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5. A intuição pura à luz do naturalismo e do cognitivismo

5.1 Susan Carey e os dois sistemas nucleares de cognição

Diante da querela da origem dos juízos matemáticos o naturalismo apresenta uma resposta que parece integrar a capacidade cognitivo-matemática com os fatores físicos e biológicos do ser humano. Em sua obra seminal The Origin of Concepts, Susan Carey apresenta uma resposta bastante satisfatória para tal problemática. Seu trabalho consiste na comprovação da existência de dois sistemas nucleares de

cognição (two core systems of cognition), os quais seriam capazes de explicar de

maneira biológica – evolutiva e genética – as habilidades matemáticas fundamentais de vários animais, inclusive o homem. Assim, a autora fala da capacidade de

representação de magnitude análoga do número (Analog Magnitude Representation of Number), do qual dispõem humanos adultos, crianças e animais não humanos.

Através desse sistema, o indivíduo é capaz de associar, já na mais tenra idade – grandezas extensas a números.185 Vejamos:

FIGURA 8. CAREY, 2009, p. 118

Essa imagem constitui “um sistema representacional de magnitude analógica externa em que comprimentos representam o número”186, o qual é utilizado por Carey

para afirmar que:

Os adultos humanos, os bebês humanos e os animais não humanos implementam um sistema de representações analógicas de magnitude do número. O número é representado por uma magnitude física que é aproximadamente proporcional ao número de indivíduos no conjunto que está sendo enumerado.187

185 Id. p. 118.

186 Ibid. “[...] an external analog magnitude representational system in which lengths represent number.”

187 Ibid. “Human adults, human infants, and nonhuman animals deploy a system of analog magnitude representations of number. Number is represented by a physical magnitude that is roughly proportional to the number of individuals in the set being enumerated.”

Carey nega que as crianças seriam como que uma tábula rasa – a existência de um sistema inato de representação numérica de grandezas, por si só, já aponta para a capacidade geométrica inata adquirida pelos animais humanos ao longo de milhões de anos de evolução, seleção e adaptação. A capacidade matemática fundamental – reconhecimento do espaço e do tempo – acaba por descobrir-se fundamentalmente inata e não exclusivamente humana. Certamente, o indivíduo humano – por meio da educação e da repetição – é capaz de elevar suas capacidades evolutivas primordiais a um nível de maior abstração. Contudo, o núcleo dessas capacidades é encontrado no cérebro humano; em bebês que, obviamente, não apreenderam geometria e aritmética. Logo, a cognição nuclear de bebês humanos com idade inferior a 1 ano “inclui mecanismos para selecionar conjuntos de indivíduos e quantificá-los com representações de número de magnitude analógica”188.

Em relação à aritmética, a qual poderia constituir um problema para a defesa da cognição nuclear apresentada, Carey defende que:

Pode-se objetar que a cognição da aritmética simbólica pode estar desempenhando um papel nas tarefas que envolvem computação - talvez os participantes estabeleçam valores cardeais aproximados dos conjuntos por meio de representações de magnitude analógicas; mapeá-los em números verbais; e depois adicionar, subtrair, multiplicar ou dividir usando regras aritméticas simbólicas. Embora os participantes adultos neguem fazer isso, podemos garantir que as representações analógicas de magnitude estão apoiando os cálculos usando participantes que ainda não conhecem os fatos simbólicos aritméticos - crianças pré-escolares. Barth e seus colegas realizaram uma série de estudos, mostrando que as crianças de 4 a 6 anos tem sucesso na adição, subtração, na multiplicação por 2 e divisão por 2. [...] Os estudos de Barth ilustram o funcionamento das representações análogas de magnitude de número em tarefas que não envolvem representações linguísticas explícitas. John Whalen, Randy Gallistel e Rochel Gelman (1999) confirmaram recentemente que adultos humanos mapearam numerais linguísticos em representações numéricas analógicas de magnitude.189

188 Id. p. 137 “[...] includes mechanisms for selecting sets of individuals and quantifying over them with analog magnitude number representations [...]”.

