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TABELA 7 OPERADORES DE TELEMARKETING*, SEGUNDO REGIÃO – BRASIL, 2003​-2009 Região 2003 2004 2005 2006 2007 2008

No documento A Politica Do Precariado - Ruy Braga.epub (páginas 149-200)

A ANGÚSTIA DOS SUBALTERNOS

TABELA 7 OPERADORES DE TELEMARKETING*, SEGUNDO REGIÃO – BRASIL, 2003​-2009 Região 2003 2004 2005 2006 2007 2008

Norte 1.417 1.434 1.621 2.212 2.049 2.015 2.225 Nordeste 9.253 18.661 22.763 23.678 26.958 32.278 34.895 Sudeste 86.381 140.125 172.063 192.470 224.431 259.162 259.108 Sul 16.692 20.057 25.940 29.024 31.319 32.863 32.562 Centro​-oeste 11.411 15.989 19.414 18.985 20.239 24.694 24.514 Brasil 125.154 196.266 241.801 266.369 304.996 351.012 353.304

Classificação Brasileira de Ocupações: 4223 – Operadores de telemarketing Fonte: MTE/Rais

A despeito do predomínio da terceirização empresarial, vale lembrar que praticamente a totalidade dessas vagas é composta por empregos formais, isto é, regidos pela legislação trabalhista. A conhecida tendência à informalização do trabalho verificada na região Nordeste faz com que essa ocupação torne​-se ainda mais sedutora para o trabalhador jovem e sem experiência profissional anterior. Lembremos finalmente que desses 34.895 empregos do setor no Nordeste, 14.582 estão localizados na Bahia, estado cuja capital, Salvador, historicamente apresenta as maiores taxas de desocupação entre as principais regiões metropolitanas brasileiras (16,6% da PEA em 2010).

Nascido do processo de desconstrução neoliberal do antigo sistema de solidariedade fordista, experimentando o aumento da concorrência e da fragmentação vivido pelos novos grupos de trabalhadores, o número de teleoperadores no país cresceu em um ritmo acelerado durante os dois mandatos de Lula da Silva. Resultado do amadurecimento de um novo regime de acumulação pós​- fordista no país, os call centers brasileiros espalharam​-se pelo Nordeste, nutrindo​-se de um vasto contingente de trabalhadores jovens, especialmente mulheres e negros, em busca de uma primeira oportunidade no mercado formal de trabalho. Com a diminuição da desigualdade de renda entre as regiões Nordeste e Sudeste, além da queda do número dos que não chegam ao ensino médio no país, muitos jovens que há algumas décadas migrariam para o Sul em busca de melhores salários e qualificações profissionais preferem permanecer nas regiões de origem, aventurando​-se no setor de telemarketing.

Integrando essa realidade, a indústria de call center mostrou​-se um terreno privilegiado para a observação das atuais transformações do precariado brasileiro. Daí nosso interesse em acompanhar a trajetória dos teleoperadores, destacando cinco variáveis​-chave: modelo de organização do trabalho, padrão de proletarização, nível de qualificação, relação salarial e formas de mobilização coletiva.

Antes de mais nada, vale salientar que, do ponto de vista das características gerais do processo de trabalho dos teleoperadores, nossa pesquisa de campo em sítios das duas maiores empresas do setor, uma de capital nacional e outra internacional, constatou uma série de importantes características comuns: a) as operações de teleatividades são realizadas 24 horas por dia, 7 dias por semana – consequentemente, as CTAs exigem grande disponibilidade dos trabalhadores; b) na medida em que essa disponibilidade encontra​-se associada a difíceis condições de trabalho, temos como resultado uma elevada intermitência; c) o trabalhador submete​-se ao fluxo informacional por intermédio de forte ritmo de trabalho: ao final de uma chamada, sucede a seguinte, seja automaticamente, seja manualmente, após um máximo de dois ou três sonidos. A taxa de enquadramento pelos supervisores (um supervisor para quinze ou vinte teleoperadores, em média) explica​-se pela necessidade de

controlar ao máximo os trabalhadores, impedindo que relaxem, mas sobretudo que abandonem o fluxo informacional[344].

