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SURREALISMO AVANT LA LETTRE

No documento Para um cinema da crueldade em Antonin Artaud (páginas 101-127)

A Revolução Surrealista – o início

Foi a partir da leitura das correspondências trocadas entre Jacques Rivière e Artaud, publicadas em setembro de 1924 na NRF, que André Breton toma conhecimento deste último e o convida para colaborar com o movimento surrealista. Sua reação inicial é de recusa ou estranhamento. Em carta enviada a Mme. Toulouse, em outubro do mesmo ano, Artaud afirma ter sido desde sempre mais surrealista que os próprios surrealistas, exprimindo suas reticências e reivindicando sua singularidade de vida e autonomia de pensamento: ―Sempre fui, e sei o que é o surrealismo. É um sistema do mundo e do pensamento que eu tenho feito desde sempre. Em ato‖ (OC, vol. I**, p. 112, 1976)65. Mas pouco depois aceita o desafio e torna-se um dos membros mais ativos da constelação até a sua expulsão do grupo, em 1926.

Em janeiro de 1925, na mesma época em que participava de um dos filmes mais importantes de sua carreira, Napoleão, interpretando o médico, filósofo e jornalista Jean-Paul Marat, em uma das atuações mais marcantes de sua vida, é eleito por unanimidade e plenos poderes como diretor do birô de estudos surrealistas. Investido de controle absoluto sobre a publicação do terceiro número da revista Revolução Surrealista, escreve praticamente todos os textos da 3ª edição do dia 15 de abril, intitulada O fim da era cristã.

Sua ocupação à frente da revista não dura muito. Como observa Thomas Maeder (1978), Breton confisca o lugar de Artaud com o argumento de que ele havia levado sua experiência longe demais, aliás, como era comum acontecer em todos os terrenos nos quais se aventurava e pudesse liberar suas inspirações, sempre no intuito de chegar ao limite. Para Artaud, o surrealismo era acima de tudo uma tentativa de guerra social e espiritual contra os valores da sociedade ocidental, uma revolta moral, mais que um movimento literário, contra todo tipo de coerção social que impede o indivíduo de liberar suas forças ocultas de revolta. Daí a publicação de textos cheios de furor, como suas cartas endereçadas ao Papa e aos reitores das universidades europeias, o que para Breton tratavam-se apenas de insultos gratuitos.

65Jeàsuisà eau oupàt opàsu alisteàpou à ela.àJeàl aiàd ailleu sàtoujou sà t ,àetàjeàsais,à oi,à eà ueà estàleà su alis e.àC estàleàs st eàduà o deàetàdeàlaàpe s eà ueàjeà eàsuisàfaitàdepuisàtoujou s.àDont acte.

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Em novembro de 1926 é desligado definitivamente do movimento, principalmente por posicionar-se contra a decisão do grupo de aderir ao marxismo do Partido Comunista Francês. Uma atitude contra o dogmatismo da política em nome de uma arte cuja principal característica é sua independência em relação aos dogmas, sejam eles quais forem. O anúncio de sua expulsão é feito por meio de uma brochura intitulada Au grand jour66, na qual é denunciado como débil mental, autoritário e inconsequente, cujos interesses pessoais e experiências vazias afastam-no do conjunto do movimento.

Artaud responde às ofensas em junho de 1927, em um texto chamado A la grand nuit ou le bluff surréaliste67 (OC, vol. I**, 1976). Breton não deixava de ter razão, pelo menos em parte. Artaud também. Eram de fato duas concepções diferentes de revolução. Artaud não concebia que o surrealismo pudesse se ocupar da realidade, seja por meio das questões do Oriente, judaica, do aborto, das drogas, da política ou da economia, pois tudo isso o afastava das finalidades interiores, superiores, da alma, do espírito, da imaginação, da boa utilização do sonho, tidas por ele como a base do surrealismo, no sentido de criar uma nova maneira de conduzir o pensamento e as transformações sociais. O mais importante, para ele, seria sair do quadro das aparências para atingir a essência do ser.

O surrealismo não foi jamais para mim senão um novo tipo de magia. A imaginação, o sonho, toda essa intensa liberação do inconsciente que tem por trazer à superfície da alma aquilo que ela tem por hábito manter escondido precisa necessariamente introduzir profundas transformações na escala das aparências, no valor da significação e no simbolismo da criação68 (OC, vol. I**, P. 63, 1976).

