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O eros ao tempo da câmara de filmar

Na cultura ocidental, o corpo e a sexualidade são vividos e analisados de forma completamente distinta. O corpo, invólucro do indivíduo, é representação, espelho simbólico da perfeição divina. Para protegê-lo é necessário um controle social e cultural rígido, através de normas que o regulam. Estamos a falar de um corpo fechado em si mesmo e totalmente coberto, que não pode ser exibido por estar a nudez associada ao pecado. Do mesmo modo, Adão, assim que se apercebe da sua nudez após ter pecado, cobre-se. A roupa tem, portanto, uma conotação cultural, sendo a nudez entendida como transgressão, ou seja, um gesto que tem a ver com limites.

Neste sentido, o corpo simboliza a objectividade humana sem defesas. Através do erotismo, afirma George Bataille, o ser humano anseia, obscuramente, exceder os seus limites, ir para além de si mesmo. O erotismo traz em si a nostalgia de uma continuidade dos seres que desmente a nossa separação em indivíduos distintos315. Bataille foi o primeiro filósofo a dedicar um livro ao erotismo e foi com a sua Histoire de l’œil que atingimos o extremo do erotismo e a exploração do universo da folia erótica. Ele encontrava prazer no excesso da agonia porque achava ser esse o melhor modo de a superar. Cito:

O erotismo tem por princípio a destruição do ser fechado através da experiência da nudez do corpo (...) A acção decisiva é o despir-se. A nudez é a negação da condição do ser fechado em si mesmo, a nudez é um estado de comunicação que revela a pesquisa de uma possível totalidade do ser, além do dobramento sobre si mesmo (...). O que no erotismo está em jogo é sempre causar desarranjo da ordem, da disciplina, da organização individual.316

A roupa anula a condição da vida animal, escondendo os órgãos que são supérfluos para a expressão do espiritual. Nas sociedades ocidentais, não se cobre também a cabeça porque é nesta que se localiza a expressão espiritual da figura humana317. A roupa caracteriza o mundo, a história, a geografia, a natureza e a arte. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

315 Bataille, George. O Erotismo. Lisboa: Antígona, 1980: 16. 316 Ibidem, 16.

Hegel disse que “vestir não é mais que re-cobrir”318 a materialidade do corpo; uma materialidade que, nua e exposta, activa o erotismo.

O termo erótico vem do latim eròticus e do grego erotikòs, de Eros, desejo apaixonado. Eros é a personificação da força irresistível que empurra os seres humanos uns contra os outros. Platão, no Banquete, lembra-nos que Eros é um poderoso demónio intermediário entre a natureza da divindade e a do homem mortal, capaz de preencher a distância entre eles.

Eros, para Parménides, é o deus intermediário que mistura os dois fundamentos do universo – a luz e a noite – com equilíbrio, para dar origem a todas as coisas do mundo. Para os órficos, Eros nasceu do ovo primordial engendrado pela noite e cujas metades, ao se separarem, formaram a Terra e o Céu. (...) Empédocles reforça o papel decisivo de Eros no equilíbrio do jogo pernicioso de duas forças: o Amor (philia) e o Ódio (neikos), que atuam no universo e sobre seus elementos primordiais: água, ar, terra e fogo (...). Eurípides ressalta o duplo caráter de Eros: ora é força perniciosa que conduz à ruína, ora é poder saudável que leva à virtude.319

O erotismo desde sempre fez parte do imaginário artístico, mas encontramo-lo muitas vezes associado à experiência pornográfica. Como podemos, então, delinear os confins entre erotismo e pornografia? Alexandrian Sarane ajuda-nos definindo os limites: “a pornografia é a descrição pura e simples dos prazeres da carne, o erotismo é tudo o que faz a carne desejável, apresentando-a no seu esplendor ou no seu próspero desenvolvimento (...); pelo contrário, no obsceno a carne é aviltada, posta em contacto com sujidade, enfermidade, piadas escatológicas, palavras ordinárias.”320 A palavra pornografia é muitas vezes utilizada sem que seja conhecido o seu significado: o termo deriva da palavra porné (prostituta) e indicava, inicialmente, um texto escrito sobre as práticas da prostituição.

