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Pensar o surrealismo em termos de comunidade – e mesmo de uma comunidade religiosa – não é nenhuma novidade Entre muitos, o próprio Bataille o fez, em diversas

ocasiões e, o que é mais, em diversos sentidos.

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O que interessa dar a ver aqui é que, apesar

de nunca ter sido um membro efetivo do grupo surrealista, suas relações com este não foram

por isso menos decisivas, a ponto de, por exemplo, em Sur Nietzsche (1945), ele afirmar ser o

verdadeiro portador da verdade surrealista:

comunidade que vem., não esta, não deste. Nancy copula a noção de sujeito à de identidade e, portanto, à de coisa. O sujeito é a coisa que permanece idêntica a si para si mesma. A comunidade enquanto êxtase, enquanto exposição de si que interrompe o si, se faz no desfazer das coisas (désoeuvrement) , no plano inidentificável do

clinamen. Nancy critica Bataille por permanecer preso ao tema da “soberania de um sujeito” (o amante, o artista)

o que o teria impedido de levar ainda mais longe seu pensamento/experiência da comunidade. Mas cabe perguntar, relendo com atenção “La Souveraineté”, por exemplo, se não se trata de uma questão de diferentes usos do termo, se o “trabalho informal” (besogne) da palavra sujeito no texto bataillano não desmancha essa crítica. O que define ali a posição de sujeito não é a identidade e sim a oposição à coisa. O sujeito não é o indivíduo: é aquilo que de soberano há no homem e, sabemos, a soberania não é coisa alguma (rien). Algo como um sujeito impessoal. Talvez o termo de fato não convenha, o que não significa necessariamente que Bataille tenha ficado preso a ele, ou, mais especificamente, a seu conteúdo identitário. Na verdade é essa uma questão crucial para avaliarmos a pertinência da crítica de Nancy que se precipita na afirmação de que por ter tido seu pensamento votado ao paradoxo de ser “imantado pela comunidade” mas “regrado pelo tema da soberania de um sujeito” Bataille “permaneceu, por assim dizer, suspenso entre os dois pólos do êxtase e da comunidade” sem conseguir perceber sua recíproca “arealização”. De um lado o êxtase privado de um sujeito, a soberania, a liberdade; de outro, a igualdade, a comunidade, a justa partilha. É duvidoso, até mesmo para Nancy, que Bataille aí caiba. Mas isso pouco importa. Importa é verificar a efetividade da cadeia de “esquivalências” proposta por Nancy (preposta ou não por Bataille): comunidade - soberania - liberdade - igualdade (egaliberté) - literatura - ser-em-comum - êxtase... A comunidade jamais teve lugar. Sua perda foi inventada. Ela não é o que foi antes da sociedade e sim o que nos chega a partir desta. Nada está perdido salvo nós mesmos. A perda da imanência e da intimidade de uma comunhão é constitutiva da comunidade ela mesma. A morte é a verdade da imanência, a identidade continua dos átomos. As políticas imanentistas fazem sempre obra de morte. O homem “cumprido” do humanismo individualista ou comunista é o homem morto. É preciso portanto desconstruir o sistema da comunhão. Assim como “só a linguagem indica, no limite, o momento soberano em que ela não tem mais curso” (Bataille), “só um discurso da comunidade pode indicar, esgotando-se, à comunidade a soberania de sua partilha.” (Nancy).

156 Se em “O leão castrado” (publicado em 1930 no panfleto “Um cadáver”, resposta coletiva de uma parte

daqueles que haviam sido excomungados e/ou vituperados por Breton no Segundo manifesto) a expressão “religião surrealista” é usada para impugnar (“Resta pois a famosa questão do surrealismo, religião nova votada, a despeito das aparências, a um vago sucesso. / Ninguém duvida, com efeito, que as condições elementares do sucesso religioso sejam reunidas pela religião surrealista, o “mistério” no tocante aos dogmas indo hoje até à

“O movimento que exprimiu o surrealismo não está talvez mais nos objetos. Ele

está, se quisermos, nos meus livros.(Devo dize-lo eu mesmo, senão, quem se

aperceberia?)”

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um catafalco, um impudor grosseiro.” O.C I, p.218, numa conferência, de 1948, intitulada “A religião surrealista”, esta mesma expressão serve para marcar a grandeza do surrealismo. (Cf. O.C. VII, pp.381-408)

