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CAPÍTULO II O TEMPO E A TÉCNICA

2.2 A técnica

Como fica bem evidenciado, dentre algumas características que se associam ao momento histórico e a narrativa em questão estão a paródia e a ironia, bem como a configuração de personagens marginalizados, ou os ex-cêntricos, conforme Linda Hutcheon (1988). Entretanto, a paródia é um recurso que advém da intertextualidade, uma especificação. E, no caso de Scliar, este é um mecanismo fundamental de sua obra.

Assim, entende-se necessário adentrar um pouco mais nessa discussão. Até porque, nos capítulos subsequente, nos quais se aborda a gradação narrativa diáspora, exílio e loucura, a

intertextualidade, por vezes paródica, outras parafrásica, constitue base para as imagens de sustentação para a análise proposta.

O diálogo entre textos literários é um processo intrínseco à literatura e, ora mais, ora menos evidente, mantém-se mesmo como um ponto de definição da arte da palavra. Segundo Julia Kristeva, retomando os postulados de Bakhtin, “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (2005, p.68). Contudo, embora seja evidente essa característica no texto literário, não se deve tomar a intertextualidade como “um simples fenômeno entre os outros”, mas como “seu movimento principal”, “o perpétuo diálogo” com o mundo e como ele foi representado ao longo dos tempos. (SAMOYAULT, 2008, p.14).

Entende-se, assim, que independentemente de classificação, no sentido de ordem de produção, de hierarquia ou de subordinação, - atendendo à noção de hipotexto -, exposta por Julia Kristeva (2005), o resultado desse tipo inexorável de relação oferece a oportunidade de perscrutar o texto com profundidade, ainda que se saiba que tal possibilidade depende diretamente do arquivo cultural de cada leitor em relação ao mundo e à própria arte literária com suas especificidades.

A questão é que, para além de sua conceituação, a caracterização de suas ocorrências é um valioso instrumento de compreensão do texto literário. Assim, a literatura de segunda mão, conceituada por Gerard Genette em Palimpsestos (1982), além de confirmar que a comunicação entre textos existe, estabelece que a intertextualidade é “a presença efetiva de um texto em um outro” e se manifesta de modo mais concreto, “colocando sua dinâmica transformacional do lado da hipertextualidade”. (SAMOYAULT, 2008, p.29-30)

Quanto à efetividade da intertextualidade na obra, a observação de Olinto (2011, p.47) muito contribui para uma reflexão acerca da tríplice correlação autor-obra-leitor e da ampliação das possibilidades de leitura: “a ficcionalidade do discurso literário representa uma opção deliberada, que precisa ser apreendia por meio de estratégias específicas em longos processos de socialização que funcionam como uma espécie de pacto entre autores e leitores.” O conhecimento das referências entre textos, nesse âmbito, potencializa a apreensão de sentido pelo leitor.

Tamanha é a importância da referencialidade e da recepção, que esses dois fatores, dentre três marcadores, são evidenciados, nas palavras de Jorge Wanderley (1992), como pilares que sustentam a definição da literatura ou a tentativa de defini-la:

é literário o texto que obedeça a algumas exigências: a uma intenção artística (literária), a uma norma consensual de recepção, a uma relação contextual. [...] O primeiro item significa que o texto que se quer literário sabe disto e assim existe; em plena consciência de seu programa, suas técnicas, sua história, seu objetivo (ainda que negá-lo faça parte de sua proposta). [...] O segundo refere-se a que o texto literário, tal como visto hoje, não discrepará de seus pares, e será recebido, por seu usuário, o leitor, como sendo literário e não qualquer outra coisa. [...] O terceiro, expansão do segundo, liga o texto a sua realidade, a suas relações e ao intertexto, fixando suas relações com todos os demais textos, de qualquer espaço e tempo (WANDERLEY, 1992, p. 259).

Também nos estudos de Tiphaine Samoyault, acerca da intertextualidade e da memória (2008), são elencadas suas concepções teóricas ao longo da História e, obviamente, das produções literárias, destacando o efeito da memória como marca da literatura e, sobretudo, como o fator de dinamicidade e autonomia desta a um só tempo. No mesmo impulso, o texto literário agrega-se universalmente ao mundo e torna-se exclusivo dentro da perspectiva de criação.

A literatura se escreve certamente em uma relação com o mundo, mas também apresenta-se numa relação consigo mesma, com sua história, a história de suas produções, a longa caminhada de suas origens. Se cada texto constrói sua própria origem (sua originalidade), inscreve-se ao mesmo tempo numa genealogia que ele pode mais ou menos explicitar. Esta compõe uma árvore com galhos numerosos, com um rizoma mais do que com uma raiz única, onde as filiações se dispersam e cujas evoluções são tanto horizontais quanto verticais. É impossível assim pintar um quadro analítico das relações que os textos estabelecem entre si: da mesma natureza, nascem uns dos outros; influenciam uns aos outros, segundo o princípio de uma geração não espontânea; ao mesmo tempo que não há nunca reprodução pura e simples ou adoção plena (SAMOYAULT, 2008, p. 9).

Fica, portanto, perceptível, nas palavras da referida autora, que a interlocução entre os textos literários se constitui como pré-requisito para sua condição, já que busca em suas próprias fontes a inspiração da criação. A atemporalidade da obra literária concretiza-se, dentre outras questões, nessa característica de comunicação intertextual.

Há ainda muita pertinência, na reflexão de Samoyault (2008), quanto à utilização do termo raízes para ilustrar a ideia como representação das possibilidades de leitura dos diálogos textuais, que se deslocam para variadas direções. Considera-se esta imagem, com vistas a analisar uma gradação temática recorrente no romance-objeto desse estudo, Os Voluntários: a diáspora, o exílio e a loucura, com ecos da tradição mítica.

Ademais, para fins de compreensão e análise da obra em questão, é preciso considerar o fato de que a produção scliariana não pode ser reduzida a temas judaicos, embora ela seja neles calcada, tendo em vista que suas narrativas abarcam um âmbito extremamente universal, paródico e político. Tais qualidades, dentre outras peculiaridades, inserem-no na literatura

contemporânea, a qual possui como traço geral o desfacelamento, mas guarda mais conjecturas no que se refere a tentativas de delimitações.

Diante de período tão aberto em si mesmo e em suas características, é pertinente observar que a voz de Moacyr Scliar possui um caráter grandiloquente e, bem por isso, transita entre o moderno, mas assenta-se no pós-moderno por diversas razões. Desse modo, buscam-se conceitos relacionados aos termos mencionados na tentativa de compreender com profundidade a estética do escritor.

Na obra Os Voluntários, o que se percebe é uma reconstrução do passado de forma paródica, sem perder a capacidade de narrar a tradição valiosa do judaísmo. Assim, para melhor entendimento dessas características de composição, recursos literários utilizados pelo autor, propõe-se um levantamento do contexto histórico-literário ao qual o autor se vincula temporalmente. Com esse movimento, busca-se alcançar matéria onde se firmarão as hipóteses de análise da narrativa da obra em estudo.

CAPÍTULO III

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