Foi na Europa que o erotismo veio a tornar-se um género literário. Concretamente, e tendo em consideração o território europeu, podemos afirmar que só em Itália e França os textos eróticos tiveram uma originalidade absoluta, a ponto de influenciar, a partir da Idade Média, os restantes países. A Inglaterra, por exemplo, começou a desenvolver o conceito de erotismo literário apenas a partir de Seiscentos. A Alemanha foi influenciada !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

318 Ibidem, 978-81.

319 Platão apud De Carli, Ana Mery Sehbe. O corpo no cinema. Variações do feminino. Educs – Editora

da Universidade de Caxias do Sul, 2009: 111.

primeiro por Boccaccio e depois por autores franceses. A Espanha, devido à censura da Inquisição, especializou-se na literatura sentimental e cavaleiresca.

A literatura erótica não teve sempre uma má reputação: os antigos gregos podiam exprimir-se à luz do dia; não podemos esquecer que na antiga tradição das Dionisie celebrava-se o culto do pénis com hinos licenciosos ou, ainda, a Lisistrata (./0*0+)(+1) de Aristófanes, obra prima do erotismo antigo (que os actores representavam, no teatro, colocando nas suas barrigas um pénis de madeira de dimensões impressionantes). Como os Gregos, também os Romanos possuíam uma tradição popular de diálogos licenciosos: os Fescennini. Todavia, a literatura erótica latina não foi um produto dos tempos primitivos da civilização romana mas, pelo contrário, nasceu no período do seu apogeu. Na Renascença, foi preciso vencer a escuridão da Idade Média para que se inventasse a idolatria às mulheres: a malignidade que envolvia a mulher foi então substituída pela consagração da beleza feminina, elevada à condição divina. A mulher passou a ser vista como deusa, anjo, ser superior ao homem, tanto pela sua beleza como pela sua virtude. Alguns historiadores dizem que a exaltação do feminino, na Renascença, tinha como propósito ocultar o capítulo da filosofia grega que enaltecia a beleza e o amor entre os homens, comportamentos condenados agora pelo catolicismo (De Carli, 2009: 87).

“A nudez é uma forma de representação do corpo, a mais comum na história da pintura ocidental a seguir à Renascença”321, dizia Nadeije Lanerye-Dagen. E continua:

Le nu dit artistique commence justement à être valorisé à partir de la sécularisation des arts. Traitant initialement des corps corpulents et figés, la Renaissance en vient, au travers de l’inspiration classique, à valoriser les muscles et les mouvements. Une préoccupation existe d’éviter le choc et l’aversion à l’égard des œuvres et ce, en donnant priorité à des thèmes épiques et d’inspiration religieuse et en créant une série d’artifices afin de désérotiser les tableaux, telles les feuilles couvrant le sexe dans les représentations d’Adam et Ève, par exemple.

L’érotisme surgit très lentement dans la peinture, et l’art baroque et le maniérisme vont inciter à la représentation de poses exagérées, ou de corps tendus et torturés. (Ibidem, 323)

Quase tudo o que antes se etiquetava como obsceno e escatológico na época surrealista passou a ser identificado como erótico. Lembramo-nos, por exemplo, do !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

321 Lanerye-Dagen, Nadeije. «La Figure humaine». Dans La Peinture. Dirigé par Jacqueline

primeiro Manifesto de La Révolution surréaliste de 1924, onde foi publicado um nu feminino atrás das persianas de uma janela: muito provavelmente, o primeiro exemplo de erotismo-velado. Este erotismo encontrava alimento no interior da fantasia, da imaginação, e não directamente no acto sexual mas através de percursos metafóricos. Os signos do erotismo ganham força pela aparência longe do mundo do sexo, ligados à fantasia e à imaginação do indivíduo. Octavio Paz afirma que em todo o encontro erótico há um personagem invisível e sempre activa: a imaginação, o desejo322. O autor baseia-se essencialmente no mito do andrógino, de Aristófanes. O amor define-se como desejo de uma completude: o mito do andrógino é uma realidade psicológica: todos, homens e mulheres, buscamos a nossa metade perdida. Mesmo Platão, no Banquete, explica que Zeus, querendo um dia castigar o homem sem o destruir, o cortara em duas partes. Desde então, “cada um de nós é o símbolo de um homem (hékastos oûn hemôn estin anthrópou symbolon)”, uma metade que procura a outra metade. Para curar a “antiga ferida”, Zeus enviou Amor. Focando-nos, portanto, na imagem do andrógino e no mito de Narciso, podemos perceber melhor as palavras de José Gil, quando este afirma que “o corpo do outro reflecte a imagem do meu como num espelho (...) Aqui reside a figura do «duplo». O corpo normal é-o porque não está sozinho: com ele vive o seu duplo - como um «simulacro»”323. A partir dessa relação especular (na qual amamos aquele que está em nós, ao idealizar o eu), o sujeito assenta bases para o imaginário: não é um corpo que se conquista, mas a imagem desse corpo (do ponto de vista da metáfora do espelho). A estrutura do desejo humano, caracterizada pela falta de objecto de desejo, origina o corpo pulsante, ou seja, o erotismo.