Inquietação e consentimento na indústria de call center

Com a automatização do trabalho do teleoperador, os ganhos de produtividade são alcançados à custa de um acentuado aumento da fadiga física, da postura automatizada, dos contratos de trabalho em tempo parcial, da vertigem oriunda da multiplicidade das chamadas e do adoecimento no trabalho. Na realidade, ao longo de nossa pesquisa de campo, quer por meio da aplicação do questionário à amostra selecionada em ambas as empresas, quer pelo contato com os teleoperadores através de entrevistas em profundidade, nos deparamos com uma realidade marcada por Lesões por Esforço Repetitivo, tendinites, doença de Ménière (crises de vertigem repentinas associadas a zumbidos nos ouvidos e surdez progressiva), quadros depressivos agudos, infecções urinárias – em virtude das reduzidas pausas permitidas para ir ao banheiro –, obesidade, descontrole hipertensivo e calos vocais.

As respostas ao nosso questionário revelaram uma associação bastante clara entre a intensidade dos ritmos de trabalho e o processo de adoecimento do teleoperador: nada menos do que 62% dos entrevistados apontaram o comprometimento da saúde, a dificuldade de dormir (15%), associada ao estresse decorrente da intensidade do ritmo de trabalho (26%) ou à dificuldade de adaptação ao ritmo (21%); 38% das respostas indicaram uma adaptação ao ritmo de trabalho compatível com a capacidade do teleoperador (35%) ou uma adaptação perfeitamente satisfatória à pressão do fluxo informacional (3%). As percepções valorativas negativas – estressante e controlado (39%), monótono e cansativo (17%) – somaram 56%, ao passo que as respostas que associavam o trabalho do teleoperador a valores positivos – criatividade e independência (9%), participativo e com liberdade (6%) e cooperativo com satisfação pessoal (26%) – totalizaram 41%. Apenas 3% dos entrevistados deixaram de responder[345].

Em grande medida, parece​-nos razoável supor que o adoecimento no setor, fenômeno captado tanto por pesquisas acadêmicas quanto por investigações realizadas pelo Ministério do Trabalho, decorre de uma combinação de fatores, dentre os quais se destacam: treinamento inadequado, estresse decorrente das metas, negligência com a ergonomia e temperatura do ambiente de trabalho, exíguos intervalos durante a jornada, folgas insuficientes, forte taxa de enquadramento do teleoperador e intensificação dos ritmos de trabalho proporcionados pelo permanente processo de renovação tecnológica[346]. Além disso, vale observar que as mulheres encontram​-se acentuadamente mais expostas ao processo de adoecimento do que os homens[347]. De fato, o regime de trabalho predominante no setor tem produzido doenças semelhantes àquelas descritas por Le Guillant em seu clássico estudo realizado em 1956: dores de cabeça, crises de choro, irritabilidade, zumbidos nos ouvidos e pensamento obsessivo:

No call center há operadores que concluíram um curso superior nas mais diversas áreas. São eles: advogados, jornalistas, professores de educação física, história, biologia, pedagogia, turismo etc. Entre os colegas [no banco], um é advogado e outro jornalista. Dizem que continuam no telemarketing porque não conseguiram trabalho na área de formação. [...] Já Letícia [nome fictício] concluiu o curso superior em Direito. Na época, já trabalhava como operadora de telemarketing no banco. “Foi então que me vi em um dilema” – diz Letícia – “ou trabalhava no banco para pagar a faculdade, ou não estudava. Não tive escolha, continuei com o trabalho de atendimento para me manter e pagar a faculdade. Raramente aparecia um estágio na área, e quando surgia, pouco ofereciam de salário, praticamente nada. Isso foi algo que me prejudicou, pois não podia e até hoje não posso abrir mão do salário que recebo no atendimento. Quando entrei na empresa era tudo maravilhoso, conseguia pagar a faculdade, mantinha meus gastos pessoais e minhas

baladas. Depois do período de experiência, senti as coisas começarem a mudar em minha vida. [...] A pressão sobre o trabalho era muito grande, somos muito exigidos. É a produtividade, a paciência extrema com o cliente, e não é sempre que dá. Foi então que eu procurei um psiquiatra, e aí essas consultas passaram a ser mais frequentes. Desenvolvi o que é conhecido por TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo). [...] Tive também o que é chamado de transtorno bipolar de humor”[348].

Outra característica saliente da indústria brasileira de call center é seu comportamento oligopolista. A soma dos empregados das duas maiores empresas (159.508) corresponde a 47% do total de trabalhadores do setor, levando em conta a soma dos trabalhadores das demais dezoito maiores empresas (180.301)[349]. Trata​-se de um traço que diferencia nitidamente a indústria brasileira de call center de países como Estados Unidos e França[350]. Essa característica oligopolista somada à baixa qualificação da força de trabalho e à relativa fragilidade dos sindicatos atuantes no setor ajudam a compreender por que – apesar de a grande maioria dos teleoperadores brasileiros (70%) estar coberta pela negociação coletiva – os salários brasileiros (3.415 dólares anuais – coberto por negociação coletiva – e 4.484 dólares anuais – não coberto por negociação coletiva) localizam​-se entre os mais baixos do mundo no setor, superando apenas os salários dos trabalhadores indianos[351].