Trata-se, portanto, de uma revolução de essência espiritual, levada a efeito em um nível diferente da realidade, em uma não-realidade, uma sobre-realidade, uma outra realidade. E como seria isso? Zizek (2010), em sua leitura de Lacan, pode ajudar a iluminar este ponto. Por que uma outra realidade? Porque se a realidade, da forma como a experimentamos, é estruturada pela fantasia, sendo esta aquilo que nos protege do ―real cru‖, então a própria realidade serve de anteparo ao encontro mesmo com o real: ―na oposição entre sonho e realidade, a fantasia está do lado da realidade‖. Ou seja, se a

66 No grande dia.

67 Na grande noite ou o Blefe surrealista.

68Leàsu alis eà aàja aisà t àpou à oià u u eà ou elleàso teàdeà agie.àL i agi atio ,àleà e,àtouteà etteài te seàli atio àdeàl i o s ie tà uiàaàpou à utàdeàfai eàaffleu e à àlaàsu fa eàdeàl eà eà u elleà aàl ha itudeàdeàte i à a h àdoità essai e e tài t odui eàdeàp ofo desàt a sfo atio sàda sàl helleà des apparences, dans la valeur de signification et le symbolisme du crée.

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realidade, envolvida no simbólico, nos protege do real traumático, é no sonho que nos defrontamos abertamente com ele. Em suas palavras, ―não é que os sonhos sejam para aqueles que não conseguem suportar a realidade, a própria realidade é para aqueles que não conseguem suportar (o real que se anuncia) em seus sonhos‖ (p. 73).

O importante, portanto, é criar uma nova realidade, fazer emergir um mundo inédito por meio da arte, do teatro e do cinema. O sonho, para Artaud, não pode ser apenas um decalque da realidade. As imagens no cinema serão lançadas como um sonho, mas apenas no sentido em que sua violência necessária permita liberar a liberdade mágica do sonho, no que tem de terror e crueldade.

Para uma Metafísica pouco ortodoxa

O termo ―metafísica da Carne‖, desenvolvido inicialmente nos Textos surrealistas, mostra como Artaud inventa uma metafísica pouco ortodoxa que traz em si sua própria contradição. Se por um lado ele busca ―caminhos ocultos‖ aonde se esconderia uma verdade exotérica suscetível de ser revelada pelas ciências ditas ocultas, por outro há essa investigação da carne como uma rede de intensidades e vibrações nervosas na qual se produzem os primeiros signos do pensamento, uma semiótica do corpo, uma impulsividade da matéria que se constitui como experiência na produção de sentidos, uma técnica espiritual como estratégia de conhecimento (Dumoulié, 1996).

Artaud não pode ser considerado, portanto, como um irracionalista tout court, ou vice-versa, mas é investido daquilo que Edgar Morin (MORIN; RAMADAN, 2014) chama de razão complexa, a qual compreende também as contradições insolúveis. Em suma, ele aproxima-se de Morin quando este realiza sua distinção entre razão aberta e fechada. Esta última se recusa a ser fecundada por elementos vindos do exterior de um sistema de pensamento, sendo incapaz de se recriar, se renovar, se reabastecer de novos elementos, fechando-se em suas certezas e dogmas, mesmo que ao preço de sua própria morte por inanição.

A razão aberta é, por consequência, antidogmática, no sentido em que admite em seu sistema de conhecimento a emergência de novas informações que forçam uma teoria a se reformar, se abrir e se transformar. A razão fechada não pode compreender aquilo que excede sua própria capacidade de conhecer, fazendo com que a racionalidade caia em um racionalismo (que elimina o princípio de contradição) ou uma racionalização

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(partindo de um pequeno fenômeno a fim de tirar daí uma verdade geral, uma razão delirante).

Ambos os autores não separam a obra da vida. Há sempre uma interfecundação prolífica fazendo-os traçar novas estratégias e linhas de fuga69. No limite, para Artaud, trata-se de criar uma outra racionalidade, distante da razão instrumental ocidental, causadora de catástrofes e um constante mal-estar na civilização. É nesse sentido que ele adere ao surrealismo, numa tentativa de destruição sobre destruição de verdades acabadas e valores morais, estéticos ou racionais que produziram um homem condicionado e unidimensional, para quem a verdadeira vida escapa por entre os dedos como a água que corre entre as mãos.

