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I. Diferentes Perspetivas na Surdez: Doença, Deficiência ou Diferença

1.1 Surdez como Doença

Para o médico otorrinolaringologista a surdez é, basicamente, o resultado de uma patologia orgânica do aparelho auditivo, podendo ser a manifestação de uma doença em evolução, com possibilidade ou necessidade de tratamento médico ou cirúrgico.

A surdez é, então, um sintoma que geralmente faz parte de um leque variado de síndromas. A sua etiologia e diagnóstico dependem de uma enorme variabilidade de fatores como a hereditariedade, produtos ototóxicos, que originam alterações congénitas e os que, por aquisição, lesam o órgão de audição, total ou parcialmente, uni ou bilateralmente.

Para melhor podermos compreender o que é a surdez deve ter-se presente o conceito de audição. A audição começa desde logo no período fetal por volta do quinto/sexto mês de gestação34, percecionando aqui o feto alguns sons, como o bater do coração e o tubo digestivo maternais. Também a voz da mãe em baixas frequências é já percetível nesta fase. Ao sétimo mês do desenvolvimento uterino, o feto responde com movimentos ativos, a estímulos sonoros externos suficientemente intensos para cobrir os ruídos inerentes as atividades cardio-vasculares e digestivas da mãe35. Logo após o nascimento, a criança começa a ouvir a sua própria voz, nos dias seguintes já é sensível a todo o fenómeno sonoro e é também capaz de localizar a fonte sonora36. São inúmeros os estudos que nos demonstram modificações da atividade motora, do choro, do ritmo cardíaco e respiratório de recém-nascidos, quando expostos a estimulação sonora37.

À terceira semana de gestação inicia-se a formação do ouvido e as suas estruturas adquirem desde muito cedo uma dimensão quase adulta. No entanto, este desenvolvimento estende-se para além do nascimento, sendo que um dos compartimentos do ouvido (ouvido médio) é o último local do corpo humano onde o mesênquima permanece como tecido individualizado38.

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BISWAS,   Ashok,   GOSWAMI,   S.C.,   BARUAH,   Dilip,   TRIPATHY,   Rajesh   (2012)   “The   Potencial   Risk   Factors   and   the   Identification of Hearing  Loss  in  Infants”  in Indian J Otolaryngol Head Neck Surg, 64 (3), p.214.

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UMONT, A. (1995), no seu livro L´Orthophoniste et L´Enfant Sourd esquematiza as perceções auditivas do feto. Cf. DUMONT (1995), L´Orthophoniste et L´Enfant Sourd, 2ª ed. Paris: Masson, p. 61.

36 Existem fortes indícios de que o aparelho auditivo recebe informações do exterior logo após o nascimento. Se durante a mamada se produzir um ruído, a sucção cessa temporariamente, o que revela um certo grau de sensibilidade.

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Vid., na matéria, REIS, Nuno, onde descreve a memorização de sons maternos como o ruído dos batimentos cardíacos e sons intra-amnióticos.  Cf.  REIS,  Nuno  (2003),  “A  Vida  Fetal”  in Psicologia do Feto e do Bebé (coord.: Eduardo Sá), 3ª ed., S.L.: Fim de Século, pp. 73-76.

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RUAH, Carlos  (1998a),  “Embriologia  do  Ouvido”,  in Manual de Otorrinolaringologia, (coord.: Samuel Ruah, Carlos Ruah) vol.II, Lisboa: Roche, p. 21.

Podemos então, de uma forma simplificada, definir audição como a interpretação do som ao nível do Sistema Nervoso Central. O som consiste numa forma de energia física, numa vibração mecânica com capacidade de propagação em meio gasoso, líquido ou sólido. O processo da audição inicia-se quando um estímulo acústico é percecionado pelo ouvido externo e é transmitido através do ouvido médio até ao ouvido interno, ou cóclea. As mensagens acústicas recolhidas pela cóclea são integradas pelo sistema nervoso, comparadas e reconhecidas como elementos significativos. O som é então ouvido, depois de realizar um processo complexo até ser percecionado pelo centro auditivo, na parte anterior do cérebro, ou seja, no lóbulo temporal39.

É necessária uma maior compreensão da estrutura e da função dos vários compartimentos do ouvido para melhor podermos entender os diferentes tipos de hipoacusia (Fig.1).

Fig.1 – Estrutura do ouvido humano

O ouvido inclui três compartimentos que interagem com diferentes funcionalidades: o ouvido externo, o ouvido médio e o ouvido interno. É constituído por várias estruturas sensíveis que detetam as vibrações sonoras e as transformam em impulsos nervosos que são transmitidos através do nervo auditivo ao centro auditivo no córtex cerebral.

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MAY,   Bradford,   NIPARKO,   John   (2009),   “Auditory   Physiology   and   Perception”   in Cochlear Implants Principles &

O ouvido externo que compreende dois segmentos, o pavilhão auricular40 (orelha) e o canal auditivo externo41 (CAE) tem uma função dupla. Para além de proteger o ouvidomédio é através do pavilhão auricular que se torna possível distinguir a direção pela qual provem o som, visto que o pavilhão tem a capacidade de amortecer e amplificar determinados componentes do som, em função da localização da origem sonora. Pelo canal auditivo externo penetra o som que é transmitido como onda sonora42, proveniente do ambiente e captado pelo pavilhão auricular. Estas ondas sonoras são dirigidas para uma membrana tensa, que é posta a vibrar. Esta membrana designa-se por membrana timpânica (separa o CAE do ouvido médio) e transmite as vibrações através de uma cavidade cheia de ar, a uma outra membrana, a janela oval (que separa o ouvido médio do ouvido interno). O ouvido médio transmite as vibrações do tímpano ao ouvido interno através de um mecanismo, a cadeia ossicular43. As vibrações da membrana fazem mover o primeiro ossículo, este faz mover o segundo que, por sua vez faz mover o terceiro, completando a cadeia ao transmitir o padrão vibratório à janela oval, à qual se encontra ligado44.