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322 Para aprofundar aconselha-se a leitura de Paz, Octavio. Conjunções e Disjunções. São Paulo:

Perspectiva, 1979. E Paz, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.

5.1 O Erotismo no Cinema

O erotismo esteve sempre presente na literatura moderna, na pintura, no desenho e nas artes plásticas. Porém, o tema veio a ter grande importância para o cinema quando o estudioso André Bazin apresentou esta arte como a que melhor representava o erotismo, afirmando a “afinidade entre o espectáculo do cinema e o do sonho”324. No plano onírico, o superego é o censor e, no plano do espectador, a censura vem, a priori, dos guardiões da moral. Para Bazin, o que se encontra de negativo no sonho está naquilo que é censurado, enquanto que o positivo está na transgressão das proibições325.

A história do cinema foi marcada pela transformação da linguagem fílmica, estreitamente ligada à representação do corpo no ecrã. Se quisermos delinear o percurso histórico do erotismo no cinema, devemos começar em 1896, com The Irving-Rice Kiss de Thomas Edison, curta-metragem de 20 segundos, onde assistimos pela primeira vez a um beijo; o filme foi divulgado com a seguinte frase: “They get ready to kiss, begin to kiss, and kiss and kiss and kiss in a way that brings down the house every time”. No

mesmo ano estreou Les Époux Vont au Lit, curta-metragem de 3 minutos, dirigida pelo francês Eugène Pirou, um filme onde a actriz Louise Willis se despe enquanto o marido espera por ela na cama. A seguir, em 1897, Après le Bal (curta-metragem de um minuto de Méliès) foi o primeiro filme onde apareceu um corpo feminino completamente nu.

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324 Bazin, André. Che cosa è il cinema? Milano: Garzanti, 1999: 136.

325 Para aprofundar aconselha-se a leitura de Bazin, André “O erotismo no cinema” in Xavier, Ismail (org.) A experiência do cinema. São Paulo: Brasiliense, 1985.

Après le Bal (1897)

Entre 1906 e 1910 foram rodados vários filmes eróticos por Johann Schwarzer, fotógrafo vienense, que intuiu que o cinema poderia ser um óptimo meio económico para se desfrutar do erotismo. Este criou a produtora Saturn e até 1910 realizou vários filmes com nus femininos que começaram a circular fora das fronteiras austríacas, conquistando os mercados europeu, norte-americano e japonês. As polémicas surgiram rapidamente e as películas foram quase todas destruídas.

Para o primeiro nu frontal masculino temos que esperar pelo ano de 1911, no filme italiano L’Inferno, de Giuseppe de Liguoro. Em 1915 foi exibido Inspiration, de Jorge Foster Platt, primeiro filme onde foi possível reconhecer a actriz (Audrey Munson) nua – um nu de inspiração renascentista. Em 1916, também a actriz Annette Kellerman se mostrou nua em Daughter of the Gods, do irlandês Herbert Brenon.

Audrey Munson em Inspiration Annette Kellerman em

Daughter of the Gods

Em 1919 foi exibido o primeiro filme homossexual, Anders als die Andern - Different from the others, de Richard Oswald, e em 1931 Mädchen in Uniform, de

Leontine Sagane. Outros filmes mudos de conotação erótica são Pandora’s Box (1929) de Georg Wilhelm Pabst e L’Atalante (1934) de Jean Vigo.

Anders als die Andern (1919) L’Atalante (1934)

A primeira visão de uma relação sexual só veio a acontecer no filme Ekstai, de Gustav Machat2, um filme checoslovaco de 1933, que foi censurado nos EUA devido a uma cena de nu de Hedy Lamarr na água e o primeiro plano do seu rosto durante um orgasmo: assim nasceu o Código Hays – estatuto de auto-censura da indústria para adequar os produtos à moralidade vigente, respeitando valores cristãos e reprimindo qualquer manifestação de cariz sexual, proibindo cenas de beijos, pessoas na cama e, naturalmente, os nus.