A metafísica artaudiana configura, portanto, uma ideia ligada à vida, mesmo que a própria noção de vida em Artaud contenha também suas ambiguidades, pois é ela mesma una e dupla. A questão do duplo, como veremos mais à frente, percorre todo o seu pensamento, do começo ao fim de sua jornada. Por um lado, a vida pode ser considerada um impulso para a existência espiritual, a palavra ―espírito‖ evocando concentração e unidade do eu, mas sem referência à razão, como os instantes privilegiados de iluminação e criação poética. Por outro, ela é também a relação entre consciência e inconsciência, àquilo que pode ser calcado na razão, mas que busca a todo o tempo ultrapassá-la. Pois no limbo da consciência há um mundo obscuro e subterrâneo repleto de riqueza energética cujo trabalho é saber como e quando liberá-la. Essa é a questão colocada, por exemplo, na distinção feita por Artaud entre um teatro Ocidental de tendências psicológicas e um teatro Oriental de tendências metafísicas, cujo melhor exemplo encontra-se em seu texto A encenação e a metafísica, em seu livro O teatro e seu duplo. Nele, como explica o autor, o teatro Oriental é pleno de

todo esse acúmulo compacto de gestos, de signos, de atitudes, de sonoridades que constitui a linguagem da realização e da cena, essa linguagem que desenvolve todas as suas consequências físicas e poéticas sobre todos os planos da consciência e em todos os sentidos, forçando necessariamente o pensamento a tomar atitudes profundas que são aquilo que podemos chamar de metafísica em atividade. (OC, IV, p. 43, 1978).70

69 Como explica Morin (2010), a palavra Método, nome de sua obra mais importante, significa trajetória no sentido grego original.

70Toutà etàa asà o pa tàdeàgestes,àdeàsig es,àd attitudes,àdeàso o it s,à uià o stitueàleàla gageàdeàlaà réalisation et de la scène, ce langage qui développe toutes ces conséquences physiques et poétiques sur

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A palavra carne é, portanto, relacionada à vida: ―Nada me toca ou me interessa se não for direcionado à minha carne‖71 (OC, vol. I*, p. 116, 1984), diz Artaud em

Fragmentos de um diário do inferno. Artaud utiliza o vocábulo para designar a vida tomada como élan vital e, como tal, vislumbrando a possibilidade de uma existência espiritual. As possibilidades do espírito fechadas na carne dão ao poeta a potência de explorar as riquezas de certa vitalidade que borbulham nas profundezas impessoais do eu (GOUHIER, 1974). Fazer renascer as potencialidades adormecidas do espírito é fazê-las reviver no aprimoramento da vida em uma estética da crueldade. E não é preciso recorrer a categorias topológicas de alto e baixo, de hierarquia, um espírito superior à carne ou vice-versa. Trata-se de retroalimentação horizontal, ou mesmo de uma zona de indiscernibilidade.

A metafísica artaudiana começa a ser desenvolvida em seus primeiros escritos, para depois ser retomada em suas reflexões sobre o teatro que, por sua vez, realimentam a discussão da metafísica em um modelo mais aberto, em um novo contexto, acrescentando as ideias de criação, caos, força mágica, mito, rito, retomada de antigas cosmogonias e do retorno às origens. Mas, como observa Gouhier (1974, p. 31),

No pensamento de Artaud, o original é, de um lado, a via cósmica que é sempre lá, ser do meu ser, constituindo a natureza, natureza hoje escondida pela cultura. Mas original é também o homem das primeiras eras presumivelmente próximo da natureza, anterior ao reino da razão, não desnaturado pela cultura ocidental.72

A questão das origens não pode, em todo caso, ser relacionada de imediato a um certo conservadorismo artaudiano ou rousseauniano, um sonho de retorno a uma natureza idílica. Pelo contrário, trata-se de uma revisão dos valores e da cultura tradicional do Ocidente. Mas o que seria esse ―sempre lá‖, essa ―natureza escondida, reprimida, recalcada pela cultura‖ às quais se refere Artaud? Se, não tradição bíblica, primeiro fez-se o verbo, para o poeta francês, o corpo é anterior: ―Artaud propõe o

tous les plans de la consciencie et dans tous le sens, entraîne nécessariament la pensée à prendre des attitudesàp ofo desà uiàso tà eà ueàl o àpou aitàappele àdeàlaàmétaphysique en activité.