Para efeitos comparativos, um teleoperador estadunidense aufere em média uma renda salarial anual de 35 mil dólares e um teleoperador na África do Sul, 11.200 dólares, respectivamente dez e três vezes o valor do salário do teleoperador brasileiro[352]. Os baixos salários acompanham a pouca qualificação dos trabalhadores do setor: entre todos os dezessete países da amostra utilizada por David Holman, Rosemary Batt e Ursula Holtgrewe, os teleoperadores brasileiros foram aqueles que apresentaram as menores taxas de escolaridade formal. (No tocante a nossa própria amostra, verificamos uma forte presença de trabalhadores com o segundo grau completo, 65%. Do restante, 29% dos entrevistados declararam estar cursando o ensino superior e 6% declararam possuir o ensino superior completo. Ninguém assinalou as opções ensino primário completo ou secundário incompleto.)

A questão da qualificação da força de trabalho no setor merece uma reflexão. Para alguns, o setor brasileiro de call centers seria formado por grupos de trabalhadores, apesar de sub​-remunerados, altamente qualificados. Tendo em vista a dissonância entre qualificações e salários, os teleoperadores tenderiam a assumir um comportamento individualista e instrumental: o emprego no setor significaria apenas um meio para acumular certa experiência profissional enquanto buscam ocupações mais valorizadas[353]. Trata​-se, vale notar, de uma interpretação bastante usual entre gerentes de RH atuantes na indústria de call center: a responsabilidade pela elevada rotatividade do trabalho seria dos próprios trabalhadores. Além disso, a ideia segundo a qual esse trabalho representa uma primeira oportunidade no mercado formal para “jovens empreendedores” é largamente utilizada por publicações financiadas pelas próprias empresas de telemarketing.

Consideramos essa interpretação equivocada por duas razões. Em primeiro lugar, é preciso observar que esse tipo de abordagem, além de enfatizar unilateralmente a intenção subjetiva dos entrevistados, desprezando características estruturais do mercado de trabalho brasileiro, apoia​-se em demasia em uma concepção de qualificação estritamente associada à obtenção do diploma de ensino médio[354]. Ou seja, subestima o fato de que o acesso ao ensino médio praticamente universalizou​- se no país, transformando​-se em um critério mínimo para a entrada no mercado de trabalho do telemarketing[355]. Em segundo lugar, a questão da qualificação para o trabalho deve levar em consideração o tempo médio de formação necessário para o teleoperador ser considerado proficiente. Observamos em campo que o tempo de treinamento proporcionado pelas empresas para

a maioria das teleatividades nunca vai além de poucas semanas. Na realidade, após um treinamento básico, o teleoperador ainda não proficiente é colocado na Posição de Atendimento (PA), necessitando ficar o tempo todo atento – “carrapateando”, conforme o jargão do setor – aos procedimentos utilizados pelos colegas mais experientes para alcançar suas metas de vendas ou de número de atendimentos.

Pudemos registrar por meio de entrevistas que esse tipo de situação acrescenta uma importante carga de estresse nos primeiros meses de trabalho do teleoperador, até que ele se sinta habituado ao produto. Exatamente porque a indústria de call center não necessita de uma força de trabalho com

qualificação especial, as empresas beneficam​-se de um regime de relações de trabalho apoiado em

elevadas taxas de rotatividade da força de trabalho. Aliás, o ciclo ao qual o trabalhador está submetido é bastante conhecido pelas empresas: em geral, são necessários dois a três meses de experiência para se tornar proficiente no produto. Trata​-se, como observado, de um período estressante, pois o desempenho exigido dificilmente é alcançado pelo teleoperador ainda inexperiente. Após esses primeiros meses, o trabalhador encontra​-se apto a alcançar as metas: advém um período de, aproximadamente, um ano, ao longo do qual ele obtém certa satisfação residual no trabalho em razão de dominar o produto. É o momento em que o teleoperador apresenta seu melhor desempenho, sendo reconhecido pela empresa por meio de brindes, da escolha de destaque da semana com foto na parede, de pequenas festas ao final da jornada de trabalho etc. Para tanto, é frequente encontrarmos equipes que atuam junto às operações formadas pela empresa contratante e são especializadas em promover atividades motivacionais.