O código afirmava:

O argumento de um filme nunca deve aprovar a eutanásia nem justificar a vingança, pelo menos no que diz respeito à época contemporânea. A imagem não deve mostrar em pormenor assassínios brutais, e a técnica do crime de morte, sob a forma que se encontra descrita na literatura, que não pode ser imitada. O emprego das armas de fogo tem de ser reduzido ao essencial. A descrição das perversões sexuais, subentendidas ou não, é interdita. Nunca se mostrará o parto, nunca se pronunciará a palavra aborto. São igualmente proibidas as blasfémias intencionais e todas as afirmações irreverentes ou grosseiras. As cenas em que alguém se despe são de evitar, assim como a exposição de certas partes do corpo humano, entre as quais o umbigo. O adultério e todo o comportamento sexual ilícito, por vezes necessário à construção da intriga, não devem ser tratados explicitamente, nem justificados nem apresentados a uma luz atraente. Não se deve nunca ridicularizar qualquer fé religiosa, e os ministros do culto, no exercício das suas funções, jamais serão apresentados sob um aspecto crapuloso ou cómico.326

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326 Apud Leutrat, Paul; Jean Louis. Jeune cinéma américain. Lyon: Serdoc, 1967.! (http://oquilt.blogspot.pt/2011/03/os-filmes-do-codigo.html, último acesso Julho 2013)

O código foi elaborado por Martim Quigley (editor de jornais), pelo Reverendo Daniel A. Lord e por Will H. Hays (presidente da Motion Pictures) na Distributors of America Inc. A lei foi confirmada pela Associação dos Produtores de Cinema em 31 de Março de 1930, mas só entrou em vigor em 1933, através de um movimento liderado pela Liga de Decência Católica Romana nos EUA, com o intuito de corrigir Hollywood. No fundo, proibia cenas de sexo apresen-tadas de maneira imprópria, cenas românticas prolongadas e apaixonadas, a ridicularização de funcionários públicos, o retrato pejorativo ou cómico de religiosos, filmes com o tema da escravidão branca, o destaque do submundo, ofensas a crenças religiosas, referências a doenças venéreas, tornar atraentes os vícios, o jogo e a bebida, enfatizar a violência, o uso de drogas e nudez, a exibição detalhada de métodos de acção criminosa, o retrato de gestos e posturas vulgares e a alusão à miscigenação ou ao amor entre brancos e pretos.

Em Julho de 1934, a PCA (Production Code Administration) passou a supervisionar a execução do Código Hays. Os filmes que estivessem em concordância com os padrões morais recebiam um “Selo de Aprovação”, os recusados, pelo contrário, perderiam automaticamente os canais de distribuição da poderosa MPPDA, de Hays. A desobediência significaria uma multa de 25 mil dólares, um valor muito elevado para a época. Em 1950 encontramos os primeiros sinais de o código se ter tornado obsoleto. O primeiro a desafiar o Código Hays foi o excêntrico e problemático milionário Howard Hughes, ao produzir o filme O Proscrito. Alguns cineastas americanos, como Nicholas Ray e Elia Kazan, começaram a mostrar a sua ousadia, infringindo o código. Assim, esses tabus e edifícios morais foram desabando aos poucos, acompanhando as transformações e costumes da época. A sua extinção deu-se apenas em 1968, quando foi instituído o MPAA film rating system. Este código voltou a permitir, com alguns

limites, a presença de nudez nos filmes comerciais de sucesso, continuando ainda hoje a existir, criando classificações para filmes.

5.2 A arte do erotismo na trilogia monteiriana

Uma vez que acabámos de estruturar um quadro sintético do erotismo no cinema, analisaremos agora o erotismo na trilogia de Deus.

A cinematografia monteiriana está repleta de conotações eróticas. Elemento recorrente e de constante actualidade, o corpo feminino é um catalisador em contacto simbólico com a realidade, resultando num núcleo imprescindível dentro do espectro temático da cinematografia de Monteiro. Os filmes de Monteiro são, então, lugares que se prestam a ilustrar a especificidade de uma sexualidade feminina elevada à sacralidade.