71‘ie à eà eàtou he,à eà i t esseà ueà eà ueàs ad esseàdirectement à ma chair .

72Da sàlaàpe s eàd á taud,àl o igi elàest,àd u eàpa t,àlaà ieà os i ueà uiàestàtoujou sàl ,à t eàdeà o à t e,à o stitua tàlaà atu e,à atu eàaujou d huià a h e,à ep i e,à efoul eàpa àlaà ultu e.àMaisàl o igi elà estàaussiàl ho eàdesàp e ie sà gesàp su àp o heàdeàlaà atu e,àa térieur au règne de la raison, no denaturé par la culture occidentale.

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Pensamento como Corpo, e substitui o Pensamento estratificado em conceitos pela palavra Vida‖ (FELÍCIO, 1996, p. 1. Grifo do autor).

Daí o recurso, tanto no teatro quanto no cinema, ao pré-verbal, à linguagem corporal, aos espaços, objetos, cenários, iluminação, gestos, gritos, música, signos, símbolos, hieróglifos, duplos, sonhos, mitos e ritos, no sentido de atingir a vida em estado bruto, ainda não eivada de conceitos petrificantes, ainda não separada da natureza. Em uma palavra, Artaud acredita em uma espécie de inconsciente coletivo, primitivo, universal, que nos atravessa e nos une, uma força mágica cuja função da arte é resgatar e exaltar, impulsionando o espírito a um deslocamento constante.

No caso do cinema, é a imagem que se torna capaz de buscar no fundo do espírito as possibilidades não utilizadas da potência do ser cujo mistério perdemos em algum lugar, revelando e nos colocando em contato com toda uma vida oculta inexplorada, permeada de sonhos, imaginação, capacidade criativa, revolta, angústias, alegrias e tristezas e cuja libertação pode promover a transformação da existência, uma perda de si e um reencontro consigo mesmo, uma redescoberta do corpo e do espírito, do pensamento e da própria vida, um humanismo revolucionário que escapa ao diagnóstico do individualismo e da fragmentação contemporâneos.

Surrealismo, imagem, morte e ressurreição

Antes de abordamos a ideia de cinema artaudiano em sua essência, é importante lembrar que a questão do estatuto da imagem, em menor ou maior grau, sempre fez parte das preocupações de Artaud, direta ou indiretamente. Seus poemas são imagéticos, seu teatro e cinema, suas pinturas e desenhos são, por definição, imagéticos.

Já em suas primeiras cartas a Jacques Rivière, em 1924, ele proclama ser um espírito ainda não formado, ou seja, existe a procura de uma forma por meio da qual possa ser reconhecido em sua singularidade e especificidade. O pensamento ainda ―deformado‖ faria de Artaud um ser de estatura menor perante o mundo, irreconhecível, invisível. E sabemos como a visibilidade e o reconhecimento social são necessários na construção do que se chama de sujeito. Enquanto isso, ele se vê como alguém inespecífico, sem identidade, sobre quem se pode pensar mesmo que seja um imbecil ou qualquer outra coisa, um louco ou um gênio incompreendido, como se tal julgamento dependesse mesmo da aquisição de um desenho subjetivo/objetivo próprio.

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―Eu sou um espírito ainda não formado, um imbecil: pense você de mim o que quiser‖ (OC, vol. I*, p. 33, 1984)73. A frase remete a uma imagem ao mesmo tempo ligada ao pensamento. Artaud reclama em muitas passagens de sua paralisia em relação ao pensamento, de sua incapacidade de apreendê-lo no instante mesmo de sua formação. E quando ele considera ter captado alguma coisa ele se apressa em coloca-la no papel, mas é nesse instante mesmo que essa ―alguma coisa‖ foge, se esconde, tal como a experiência de um elemento físico-químico que muda de composição a partir do olhar do observador no microscópio, como se reagisse ao fato de ser observado e procurasse escapar a observação, a apreensão.

Em O pesa-nervos (OC, vol. I*, 1984), um de seus primeiros poemas, Artaud põe em relevo isso que ele chama de absurda possibilidade de fazer nascer um pensamento ao qual possa se agarrar74, e diz-se abalado por uma obstinação do espírito em querer pensar em dimensões e espaços, ou seja, topologicamente, como no teatro ou no cinema, e não por conceitos.