Esta cadeia tem um papel fundamental na amplificação da pressão sonora que, vinda do exterior, atinge o tímpano e origina a vibração desta cadeia, constituindo-se como um sistema de transmissão e amplificação da energia sonora. A amplificação da energia sonora deve-se por um lado, ao facto de esta se concentrar numa área (pequena superfície da platina do estribo) com dimensões inferiores às da membrana timpânica. Por outro lado, esta cadeia estabelece um sistema de alavanca que implica um aumento na energia sonora. Os ossículos estão ligados aos ossos circundantes por dois pequenos

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O pavilhão auricular é constituído por revestimento cutâneo, por fibrocartilagem, ligamentos, músculos e possui ainda vasos e nervos próprios. Vid., na matéria, ROUVIÉRE H., DELMAS A. (1997), Anatomie Humaine, 14ª ed., Vol. I, Paris: Masson, pp. 386-389.

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O CAE possui glândulas sebáceas e glândulas produtoras de cerume. O cerume protege o ouvido contra bactérias e fungos, impedindo a penetração destes nos folículos pilosos e glândulas. Impede ainda a maceração da pele.Cf. RUAH, Carlos (1998b),“Otite Média”, in Manual de Otorrinolaringologia (coord.: Samuel Ruah , Carlos Ruah)vol. III, Lisboa: Roche, p.72.

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As ondas sonoras consistem em variações de pressão no meio gasoso. As diferenças de pressão entre pontos diferentes traduzem-se numa onda de pressão sonora que produz um deslocamento sucessivo da matéria. Temos como exemplo, uma pedra que cai de uma falésia, origina uma movimentação das partículas de ar adjacentes ao movimento, que por sua vez empurram partículas de ar que lhe estão, por seu turno adjacentes, voltando depois à posição original. Cada partícula desloca-se muito pouco antes de voltar à posição original, no entanto, é suficiente para transmitir uma série de sucessivas variações na pressão no meio gasoso. Assim, quando uma onda sonora é percecionada pelos nossos ouvidos inicia-se uma série de alterações na pressão que ativam os recetores auditivos através de uma transmissão mecânica. Vid. GLEITMAN, Henry (1986), Psicologia, (trad. do inglês de 1981 por Danilo Silva), 3.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p.191. 43

A cadeia ossicular é constituída pelo martelo, bigorna e estribo, encontrando-se ligada pelo cabo do martelo à membrana timpânica e pelo estribo à janela oval. Cf. SCHULLER, David e SCHLEUNING, Alexander (1994), Deweese and

Saunders Otolaryngology – Head and Neck Surgery, St.Louis: Mosby, pp. 358-359.

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Cf. SCHULLER, David, SCHLEUNING, Alexander (1994), Deweese and Saunders Otolaryngology – Head and Neck Surgery, St.Louis: Mosby, pp. 358-359.

músculos45 (tensor do tímpano e o estapédico) que têm uma dupla função: por um lado, a manutenção dos ossículos em posição adequada; por outro, quando existem sons com uma intensidade muito elevada, reagem contraindo-se (reflexo de enfraquecimento), limitando a ação amplificadora dos ossículos e protegendo deste modo o ouvido interno46.

O ouvido médio encontra-se geralmente cheio de gás, que entra nesta cavidade através da trompa de Eustáquio, a qual se abre nos movimentos faríngeos que criam diferenças de pressão atmosférica entre a nasofaringe e a caixa do tímpano. A trompa de Eustáquio tem como finalidade proteger a entrada de secreções para o ouvido médio, removê-las e ventilar o ouvido médio. A alteração destas funções provoca uma obstrução ou um aumento de calibre. A obstrução poderá ser de origem mecânica ou funcional. A obstrução mecânica pode ser de origem intrínseca, como a originada por edema do lúmen da trompa por alergia ou infeção, ou de origem extrínseca, como por exemplo, pela hipertrofia das adenoides ou a obstrução nasal.A obstrução funcional resulta da imaturidade anatómica das trompas das crianças. Nas crianças mais novas, o comprimento da trompa é menor e menor é também a sua cartilagem. A posição do músculo tensor do palato, devido ao seu posicionamento mais horizontal, torna-o menos eficiente para abrir a trompa47. Assim, quanto mais nova é a criança mais vulnerável estará à obstrução da trompa. A obstrução da trompa de Eustáquio originada por um edema ou inflamação é o fator principal do desenvolvimento de otite média48.

Todas as alterações do funcionamento auditivo que possam surgir no ouvido médio, como consequência das diferentes patologias, colocam em causa a transmissão normal do impulso mecânico provocado pelo som, sendo por isso causa de uma perda auditiva de transmissão ou de condução, que abordaremos mais adiante. Não será assim possível que o ouvido interno, mesmo que funcione normalmente, receba de uma forma adequada os impulsos sonoros provenientes do ambiente49.

O ouvido interno ou labirinto é a primeira parte do aparelho auditivo a formar-se no embrião, iniciando o seu processo de desenvolvimento na terceira semana de