Monteiro era um homem capaz de desprezar toda e qualquer regra, apresentando um atropelo ao dogma e ao comum sentido do pudor. Excêntrico, visionário, tentador, era também, e sobretudo, um homem de celulóide que deu uma dimensão física ao seu imaginário: dentro do seu enquadramento, tudo ou quase tudo lhe era consentido, até dançar no limite com os seus objectos de escândalo. A sua obra evidencia a sublimação do artista e foi a sua vida que inspirou a criação de João de Deus, seu alter-ego no ecrã. Nos seus filmes, o corpo feminino é exaltado quase como as Vénus de Willendorf, muitas vezes filmado à distância, lateralmente. Podemos mesmo dizer que nos seus filmes existe um considerável pudor na maneira de filmar e iluminar os corpos das jovens mulheres. Podemos também definir o corpo como dionisíaco, ou seja, um corpo erótico, em êxtase, transgressor. “É o que está nessa zona minada do desassossego, carente e desejante, em êxtase e angustiado, vigoroso e desgastado. (...) Segundo Freyre, o dionisíaco (romântico) e o apolíneo (clássico) podem se manifestar na sua forma pura ou mesclar-se” (De Carli, 2009: 135). Assim acontece na cinematografia monteriana.

Dionísio (3*45/06- ou 3*75/06-) é o deus grego da exuberância, da liberdade, das emoções descontroladas, da transgressão. Equivalente a Baco para os romanos, é o deus da embriaguez criativa. Nietzsche identifica no espírito de Dionísio a força

instintiva, a paixão sensual e um símbolo de uma humanidade em plena harmonia com a natureza. Na arte da tragédia Ática, ao lado do dionisíaco está o apolíneo, o deus Apolo (Ἀ8799:5), deus da perfeição, do equilíbrio e da razão. Como se lê em Homero, os primeiros dos atributos de Apolo foram o da morte súbita com suas flechas infalíveis, a vingança e a punição de violações da lei sagrada. Com o passar do tempo, o seu carácter primitivo tornou-se mais brando e ele foi transformado em profeta, mais ligado à esfera racional, à arte e à ordem social.

Na época de Platão, tornara-se já corrente uma visão de Apolo como a antítese de Dionísio. O que fazia a diferença entre um corpo erótico-apolíneo e um corpo erótico-dionisíaco era que “o primeiro constitui a visão do sonho, a tentativa de expressar o sentido das coisas na medida e na moderação, explicitando-se em figuras equilibradas e límpidas. O segundo representa a força instintiva, a saúde, a embriaguez criativa, a paixão sensual, é o símbolo de uma humanidade em plena harmonia com a natureza”327. O corpo erótico-dionisíaco, para além da carga erótica, acumula as características que Nietzsche e Freyre citaram sobre Dionísio, ou seja, a exuberância, o excesso, a licença de expressão nos comportamentos, a força instintiva, a saúde, a paixão sensual, a aceitação de um risco trágico que poderá advir do gozo de uma vivência intensa. As características dionisíacas desconsideram a moderação apolínea e exaltam os valores vitais, celebrando o sublime e até o descontrolado poder da natureza (De Carli, 2009: 141).

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327 Nietzsche apud De Carli, Ana Mery Sehbel. O corpo no cinema. Variações do feminino. Educs –

5.2.1 Recordações da Casa Amarela

Não sustento vícios. João de Deus328

Ao longo da trilogia, assistimos a uma aproximação do protagonista às jovens mulheres de diferentes formas. Em Recordações da Casa Amarela, João de Deus quase idolatra a mulher desejada espiando-a, como num rito purificador pagão – bebe a água do seu duche e, em êxtase, idolatra o pêlo púbico da sua rainha-sacerdotisa, encontrado naquelas águas (minutagem 11:35 – 13:21). Várias são as referências aos pêlos púbicos que Monteiro faz nos seus filmes (os “fios de Ariane” guardados no seu Livro dos Pensamentos em A Comédia de Deus).

O feiticismo (termo que deriva de “feitiço”), uma das formas mais comuns de perversão, é encontrado pela primeira vez noscontos dos viajantes portugueses do século XVI, onde se utilizava esta palavra para indicar os objectos sagrados de algumas tribos da África329. O primeiro autor a servir-se do termo “feiticismo” para indicar qualquer religião que tem por objecto de culto exclusivamente animais ou seres inanimados, sem a intervenção de imagens ou de outra forma de mediação simbólica,

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