A inspiração existe, sem dúvida, mas a falta de coordenadas, a incapacidade em transporta-la para um suporte acusa igualmente sua dificuldade em encontrar um lugar no mundo que seria também uma forma de comunicação com os outros, mas sobretudo consigo mesmo. Enquanto isso não acontece, Artaud é constantemente acometido de um sentimento de não pertencimento, de estar existindo mais que vivendo, sempre ao lado da vida, um sonâmbulo, um autômato comandado por inconsciente e pulsões sobre os quais não possui nenhum controle.

Por isso, ao responder uma enquete realizada pelos surrealistas sobre se o suicídio é uma opção, Artaud responde ser apenas uma hipótese, mas para morrer é preciso ter certeza de se estar vivo, mesmo ao preço de uma morte em vida, para se reconstituir como um outro. O corpo, os membros, as pernas, os braços, eles se movem. A paralisia é de outra ordem. Espiritual. Mental. E o máximo que seu pensamento pode perceber são imagens fugidias e rápidas, incapturáveis.

Mas adiante veremos a influência dessas inquietações de juventude sobre sua própria maneira de pensar o cinema, com uma lógica de imagens que se engendram, se deformam e combinam. Seria isso, pensamos, uma tomada de consciência de uma força

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Je suis um esprit pas encore formé, um imbécile: pensez de moi ce que vous voudrez.

74 O título do poema revela essa impossibilidade: o que seria um pesa-nervos? Como concebê-lo em imagem ou palavras? Nervos não podem ser pesados por nenhum instrumento de aferição.

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inexplorada que por ele passava despercebida, mas que o chicoteava constantemente como que reclamando sua presença.

Longe de uma resignação, a partir dos textos surrealistas Artaud passa a pensar a questão da imagem mais como potência e menos como paralisia, e isso coincide com o seu interesse crescente pela sétima arte, ou seja, meados da década de 1920. É o que o leva a escrever, em seu Manifesto em linguagem clara (OC, vol. I**, p. 52, 1976): ―Nenhuma imagem não me satisfaz se não for ao mesmo tempo conhecimento, se traz com ela sua substância ao mesmo tempo que sua lucidez‖75. Trata-se de um espírito cansado da racionalidade discursiva ocidental e que busca uma saída para a renovação do pensamento, talvez no sentido de uma desrazão lúcida.

Daí nasce, por exemplo, um olhar mais atento e um questionamento sistemático em relação às potencias do sonho. Desmontar a mecânica do sonho, determinar os elementos de seu sistema para tentar estabelecer um novo sistema aplicável em outros domínios como, por exemplo, no cinema. Pois ―Aquilo que é do domínio da imagem é irredutível pela razão e deve permanecer na imagem, sob pena de se aniquilar. Mas, de toda forma, há uma razão nas imagens...‖ 76 (OC, vol. I**, p. 53, 1976).

Paule Thévenin (2006) relembra o interesse de Artaud pelos avanços produzidos por Sigmund Freud acerca de regiões inexploradas da mente. E se o sonho pensa, haveria uma linguagem pela qual esse pensamento seria perceptível, tangível, e por isso mesmo passível de ser colocado em relação com estados mais refinados do espírito, ou seja, no sentido de estabelecer outras relações com o homem e a realidade objetiva.

O problema estaria em detectar a lógica secreta de uma linguagem que frequentemente se apresenta em uma série de imagens aparentemente desorganizadas, sob forma de hieróglifos, e transportá-la para outro meio. E é justamente nos hieróglifos que Artaud busca inspiração para seu teatro. Mas assim como no teatro, o cinema artaudiano está em busca de uma nova linguagem física à base de signos e não mais de palavras. O próprio ator de cinema seria, sobretudo, um signo vivo, capaz de representar em si mesmo uma ideia, cuja violência seria suficiente para tornar inútil toda tradução numa linguagem lógica e discursiva. É a isso que ele se refere quando afirma que ―no cinema, o ator não passa de um signo vivo. Ele é, sozinho, toda a cena, o pensamento do autor e a sequência dos acontecimentos‖ (2006a, p. 170).

75 Aucune image ne me satisfait que si elle est em même temps Connaissance, si elle porte avec elle sa

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