• Nenhum resultado encontrado

Enquanto historiadora e feminista preocupada com a “descontrução” de imagens que foram tomadas como evidentes e inquestionáveis a respeito das mulheres ao longo da história, vislumbrei a oportunidade desse estudo sobre as formas como se produziram/produzem sentidos para os conceitos e relações de gênero que aparecem nos discursos das origens e expansão do Tawantinsuyo.

13 Em linhas gerais esses repertórios interpretativos são “(...) as unidades de construção das práticas discursivas

– o conjunto de termos, descrições, lugares-comuns e figuras de linguagem – que demarcam o rol de possibilidades de construções discursivas, tendo por parâmetros o contexto em que essas práticas são produzidas e os estilos gramaticais específicos” (Spink e Medrado, 2000: 47).

As teorias feministas revelam e contribuem para a crescente incerteza nos círculos intelectuais ocidentais sobre a fundamentação e métodos utilizados para explicar e/ou interpretar a experiência humana. Como bem assinala Jane Flax,

os discursos pós-modernos são todos ‘desconstrutivos’, já que buscam nos distanciar de crenças relacionadas à verdade, conhecimento, poder, o eu e a linguagem, que são geralmente aceitas e servem de legitimação para a cultura ocidental contemporânea, e nos torna cépticos em relação a tais crenças (1991: 221).

Minha proposta de estudo dos processos de produção de sentidos, insere-se, portanto, em um campo de saber que interroga e desconstrói a naturalização dos corpos em papéis e práticas sociais. O termo “descontrução” é utilizado, aqui, para se referir ao “trabalho necessário de reflexão que possibilita uma desfamiliarização com construções conceituais que se transformaram em crenças e, enquanto tais, colocam-se como grandes obstáculos para que outras possam ser construídas” (Spink & Frezza, 2000: 27). A partir dessa desfamiliarização de noções profundamente arraigadas na nossa cultura, segundo Spink e Frezza,

Criamos espaço, sim, para novas construções, mas as anteriores ficam impregnadas nos artefatos da cultura, constituindo o acervo de repertórios interpretativos disponíveis para dar sentido ao mundo. Decorre daí a espiral dos processos de conhecimento, um movimento que permite a convivência de novos e antigos conteúdos (conceitos, teorias) e a ressignificação contínua e inacabada de teorias que já caíram em desuso (2000: 27).

Nessa perspectiva, tanto o sujeito como o objeto dos discursos são construções históricas que precisam ser problematizadas e desfamiliarizadas, haja vista que os objetos são apreendidos a partir das representações sociais, categorias, convenções, práticas, linguagem; do imaginário social compartilhado por aqueles que emitem os discursos. Trata-se de perceber que não há verdade absoluta, que não existe conhecimento absoluto, pois a verdade é a verdade de nossas convenções, elas são sempre específicas e construídas a partir de normas pautadas por critérios de coerência, utilidade, inteligibilidade, moralidade, enfim, de adequação às finalidades que designamos socialmente como relevantes (Spink e Frezza, 2000: 29-30). Assim compreendo que é necessário “remeter a verdade à esfera da ética; pontuar sua importância não como verdade em si, mas como relativa a nós mesmos” (Idem: 30).

Entender o pensamento e o conhecimento como fenômenos intrinsecamente históricos possibilita superar algumas premissas que impedem uma perspectiva mais aberta e plural das formas de apreensão/construção do real: 1) o essencialismo, que impõe uma determinação

biológica aos comportamentos femininos e masculinos, 2) o universalismo, que supõe a existência da repetição e do mesmo em todos os seres humanos.

A idéia de “desconstrução” dos discursos está relacionada a um desejo de problematização das dicotomias hierárquicas que estiveram presentes no imaginário androcêntrico tanto dos colonizadores como de alguns/as pesquisadores/as contemporâneos/as, apontando um lugar “natural” e fixo para cada um dos gêneros (tido como essencialmente binário masculino/feminino). Na perspectiva de Guacira Lopes Louro,

A descontrução trabalha contra essa lógica, faz perceber que a oposição é construída e não inerente e fixa. A descontrução sugere que se busquem os processos e as condições que estabeleceram os termos da polaridade. Supõe que se historicize a polaridade e a hierarquia nela implícita (1997: 32).

Nessa perspectiva, o gênero e o sexo são aqui tratados igualmente como construtos culturais/históricos. Com bem atenta Judith Butler,

O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura (2003: 25. Grifo original).

Essa noção permite assim a “descontrução” de uma noção dualista/binária dos sexos/gêneros que aparecem tanto nas crônicas como na historiografia naturalizando e universalizando as subjetividades e relações entre homens e mulheres na história dos incas. Como enfatiza Angela Arruda,

A crítica ao dualismo tenta apagar os limites entre natureza e cultura que tornam a aparecer no pensamento ocidental moderno sob a forma da separação entre razão e emoção, objetividade e subjetividade, mente e corpo, abstrato e concreto, ou público e privado. A teoria feminista ataca severamente estas bipolaridades (2000: 118).

A percepção do sexo/corpo como uma construção constitui fundamento para a crítica das representações de gênero binárias/androcêntricas predominantes e da concepção universal/humanista do sujeito. Ainda segundo Butler,

Como ponto de partida de uma teoria social do gênero, entretanto, a concepção universal da pessoa é deslocada pelas posições históricas ou antropológicas que compreendem o gênero como uma relação entre sujeitos socialmente constituídos, em contextos especificáveis. Este ponto de vista relacional ou contextual sugere que o que a pessoa “é” – e a rigor, o que o gênero “é” – refere-se sempre às relações construídas em que ela é determinada. Como fenômeno inconstante e contextual, o gênero não denota um ser substantivo, mas um ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente convergentes (Idem: 29).

Este ponto relativo de convergência, é claro, não pode deixar de se singularizar no mundo incaico e pré-incaico em relação aos cronistas e suas representações do mundo.

Documentos relacionados