Uma característica importante do ciclo do teleoperador capaz de lançar alguma luz sobre o período em que ele alcança a satisfação residual diz respeito ao trabalho em equipe, predominante no setor, que se impõe como uma necessidade do sistema de metas. Assim, existem metas individuais, do grupo e de toda a operação. A parte variável do salário do teleoperador é composta por esses três níveis. Logo, o funcionamento do sistema de metas tende a reforçar a solidariedade no interior do grupo de trabalho, emulando o trabalhador. Além disso, tendo em vista a grande concentração de jovens e mulheres no telemarketing, é muito comum a formação de “panelinhas”, pequenos grupos de jovens que se conhecem no trabalho, mas que também se encontram nas folgas, compartilhando hábitos de lazer e de consumo. Relatos de viagens e de passeios com colegas de trabalho são comuns. Durante as entrevistas com teleoperadoras, ficou patente a importância desses vínculos de amizade tanto para o sucesso das metas quanto para o desejo de permanecer na empresa ou na mesma operação[356].

No entanto, o endurecimento das metas, a rotinização do trabalho, o despotismo dos coordenadores de operação, os baixos salários e a negligência por parte das empresas em relação à ergonomia e à temperatura do ambiente promovem o adoecimento e alimentam o desinteresse pelo trabalho. Nessa fase, o teleoperador deixa de “dar o resultado”, sendo, então, demitido e substituído por outro, que recomeçará o mesmo ciclo. Devido à horizontalização hierárquica promovida pelos sistemas informacionais, as oportunidades de ascensão vertical no setor são escassas. Normalmente, o teleoperador insatisfeito deseja ser transferido para uma operação considerada mais fácil ou rentável – em termos da parte variável do salário –, ascender à supervisão ou ser promovido para alguma função associada ao controle de qualidade. Em poucos casos, os salários são de fato incrementados ou as condições de trabalho modificam​-se de forma acentuada. A via da demissão é bastante usual[357]. De fato, segundo os gerentes de RH entrevistados, em 2004, a rotatividade média de mão

de obra nas duas empresas pesquisadas oscilava entre 3% e 4% ao mês (isto é, 36% e 48% ao ano, respectivamente), dependendo da natureza da atividade (ativo ou receptivo), nível de qualificação exigida (por exemplo, nos setores de suporte técnico e teleatendimento bancário, a taxa de rotatividade é menor) e sazonalidade[358].

Evidentemente, a rotatividade produziu um acentuado descontentamento entre os teleoperadores entrevistados, em especial entre os mais experientes: a despeito de seus notáveis esforços individuais em ascender profissionalmente, seja frequentando uma faculdade particular noturna (quase um terço do total de teleoperadores de nossa amostra declarou estar cursando o ensino superior), seja pelas tentativas de progredir para funções superiores no interior da própria empresa, em raras ocasiões os teleoperadores lograram aumentar significativamente seus salários ou incrementar suas condições de trabalho. O descontentamento observado durante as entrevistas só não foi maior porque o setor está em constante renovação por meio da chegada de importantes contingentes de trabalhadores jovens em busca do primeiro emprego no mercado formal. Conforme o relato de Barreto, que durante nove anos trabalhou como teleoperador em diferentes empresas financeiras:

Porém, o que se nota no banco é que há mais facilidades para ocupar funções que não possuem alteração salarial. Ou seja, os trabalhadores se locomovem entre os setores, adquirem conhecimentos de novos produtos e serviços da empresa, sem receber uma promoção salarial. Outra razão [para a emulação do trabalhador] é a constante rotatividade de operadores no call center. A todo instante há novos operadores contratados. Sempre que ocorrem contratações, acumulam​-se filas enormes na recepção da empresa para a entrada dos novos operadores ao banco. Normalmente, ingressam de 30 a 50 operadores, que são formados em grupos para treinamentos. Com a chegada de novos operadores, os atendentes que já foram treinados e trabalham na “linha de frente” da central de atendimento são direcionados de forma gradativa a estes setores especializados do banco, que também possuem carga horária de

seis horas, abrindo espaço para os demais trabalhadores recém​-contratados. Esta rotatividade acontece por algumas razões, entre elas as demissões, os trabalhadores licenciados e também as transferências para outros setores do banco que são preenchidos pelos operadores. É comum observar, em um intervalo de seis a oito meses, a base da central de atendimento toda renovada. De repente, não se conhece mais ninguém, a maioria dos operadores sempre são recém​-contratados.[359]