157BATAILLE, Georges. “Sur Nietzsche” O.C. VI, p.205. O título em francês “Sur Nietzsche” parece jogar com

a oscilação de sentido entre falar sobre Nietzsche e ser um super Nietzsche. Um outro texto, mais ou menos da mesma época (1946), em que Bataille desenvolve esse postulado, é A propos d’assoupissements (“Sobre dormir no ponto”) publicado na revista Troisième convoi (cujo nome alude exatamente a essa pretensão de ir além do surrealismo: nous les passagers du deuxième convoi...): “Mas como se veio a confundir com a coisa mesma a expressão que lhe dão a pintura ou a poesia? Sou mal designado, ao que parece. Opus-me, cada vez que tive a ocasião, ao surrealismo. E eu quereria agora afirmá-lo de dentro como a exigência que sofri e como a insatisfação que sou. Mas isto de bastante claro ressai: o surrealismo é definido pela possibilidade que seu velho inimigo de dentro, que sou, tem de o definir decididamente. É a contestação verdadeiramente viril (nada de

conciliador, de divino) dos limites admitidos, uma vontade rigorosa de insubmissão. E penso que a agitação,

raramente torrencial e no entanto..., que o nome quis designar não pôde jamais dar de si mesma uma figura suficientemente livre. Ligá-la, como o fez André Breton, a certas liberdades de expressão, tinha certamente mais de uma vantagem, e a escritura automática era melhor do que uma pedra de escândalo. É que a insubmissão, se ela não se estende ao domínio das imagens e das palavras, não é mais do que uma recusa de formas exteriores (como o governo, a polícia), quando as palavras e as imagens em ordem são os represetantes em nós de um sistema que, de fio em agulha, submete a natureza inteira à utilidade. A crença, ou antes a submissão

(asservissement) ao mundo real é sem sombra de dúvida um fundamento de toda servidão. Não posso ver como

livre um ser que não tenha o desejo de romper em si os laços da linguagem. Não segue daí que baste escapar um instante ao império das palavras para ter levado o mais longe que podemos a preocupação (souci) de não subordinar a nada o que somos. Houve também, desde o princípio, uma fraqueza inicial no lugar que o surrealismo deu à poesia e à pintura: ele fez passar a obra antes do ser. É verdade que expressamente se devia cessar de distinguir uma do outro: tanto valia a obra e tanto valia o ser. Um poema admirável de um homem vil parecia uma contradição. É possível, e isso não significa que, de um homem puro, o melhor que se possa esperar seja uma poesia. A ação, do ponto de vista que defini é praticamente inacessível (a experiência o indica: se excetuo René Char, praticamente não há ação de consequência conduzida por homens saídos do surrealismo que não tenha primeiro acarretado o abandono de seus princípios). E não é de ação que se trata* Não percebo razão (afora a preocupação de atrair, fazer número, pelo fato de que numerosos jovens escrevem poemas ou pintam, pelo fato de que existe um caminho habitual (ornière)) para ligar decididamente a sorte de uma extrema contestação ao exercício da pintura ou da poesia. Vejo antes que esses exercícios em nome de uma contestação violenta acabaram por dar seguimento aos precedentes. Eu seria indiferente a isso se a extrema confusão não tivesse, nessas condições, tomado o lugar da extrema contestação: esta quer um outro rigor. Como estar seguro de que um poema, de que um quadro, efetuam a “operação soberana” sem a qual cada um de nós serve a ordem estabelecida? Não vejo neste ponto o que responda ao que está em jogo afora uma contestação ilimitada, uma severidade de método exercida sem repouso. A menor fraqueza: longe de escapar às leis do mundo servil, nossas obras o servem. Nem mesmo a seriedade, nem mesmo a preocupação ansiosa escapam ao risco de a cada momento levar embora nossas chances. Em verdade, a “operação soberana”, desde o princípio, aparece antes como um sonho. O que até aqui parece ter feito mais falta aos surrealistas é a aptidão intelectual. Os surrealistas chegaram mesmo a ostentar desprezo pelas experiências da inteligência. No entanto, a maestria desses exercícios é talvez a chave de uma emancipação rigorosa. Se a excelência individual é frequentemente signo de servilidade, não decorre daí que possamos resolver a servilidade do espírito se não dispomos mais do que de fracos meios intelectuais. Além do mais, se quisermos ver bem, o surrealismo não está tão ligado à escritura automática quanto à afirmação de seu valor, na medida em que ela revela o pensamento. O que ensinava Breton não era menos a tomar consciência do valor do automatismo do que a escrever sob o ditado do inconsciente. Mas esse ensinamento abria duas vias: uma ia do lado das obras, sacrificava mesmo rapidamente todo princípio às necessidades das obras, acentuava o valor de atração dos quadros e dos livros. Foi aquela em que se engajou o surrealismo. A outra ia arduamente do lado do ser: desse lado não se podia dar mais do que uma fraca atenção ao atrativo das obras, não que este fosse insignificante, mas o que então era posto a nu, e cuja beleza ou feiura não mais importava, era o fundo das coisas, e desde então começava o debater-se do ser na noite. Tudo era suspenso numa solidão rigorosa. As facilidades que religam as obras ao “possível”, ao prazer estético tinham desaparecido. (O que era continuado assim era o debate de Rimbaud).Mas quando o grupo surrealista cessou de ser, creio que o fracasso tocava mais o surrealismo das obras. Não que as obras tenham cessado de ser com o grupo: a abundância das obras surrealistas é hoje maior do que nunca. Mas elas cessaram de estar ligadas à

Em “Le surrealisme au jour le jour” Bataille narra, com uns vinte e cinco anos de

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