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A “Viagem” do Exótico

“Não vivo atenazado pelo destino político de minha pátria, porém, pela precisão absoluta de me utilizar de mim mesmo, de exercer a minha vida, me preocupa enormemente o destino psicológico de minha nacionalidade.”

(Mário de Andrade, [1937] apud. Otávio 2006, 14)

“Protegida dessa fauna de pedra, a elite paulista, tal como as suas orquídeas prediletas, formava uma flora indolente e mais exótica do que imaginava.”

O OUTRO AQUI:

O ETERNO RETORNO DO EXÓTICO

―O que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate‖

Foucault (2000: 18)

Nesse capítulo trato de tematizar o exótico e sua relação com a imagética Pankararu. Procuro mostrar como o exótico que apareceu no capítulo anterior como um gênero no campo das artes se estende para outros campos, particularmente para a ciência, e no caso aqui tratado, para a etnologia e a museologia. Proponho que o exótico se instaura nesses campos devido à natureza dessa categoria que é a de transpor tempo e espaço, ou seja, o exótico não realiza apenas uma viagem geográfica, às vezes nem isso, mas fundamentalmente o exótico realiza uma viagem no tempo, um ato de tempo. É nesse sentido que o exótico se instaura no discurso ocidental associado ao colonialismo do século XIX e XX como constituindo a categoria de ouro que define o outro radical do ocidente, fundamentalmente o ―atrasado‖, quando não o ―primitivo‖. Nesse contexto, a categoria exótico existe para definir de uma forma geral o outro radical apreendido-capturado por alguma ―maquinaria‖ disciplinar (antropologia, etnografia, museologia, sociologia, comunicação social, mercado das artes, dispositivos de administração pública e outros), em suma, um modelo hegemônico do ―outro‖ (imagem, discurso, etc.) homogêneo.

O exótico, como uma categoria (analítica e formal), só pode se tornar efetiva se ―existir‖, se presentificar, aparecer concreta e simbolicamente ao se realizar no trabalho dos artistas (pintores, escritores, fotógrafos, cineastas) ou dos funcionários do estado (museólogos, etnógrafos, administradores). É a formula aventura- viagem e o que ela produz nas artes (literatura, fotografia, música) e como se produz nas disciplinas (etnologia, museologia, administração) através da rentabilidade dos seus objetos, tanto os virtuais (os relatórios, as descrições, as etnografias e outros), quanto os concretos (os objetos, a cultura material). O exótico, em suma, é aquilo que foi capturado nesses campos (artes e ciência) e pode virar um ―produto‖ que chega até nós. O

lugar mais valorizado para a visualização dessa captura está nos museus (objetos), nos escritores (etnógrafos, romancistas) e nos fotógrafos e cineastas (mídia, cinema, e outros). A viagem como um ato de tempo que realiza a categoria exótico apenas se institui ao ser o ―outro‖ aqui. Na sociologia desenvolvida por Simmel (2006, 45),

―Acima de tudo o significado prático do ser humano é determinado por meio da semelhança e da diferença. Seja como fato ou como tendência, a semelhança com os outros não tem menos importância que a diferença com relação aos demais; semelhança e diferença são, de múltiplas maneiras, os grandes princípios de todo desenvolvimento externo e interno. Desse modo, a história da cultura da humanidade deve ser apreendida pura e simplesmente como a história da luta e das tentativas de conciliação entre esses dois princípios‖.

A antropologia processual inglesa no seu maior expoente (Radcliffe-Brown, s/d, 12-4) propõe algo semelhante:

―Meu ponto de vista pessoal é que a realidade concreta que o antropólogo social está interessado em observar, descrever, comparar e classificar não é uma espécie de entidade, mas um processo, o processo da vida social. (...) neste caso cultura e tradição cultural são nomes para determinados aspectos identificáveis daquele processo, mas não, evidentemente, de todo o processo‖

Mais contemporaneamente em Art and Agency Alfred Gell (1998) defende um modelo teórico para o estudo de objetos de arte. Para esse autor uma Antropologia da Arte é ―as/como” uma Antropologia Social. Para Gell (1998: 03) a antropologia é uma ciência social e não uma ciência humana (humanity), ou seja, é uma ciência que se preocupa com as relações sociais e não avalia, julga ou aprecia tais relações, - ou melhor, o produto delas. A Antropologia da Arte enfoca o contexto social da produção artística, circulação e recepção, antes do que avalia tal produção artística, que é um objeto próprio dos críticos (ibid.). Embora seja possível reconhecer em outras culturas apreciações chamadas de estéticas, tal veneração do ocidente sobre estes objetos (arte) pode apenas revelar nosso modelo.