QUADRO 15. O teleoperador brasileiro

Para muitas teleoperadoras entrevistadas, a sensação de progresso ocupacional encontra​-se fortemente associada à transição da informalidade para a formalidade. Durante nossa pesquisa de campo, entrevistamos jovens teleoperadoras filhas de empregadas domésticas que claramente identificaram no contraponto ao trabalho doméstico – destituído de prestígio, desqualificado, sub​-remunerado e incapaz de proporcionar um horizonte profissional – a principal razão de ter buscado a indústria do call center em vez de seguir os passos das mães – mesmo quando a diferença salarial era favorável ao trabalho doméstico[360]. No telemarketing, essas jovens perceberam a oportunidade tanto de 1) alcançar direitos trabalhistas quanto 2) terminar a faculdade particular noturna que o trabalho doméstico, devido à incerteza dos horários, assim como à baixa intensidade dos direitos, é incapaz de prover. Assim, não é surpresa que a insatisfação na indústria de call center seja relativamente controlada pela contratação preferencial de certo “perfil” de trabalhador: com uma taxa de participação feminina na força de trabalho gravitando em torno de 70%, além de uma alta ocorrência de afro​-descendentes, é possível dizer que o grupo brasileiro de teleoperadores é formado em sua maioria por jovens mulheres não brancas[361]. Ou seja, trata​-se daquela camada de trabalhadores que historicamente tem ocupado as piores posições no mercado de trabalho brasileiro, além de chefiar 80% das famílias monoparentais do país[362].

Em acréscimo, como veremos a seguir, nossa pesquisa de campo, tanto nas empresas quanto nos sindicatos, mostrou que, além de mulheres e não brancos, é muito comum encontrarmos entre os teleoperadores brasileiros inúmeros trabalhadores portadores de necessidades especiais, além de um expressivo contingente formado por gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (GLBTTs). Novamente, esbarramos nas camadas mais discriminadas do mercado de trabalho brasileiro. Selma Venco desenvolveu um trabalho pioneiro ao analisar essa característica do setor de telemarketing no país:

“Para um dos operadores entrevistados, o alto percentual de mulheres e homossexuais no teleatendimento relaciona​-se com suas características pessoais, consideradas pelo patronato como mais adequadas à atividade. Para ele, são pessoas mais sensíveis e pacientes, aspectos fundamentais tanto para a realização de boas vendas quanto para a retenção de clientes. Um dos teleoperadores entrevistados acredita que as pessoas que procuram emprego no setor são as ‘problemáticas’ ou ‘diferenciadas’, mas não considera como um local para os ‘excluídos’ da sociedade. Avalia também que o preconceito quanto à orientação sexual é ainda muito presente na sociedade; constata que o homossexual continua sendo uma pessoa não aceita na família e, sobre os que vivem com os pais, pensa que não têm liberdade para agir como os demais membros da família, saindo de casa mais cedo que a maioria dos jovens. Ele ilustra a realidade vivida no local de trabalho com sua própria experiência. Entre os colegas, seu codinome é PPV (‘pobre, preto e

veado’). A despeito de ele mesmo considerar isso uma simples brincadeira entre amigos, não se pode excluir a percepção da expressão ser tributária de aspectos altamente discriminatórios.”[363]

Não foi surpresa, portanto, identificarmos em nossa pesquisa de campo a presença de um grupo minoritário, porém expressivo, de teleoperadores inclinados no sentido da adaptação ao ritmo de trabalho e que se sentia, em alguma medida, satisfeito com esse tipo de emprego. Tratava​-se, como pudemos verificar nas entrevistas, de um grupo formado principalmente por trabalhadoras não brancas com idade em torno dos 25 anos e às voltas com responsabilidades familiares urgentes: por um lado, afirmavam ajudar decisivamente no sustento de pais e mães, por outro, muitas delas declaravam ser mães solteiras. Notamos que, com certa frequência, quando as trabalhadoras declaravam que os maridos estavam desempregados, por exemplo, a sensação de adaptação ao fluxo e a associação do trabalho com valores positivos aumentava. Com base nas entrevistas, percebemos, como era de se esperar, que a condição de arrimo de família produzia um efeito disciplinador muito acentuado, principalmente nos casos em que – estratégia de recrutamento conhecida e frequente nas empresas – a trabalhadora declarava ser mãe solteira.

A inclinação em direção à adaptação ao fluxo informacional também pôde ser verificada em

No documento A Politica Do Precariado - Ruy Braga.epub (páginas 149-200)