqui, não tem o mesmo estatuto da violência. Ou seja, há algo no mecanismo de identificação que lida com uma espécie de necessidade de, ao mesmo tempo, manter e anular o outro. Tentando dizer de uma forma mais simples: ao tomar-se um traço do outro para a sustentação do eu produzem-se dois movimentos igualmente fundamentais. Primeiro, a necessidade de sustentação do outro como o espelho (ou identidade) que mantém o eu. Segundo, a necessidade de domínio, de apropriação do traço por onde se organiza a unidade e, nesse sentido, a tentativa de anulação do outro. (p. 16)

Tal elaboração sobre a identificação, que traz as marcas da agressividade, e que supõe um duplo movimento (de manter e anular) em relação ao outro, não nos é estranha. Já nos deparamos com ela no primeiro capítulo deste trabalho, quando Freud sustenta o caráter ambivalente das relações afetivas, sobretudo com aquelas que são as mais caras ao sujeito. E se a ambivalência afetiva pode, no pensamento freudiano, ser “cindida” em duas manifestações, nas quais os afetos amorosos e cordiais são conscientes, e a hostilidade mantém-se inconsciente pelo recalque, algo similar ocorre na teoria lacaniana. De acordo com Ferrari (2006):

Com referência à agressividade, tanto Freud quanto Lacan situam-na como constitutiva do eu, na base da constituição do eu e na sua relação com seus objetos. Não negam sua existência, ao contrário, afirmam a agressividade na ordem humana, ordem libidinal. Existe a agressividade, mas ela pode ser sublimada, pode ser recalcada, não precisa ser atuada, pois o humano conta com o recurso da palavra, da mediação simbólica. (p. 51-52)

Percebe-se o quanto Lacan era um leitor atento de Freud, embora tenha ido além em sua teoria. Para Freud, o inconsciente é marcado pela libido, que num momento posterior é articulada com as teorias de pulsão de vida e de morte. E em relação ao recalque, ele o coloca a cargo do superego (formado pela identificação e incorporação em si da representação de uma figura de autoridade e amor). O passo além que marca a teoria lacaniana situa-se especialmente no seu enunciado sobre o inconsciente ser estruturado como linguagem, o que outorga ao registro simbólico o papel de pacificador. Ou seja, ao real (das pulsões, do indizível) e ao imaginário (das identificações) soma-se o simbólico como mediador.

É possível, com os elementos já trabalhados, situar a agressividade na constituição do eu, e na relação com o outro. No entanto, antes de prosseguir, cabe recortar uma advertência de Lacan sobre a agressividade, ao mesmo tempo em que ele nos esboça algo sobre a violência:

[...] muitas vezes assinalei o quanto nosso emprego do termo agressividade continuava marcado pela ambiguidade. A agressividade provocada na relação

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