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Através do espelho

O fantasma do espelho puxa para fora minha carne, e ao mesmo tempo todo o invisível do meu corpo pode investir os outros corpos que vejo. Doravante meu corpo pode investir os outros corpos que vejo. Doravante meu corpo pode comportar segmentos tomados do corpo dos outros assim como minha substância passa para eles, o homem é espelho para o homem. Quanto ao espelho, ele é o instrumento de uma universal magia que transforma as coisas em espetáculos, os espetáculos em coisas, eu em outrem e outrem em mim.

O olho e o espírito Maurice Merleau-Ponty

Desejo abjeto

A matéria-prima que escolhi trabalhar carrega consigo um grande valor simbólico, subjetivo para aquele que doa, tátil para aquele que veste. Cabelos são capazes de estabelecer trocas simbólicas em um âmbito muito além do esperado ou calculado. Cabelos nunca me faltam, eles sempre chegam, muito mais depressa que minhas mãos são capazes de tecer. Chegam de todas as partes, cortados, doados, embrulhados para presente, repletos de recomendações e histórias. Ganho cabelos no Natal e no meu aniversário, as pessoas sempre lembram de mim por causa dos cabelos, sempre existe, em algum lugar, uma mecha guardada que espera sua vez no tear. As histórias, as mais diversas. A trança que amarra com fita vermelha os cachos louros da criança, guardada por mais de trinta anos, chegou às minhas mãos em um ato de alívio da antiga dona, da filha que teve os cabelos cortados e guardados pela mãe, dela escutei o relato: “não gostaria de deixar este fardo para minha filha”. Guardar cabelos para alguns é um fardo, uma relíquia nefasta que não se pode abandonar no lixo, é preciso guardar e superar o asco. Os cabelos recém-cortados, longos, emaranhados e embrulhados para presente, chegaram até minhas mãos no dia de Natal em um ato de solidariedade e sacrifício pelo desejo de vida. Um jovem de vinte e poucos anos estava com câncer de estômago, e a quimioterapia fazia-lhe cair o cabelo. Para apoiá-lo, cinco de seus amigos, dentre eles dois primos meus, rasparam a cabeça. Os cabelos dos cinco rapazes chegaram a mim dessa forma, embrulhados com um laço de fita, na vontade de manter vivo o amigo desenganado. Um rito simbólico que carrega a vontade de vida na matéria morta. Algumas vezes me encho de dedos para interferir em cabelos assim, tão carregados de desejos simbólicos. Sinto-me assumindo uma

responsabilidade enorme, maior que eu, meu trabalho e minha pesquisa. Quando me dou conta de que a proposição artística parece realmente cumprir o papel simbólico para o qual ela se propõe, percebo a dimensão das trocas simbólicas que passam a ser estabelecidas a partir de um simples pedido artístico meu. Muito além da instituição museológica ou acadêmica, a arte realmente começa a transitar poeticamente na sociedade, partilhando desejos e corpos sensíveis. Compreendo então que um pedido artístico nunca é simples, por mais ingênuo que soe, é sempre uma atitude política e simbólica.

Não só de cabelos se faz minhas coleção corporal. Chegam dentes cariados, potes de unhas, sêmen do casal de namorados que preenche junto o mesmo frasco, lipoma (mioma de gordura) extraído em cirurgia e cuidadosamente guardado pela dona. Toda matéria que chega até minhas mãos passa por algum tipo de ritual, como um processo de agregação simbólica à coleção, que se organiza em altares de vidro cada vez maiores. Coleciono, entre ganhos e compras, belos frascos de vidro, que permanecem vazios até que surja a matéria corporal adequada ao seu preenchimento. Trocar a relíquia de relicário, abandonar os frascos plásticos hospitalares para ganhar a graça dos frascos de perfume ou de vidros de farmácia antigos, adicionar formol, lacrar, eternizar o corpo morto no ritual simbólico. Rito pelo rito, sem mito, bruxaria sem feitiço, valor simbólico agregado e transformado na re-combinação dos corpos doados. A matéria morta capaz de trazer vida ao espaço dos rituais, onde corpos vestem corpos entre outros corpos, todos docemente tornados vivos, do estado de mumificação, através do ato deliberado de se sentir carnalmente. Ato erótico que estabelece a tão desejada troca simbólica entre Eros e Thanatos. Aos poucos meus convites vão sendo aceitos, surgem então as demandas poéticas e inicia-se assim o processo de construção coletiva. Não posso mais me referir ao trabalho como meu, há tempos ele já não me

pertence mais, agora sou apenas ato. Sou o convite para a explosão de um desejo eminente em sujeitos cansados de seu determinismo biológico, cultural e social. Sujeitos que, construídos sobre corpos desejosos de sentir na carne a vertigem da morte, se dissolvem na impossibilidade da continuidade do ser.

Nem sujeito nem objeto

Abjeção dos corpos materializados pelas vias tortuosas da perda corporal, caída na construção do sujeito e da linguagem. Abjeção pelo resto, detrito asqueroso, resíduo morto, desperdício na ausência de vida pelo excesso de matéria humana, memória embriagada de sentidos, tato, cheiro, sabor. Abjeção pelo grotesco no corpo monstruosamente constituído pelo seu dentro, o interior repugnante de um sujeito racionalmente asséptico. Abjeção que não deixa nunca de ser erótica, corpo sedutoramente ornamentado pelos seus próprios detritos, estetização de uma vestimenta que interfere no comportamental de quem a porta, muito além do simples vestir-se controlado e paramentado pela moda, um vestir-se que carrega consigo a solenidade inerente ao ritual. Abjeção manifestada pelo rito erótico da sujeira, rito que promove a limpeza sacralizante da sujeira, construção simbólica materializada por uma linguagem artística. Abjeção estetizada a partir do erotismo, provação da vida até a morte pela compreensão da necessidade de se jogar com a matéria, depositária tanto de vida como de morte, forma única de lidar com a eminência de morte que implica no simples fato de se estar vivo. O destino certo do cadáver se assemelha ao princípio determinante do nascimento, a mistura com a matéria corporal abjeta, vísceras, sangue excrementos, tecidos mortos, carne em transição. A perda corporal fundamental do ser, consciência corporal recalcada na falta da materialidade interna do corpo, sujeito fisicamente constituído pelo recalque da sujeira. Posicionar o trabalho perante o sujeito culturalmente constituído, o meu e o teu... Organizar a perda corporal segundo uma formalidade estética, pensada além do visual, através do corpo, em todos os seus sentidos físicos e inconscientes. Indagar ao outro sobre a possibilidade do deslocamento da consciência corporal, desestabilizar no contato erótico com o abjeto,

o desejo que suscita a abjeção é o princípio do desejo erótico que proponho. Toque de uma fazenda estranhamente familiar, trama de uma matéria mortalmente viva.

CAPÍTULO 3