189 Id. p. 129. “One might object that cognition of symbolic arithmetic might be playing a role in the tasks that involve computation—perhaps participants establish approximate cardinal values of the sets via analog magnitude representations; map them onto verbal numerals; and then add, subtract, multiply or divide using symbolic arithmetic rules. Although adult participants deny doing this, we can ensure that analog magnitude representations themselves are supporting the calculations by using participants who do not yet know the symbolic arithmetic facts—preschool children. Barth and her colleagues have carried out a series of such studies, showing that 4 - to 6 - year-olds succeed at addition, subtraction, multiplication by 2, and division by 2 [...] Barth’s studies illustrate the operation of analog magnitude representations of number in tasks that do not involve explicit linguistic number representations. John

Assim, representações analógicas de magnitude subjazem as operações aritméticas simbólicas. Este fato ressalta que não apenas o espaço, mas, também o tempo fazem parte da cognição primitiva, uma vez que a diferenciação proposta por Carey (1: _; 2:__; 3:___; 4:____ ...) implica o reconhecimento de grandezas e sua sucessão temporal. Logo, operações simbólicas e linguísticas não prescindem das capacidades biologicamente inatas da razão humana.

Além do sistema nuclear supracitado, Carey apresenta ainda um segundo, o sistema de Individuação Paralela de Conjuntos Pequenos (Parallel Individuation of

Small Sets)190, o qual consiste em indivíduos na fase pré-verbal serem capazes de distinguirem conjuntos a partir do número de indivíduos no interior de tais conjuntos.

Carey afirma que:

Concepções a respeito das origens das habilidades numéricas parecem gerar um desafio formidável. O número é a entidade numérica abstrata por excelência. Piaget acreditava que representações numéricas são construídas a partir de capacidades lógicas (a capacidade de ordenação linear e a capacidade de representação e operação de conjuntos), capacidades lógicas que não eram elas próprias construídas até os primeiros anos escolares. Consequentemente, ele acreditava que crianças não podiam representar números até então [...]. O sistema de objeto arquivo

(object - file system) de representações engloba critérios de

individuação e de identidade numérica para objetos, e crianças criam modelos de memória de trabalho que distinguem conjuntos com dois objetos numericamente distintos daqueles com três ou um objeto [...] crianças também criam modelos de memória de trabalho para conjuntos (working-memory models of sets) de diferentes tipos de indivíduos – eventos individuais, diferenças de tom individuais – e esses modelos de memória de trabalho tem muitas similaridades estruturais com aqueles que representam pequenos conjuntos de objetos [...] essas representações de ‘arquivo individual’ (individual file

representations) são numéricas de maneiras que conflitam com a

posição de Piaget.191

Whalen, Randy Gallistel, and Rochel Gelman [...] have recently confirmed that human adults have mapped linguistic numerals onto analog magnitude number representations.”

190 Id. p. 137.

191CAREY, 2009, p. 117. “Accounting for the origins of human numerical abilities seems to pose a formidable challenge. Number is a quintessential abstract entity. Piaget believed that numerical representations are built from logical capacities (the capacity for linear order and the capacity to represent and operate over sets), logical capacities that were not themselves constructed until the early school years. Accordingly, he believed that children could not represent number until then […]. The object-file system of representations embodies criteria of individuation and numerical identity for objects, and infants create working memory models that distinguish sets with two numerically distinct objects from those with three objects or one object […] infants also create working-memory models of sets of different types of individuals—individual events, individual tone bursts—and these working-memory models have many structural similarities to those that represent small sets of objects […] these “individual file” representations are numerical in ways that conflict with Piaget’s position.”

Se tal sistema nuclear de fato subjaz a capacidade cognitiva humana, então a individuação numérica é uma faculdade inata, uma capacidade mental a qual permite que crianças da mais tenra idade – sem treinamento – possuam a faculdade cognitiva básica em relação ao espaço (grandeza) e ao tempo (sucessão numérica). O processo de diferenciação de grandezas - e de associação com os respectivos números – conjugado com a individuação de e diferenciação de objetos em um conjunto, demonstram a espacialidade e a sucessão temporal. Logo, espécies humanas e não humanas possuem faculdades mentais adquiridas anteriormente a qualquer experiência empírica, faculdades estas que foram formadas através de um processo evolutivo biológico.

Outro aspecto importante salientado por Carey é o de que esses dois sistemas nucleares não operam de maneira isolada de modo que a Representação Analógica

de Magnitudes e a Individuação Paralela de Conjuntos Pequenos são mutuamente

utilizados na cognição de bebês humanos:

[...] lactentes distinguem pequenas séries com base no número de indivíduos neles. [...] esses dados fornecem evidências para representações de magnitude analógica em bebês pré-verbais [...]. E se assim for, que as representações de magnitude analógica subjazem o desempenho do bebê.192

A distinção de pequenas séries a partir do número de objetos em um conjunto necessita das representações analógicas de magnitude, de modo que essa iteração proporciona a contagem de indivíduos e a percepção da grandeza espacial dos objetos.