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Teatro velado e discursos de resistências

No documento Denise Aparecida de Paulo Ribeiro Leppos (páginas 35-39)

1 TEATRO, POLÍTICA E CENSURA: VOZES DO POVO E DISCURSOS

1.2 DO POPULAR AO SEU AVESSO: um teatro a serviço do povo

1.2.1 Teatro velado e discursos de resistências

1.2.1 Teatro velado e discursos de resistências

O teatro de conteúdo velado se utilizava de subterfúgios para abordar temas que pudessem ser alvos de censura. Para isso, fazia uso, entre outros gêneros, de fábulas ou peças infantis produzidas por educadores, com o objetivo de transmitir “conteúdos moralizantes”, assim como o teatro catequizante praticado durante os anos iniciais de sua instauração no Brasil.

Apesar do contexto infantil, Plínio Marcos sempre manteve uma característica marcante: a de articular uma forte crítica ao sistema capitalista, às desigualdades sociais e à ditadura civil-militar. O autor se opunha à opressão que atingia os mais humildes e a classe artística, à qual sofria permanentemente com uma censura “sem lógica e com critérios subjetivos e absurdos. [...] Alguns autores, nesta fase, foram em busca de um teatro que, por meio de histórias mais realistas ou mais fantasiosas, defendessem a liberdade” (LEVI, 2009, p. 28).

Nessa conjuntura, Plínio Marcos escreveu a obra As aventuras do coelho Gabriel (1962)24, composta por quatro personagens principais: o macaco Chico Prego, o coelho Gabriel, a onça Malhada e o gato Miau-Miau. A obra é dividida em dois atos e três aventuras: i) o coelho Gabriel salva Chico Prego da onça Malhada; ii) a armação da onça Malhada e do gato Miau-Miau para pegar o coelho Gabriel e iii) o coelho Gabriel pega a onça Malhada e o gato Miau-Miau.

Em 1988, Plínio Marcos reescreve sua peça infantil, que agora segue com o título O

coelho e a onça (História dos bichos brasileiros). As personagens se mantêm, mas o enredo

sofre algumas alterações. A história, logo no início, resgata alguns traços da cultura popular com o uso de cantigas de roda, parlendas do folclore brasileiro e jogos populares. A ação é instaurada no momento em que a onça diz sentir “fome de alguma coisa” e é induzida pelo gato a comer carne, o que era visto com desaprovação e medo pelos outros bichos da floresta, todos vegetarianos.

No momento de reescrita dessa peça, as condições de produção são outras. Ao invés do prenúncio da ditadura, houve a queda do regime militar, acontecimento que marca o início de um período supostamente democrático. Contudo, a população, continuava descrente, com                                                                                                                          

os “governantes, na existência de saídas, enfim, na possibilidade de tudo se ajeitar. Havia também irresponsabilidade nos pronunciamentos políticos e nas atitudes de grande parte dos governantes” (RODRIGUES, 1992, p. 64).

A grande metáfora política, porém, continua a mesma: “a onça representando a força bruta e a opressão e o coelho a esperteza e a inteligência” (GARCIA, 1988, s/p)25. A esse discurso acrescenta-se outros que passaram a estar em voga na sociedade brasileira, tais como: a busca pelas histórias populares; a preservação do meio ambiente; a crítica à violência do homem pelo próprio homem (produzida pelo capitalismo).

A peça infantil que aludia ao cenário repressivo vivido pelos artistas ao longo dos anos de chumbo apresenta características de outro gênero textual: a fábula, consagrada pelo escritor grego Esopo, durante o século VI a.C. O autor criava histórias em que animais assumiam características humanas para representar comportamentos do homem com a finalidade de transmitir, ao final do texto, uma mensagem de caráter moral que suscitasse uma reflexão.