Estética é um conceito que apenas revela nosso modelo, ao mesmo tempo em que subestima outros modelos de produção e circulação de objetos. A Estética por isso não é objeto de uma antropologia da arte, o que é objeto de uma antropologia da arte é a produção e circulação de

―objetos‖. A Estética não é um parâmetro válido, pois não é um parâmetro universal (ibid.). O ―Subject-matter‖ da antropologia é ―social relationships‖ (ibid.: 04), onde pessoas/persons, ou agentes sociais, podem em certos contextos serem substituídos por objetos (art objects) (ibid.: 05).

Gell (ibid.) pergunta, ―art objects are sign-vehicles, conveying ‗meaning‘?‖ Sua resposta é a de que a arte não é uma linguagem, pois não é um código lingüístico e nem comunica significados. Se a arte tem

significado, somente o tem como parte da linguagem (i.e. sinais

gráficos), e não como uma linguagem visual distinta. Gell (ibid.: 06) evita o uso do termo ‗simbolic meaning‘, ao invés disso dá ênfase aos termos agency, intention, causation, result, e transformation. A arte é entendida como um sistema de ação, que tem como intenção a mudança,

mudar o mundo antes do que construir proposições sobre ele (ibid.)75. Assim, o argumento do texto do Gell é ―action-centred‖, ou seja, enfoca os objetos de arte como mediadores no processo social, em vez de interpretá-los como se eles fossem textos (ibid.). A definição de objetos

de arte usada não é institucional, nem estética, nem semiótica, ela é

teórica, entendendo assim que a natureza do objeto de arte é ―função da matriz de relações sociais nas quais ele está envolvido‖ (ibid.: 07).

Objetos de arte são equivalentes a pessoas/persons, são agentes

sociais. Uma teoria antropológica da arte não pode ser uma teoria que insista em categorias estéticas trans-culturais, nem numa semiótica. Esta teoria deve ser uma teoria como uma ―sociologia da arte”, ou melhor, ―uma sociologia das „instituições‟ artísticas‖, que enfoque a ―produção

artística, recepção e circulação‖ (ibid.). Gell toma como exemplo o

trabalho de Bourdieu que fez uma sociologia da arte enfocando as instituições nas grandes sociedades, as chamadas ―mass societies‖, através da noção de habitus como ―resíduo sedimentado da interação social já realizada que estrutura as próximas relações‖ (ibid.). Tal noção aponta para a ―exterioridade da mente como rotina, práticas, form of

life‖ e exige uma sociologia, pois o objeto desta é ―externalista‖, já que

as instituições sociais e culturais são externas, interativas, processuais, realidades históricas, não estados mentais (ibid.: 127).

Para Gell este é um ―momento experimental na construção de uma teoria antropológica da arte‖. Esta teoria antropológica da arte contextualiza o comportamento (behaviour) não na cultura (que é uma abstração), mas na dinâmica da interação social, que não é

75 ―Criar não é tarefa do artista. Sua tarefa é mudar o valor das coisas‖ (Yoko Ono apud Oiticica, 1972).

imediatamente condicionada pela cultura, mas sim por processos reais, ou dialéticos, no tempo. Esta antropologia é uma antropologia que enfoca os agentes sociais, foca o ato (act) no contexto da vida (―stage of life‖) do agente. Há para Gell a inevitável necessidade de ver tais relações entre os agentes na perspectiva do tempo, dentro de ciclos de

vida. As relações sociais são partes de contextos biográficos, as relações

antropológicas têm conseqüências na vida das pessoas, elas se articulam a ―projetos pessoais‖ (ibid.: 10). O objetivo de uma teoria antropológica da arte é, finalmente, dar conta da produção e circulação de objetos de

arte em função de seu contexto relacional (ibid.: 11).