Tal mecanismo servia para levantar discussões acerca de alguns assuntos proibidos pela censura, dado que a obra tem como pano de fundo o governo autoritário. Nesta ótica, podemos pensar acerca das personagens que compõem a peça a partir das seguintes analogias:

• O coelho Gabriel seria o próprio Plínio Marcos censurado e perseguido pelas agências repressoras;

• O macaco Chico Prego seria outros artistas de esquerda que também sofriam com a repressão ao se solidarizarem com o dramaturgo;

• A onça Malhada representaria os militares, em que o vocábulo malhada remeteria à farda militar, que era rajada em tons de verde;

• O gato Miau-Miau reproduziria os discursos dos censores que ficavam infiltrados no meio cultural e registravam as denúncias contra a classe artística.

Embora, nesse contexto, Plínio Marcos tenha conseguido a liberação de As aventuras

do coelho Gabriel, ele não escapou às críticas quanto às escolhas lexicais do texto e a sua

linguagem coloquial, que representavam metaforicamente as situações nas quais os artistas sofriam com os órgãos repressores. É o que podemos verificar nas proposições no início de                                                                                                                          

cada aventura, em que as personagens conversam com os espectadores. Vejamos a situação em que o macaco Chico Prego diz: “Vocês viram como é sabido o coelho? Eu fiquei muito zangado com ele. O Gabriel rasgou meu diploma de sabido” (MARCOS, 1962, p. 1 – 1ª aventura). Outro exemplo é a fala do gato Miau-Miau: “Bem meus amiguinhos, como vocês

viram na historinha que acabou, o coelho Gabriel me salvou a vida, usando, mais uma vez, a

sua inteligência” (MARCOS, 1962, p. 1 – 2ª aventura). Nesta peça, de fato, constatamos um entrelaçamento do coloquialismo com a utilização da linguagem formal, tal como no emprego de acordo com a norma chamada de culta ou padrão do pronome oblíquo átono me no enunciado Pegou-me direitinho (MARCOS, 1962, p. 1 – 1ª aventura), e nessa utilização do diminutivo recupera característica da linguagem oral.

Ao dizer, por exemplo, Vocês viram como é sabido o coelho?, é reforçada a ideia de que com sabedoria e inteligência é possível escapar às amarras de um governo autoritário e repressor. O termo “sabido” é parafraseado abaixo, no que se apresenta como a moral da história, por “vale muito mais a inteligência do que a força física”. Isso pode por sua vez se configurar como um discurso de discordância e de crítica em relação aos militares, mas também eventualmente aos grupos progressistas que viam a luta armada com bons olhos.

Vejamos ainda as falas do coelho Gabriel, ao final da peça: “Meus caros amiguinhos,

a onça fugiu do gato e o gato fugiu da onça. Eu ganhei esta bonita cenoura e posso agora dormir sossegado com esses dois, que tão cedo não aparecem por aqui. É por isso que eu sempre digo: vale muito mais a inteligência do que a força bruta” (MARCOS, 1962, p. 3 –

3ª aventura). Nessa parte, o texto fala sobre o não uso da violência física através de uma metáfora para contextualizar o período político vivido no Brasil durante a década de 1960.

Consoante Fiorin (2014), as metáforas são construções semânticas que materializam as ideias abstratas e, ao fazê-las, aumentam a tonicidade do sentido, estabelecendo assim uma simetria entre os dois significados. Isto é, a “metáfora é a substituição de uma palavra por outra, quando há uma relação de similaridade entre o termo de partida (substituído) e o da chegada (substituinte)” (FIORIN, 1999, p. 86). Nota-se que há certa semelhança sêmica entre o enunciado força bruta com o momento histórico-político repressor na construção discursiva do texto, pois os censores, em sua grande maioria militares, reiteradas vezes, se utilizavam da violência física para coibirem os artistas.

Já a militância política armada de esquerda, durante os anos de 1960, ganhou força e adeptos com o objetivo de derrubar o regime autoritário. Vivia-se no Brasil um período obscurantista para todos que, devido aos procedimentos de interdição e censura, não tinha liberdade de expressão.

Com sua escrita provocadora e revolucionária, Plínio Marcos foi acusado, entre tantas coisas, de terrorismo pela OBAN – Operação Bandeirante, centro de investigação e informação formado pelo governo estadual de São Paulo e pelo Exército brasileiro, criado em 1969. O centro desenvolvia mecanismos de combate às organizações armadas que lutavam contra o regime militar. Qualquer pessoa que aventasse algum tipo de mudança social ou fosse contra as normas impostas pelo governo já era considerado um suspeito. Por conseguinte, “todo intelectual que procurasse ‘fazer a revolução’ através da palavra escrita, impressa ou falada, corria o risco de tornar-se bandido, sendo apontado como um homem ‘sem caráter’ e de ‘maus sentimentos’” (CARNEIRO, 1997, p. 17).

Vale ressaltar que em 1971 – após a apresentação de Quando as máquinas param26 – o teatro em que o espetáculo estava em cartaz foi invadido por integrantes da luta armada que queriam ler um manifesto contra a ditadura. Apesar de estarem lutando pela mesma causa grande parte dos artistas não concordava com esse tipo de protesto. Nessa perspectiva, o enunciado “vale muito mais a inteligência do que a força bruta” pode ser depreendido como um afastamento dos artistas da luta armada. O distanciamento mostrava então que para aqueles artistas a resistência podia se dar através da reflexão e do pensamento, e não pelo uso da força e da violência.

Desse modo, assim como a imprensa alternativa recusava a resistência armada, determinados artistas também buscavam esse distanciamento. Na classe artística, o ato de “resistir” acontecia predominantemente pelo verbo, pois se praticava resistência ao escrever textos que transgredissem os costumes, a ordem prescrita. Também rompiam com a política vigente ao enunciarem suas peças a partir de formações discursivas opostas. Ademais, ao dizer “vale muito mais a inteligência”, o dramaturgo evidencia a falta de critérios e                                                                                                                          

26 Conforme explica Mendes (2009), em 1971, o teatro em que estava sendo apresentado o espetáculo Quando as

máquinas param, ao final, os atores que participavam da peça foram encurralados por homens encapuzados dizendo que queriam ler um manifesto aos espectadores. Após lerem e distribuírem “o manifesto contra a ditadura, os jovens pregaram cartazes e saíram. Levaram o carro de uma espectadora e deixaram um problema aos artistas. Avisar ou não do episódio à polícia?” (2009, p. 242). Os artistas resolveram acionar as autoridades, que chegaram tirando sarro, “gozando de Plínio”. Os agentes da Oban colheram testemunhos de todos os presentes (artistas e espectadores) para futuros depoimentos à delegacia comandada por Sérgio Paranhos Fleury, conhecido “desde os tempos do Esquadrão da Morte, em que fez fama caçando e matando bandidos pés de chinelo e foi ‘promovido’ à caça de subversivos” (2009, p. 242). Vale dizer que ela foi escrita em 1967 por Plínio Marcos, Quando as máquinas param é a segunda versão de Enquanto os navios atracam de 1963. A peça conta a história de duas personagens: Zé, um torcedor fanático do Corinthians que está desempregado e Nina, sua esposa. A história retrata a vida de um casal que vive em condições miseráveis, mas não perdem as esperanças que dias melhores virão. Por possuir uma linguagem coloquial, próxima da vulgaridade, ela foi considerada imprópria para menores de 18 anos e sofreu vários cortes para ter seu certificado de censura liberado. Neste trabalho, não analisaremos a peça em questão, todavia, temos em mãos, para trabalhos futuros, os processos de censura (SCDP – 3689 – 3690 -3691 – 3692 – 3693 – 3694) da peça de Plínio Marcos, presentes no acervo do Sistema de Informações do Arquivo Nacional – SIAN. Disponível em: http://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/resultado_pesquisa_new.asp. Acesso em: 15 de março de 2017.

conhecimento dos censores para justificarem os corte e os vetos. Isso evidencia que há, de fato, um aparelhamento do Estado, que define os preceitos morais e dita o que deve ou não ser dito ou, neste caso, publicado e/ou encenado.

No documento Denise Aparecida de Paulo Ribeiro Leppos (páginas 35-39)