Portanto, a viagem no tempo que fazem os Pankararu da SOS- CIP com a performance dança dos praiás não é propriamente uma ―viagem ao passado‖, muito pelo contrario, é uma viagem pelo tempo, ou seja, é um ato de tempo que submete sua linearidade ao campo do virtual. No começo do século os Pankararu foram ―descobertos‖ por equipes de pesquisadores interessados em constituir acervos de cultura material e de sons e imagens de rituais indígenas e folclóricos no espírito da época que se preocupava com o ―desaparecimento‖ dessas tradições.

O que foi considerado como elemento de cultura autêntica entre os Pankararu é ainda hoje paradigma dessa autenticidade, objeto etnografável pelos modelos antropológicos da época e objetificável pelos modelos museológicos: o praiá se tornou o paradigma da indianidade dos Pankararu. Como diz Foucault (2009), sem um discurso que o produza um elemento do ―real‖ não tem condições de funcionar. Esse mesmo autor, em Historia da Sexualidade, volume I, diz que o fato do ―sexo‖ ter sido objeto de discursos libertadores não deixou, mas pelo contrário, passou a ser normatizado através das disciplinas que formalizaram sua ―materialidade‖, onde o ―sexo‖ parecia ser libertado, a

positividade do poder captura-o para descrever-lhe, ao descrevê-lo

―inventava-o‖, ao ―inventá-lo‖ postula suas regras e normas de existir no mundo.

O exótico, como um ato de tempo, é uma criação, um discurso, um projeto estético-político que deve ser contextualizado a fim de não ser reificado. Esse capítulo pretende questionar a hegemonia do ―praiá‖ no regime imagético Pankararu ao propor que tal elemento aparece no contexto do modernismo dos anos 1930 e do nacionalismo regionalista com a adoção de políticas para a constituição de patrimônio (cultura material) típico, exclusivo do Brasil, momento que coincide com o ―ressurgimento‖ dos Pankararu como um grupo etnicamente

diferenciado no quadro administrativo do governo federal. Nesse contexto os estigmas-ausências da ―cara de índio‖ e da ―língua de índio‖ são ―redimidos‖ pela dança dos praiás.

O MODELO FRANCÊS:

MUSEU, ETNOGRAFIA E O EXÓTICO DECEPCIONANTE A autenticidade é um valor moderno, e o tradicionalismo é uma de suas vertentes. A noção de que o passado esta ―se perdendo‖ e deve ser, de alguma forma, ―preservado‖ é o sintoma de uma mudança histórica e social pela qual a modernidade tem uma de suas características, onde o colonialismo aparece como ―mal necessário‖ e positividade do poder na produção de registros administrativos, etnográficos, museológicos e outros. Desse modo, como ficará mais evidente nos tópicos seguintes, apresento aqui o padrão francês de museologia e de etnografia que se tornou o modelo tomado pelos pesquisadores e funcionários do governo brasileiro para o registro e a constituição de ―patrimônio cultural nacional‖.

Assim, a forma como o praiá Pankararu surge como tradição a ser preservada em museu (descoberto, registrado em áudio e imagem, descrito, catalogado, adquirido e por fim arquivado) se encontra no contexto desse modelo francês de constituição de patrimônio e registro onde a etnografia é um dos suportes científicos. Isso aconteceu porque o campo da etnografia e da museologia brasileiros nos anos 1930 estava fortemente influenciado pelos franceses, principalmente pelos modernistas paulistas na recém fundada Universidade de São Paulo (USP) onde se encontrava uma comitiva francesa. Nesse mesmo espírito, essa aliança intelectual fundou em parceria a Sociedade de Etnografia e Folclore cujos ―patriarcas‖ foram Mário de Andrade e o casal Dina e Lévi-Strauss.

Desse modo, proponho que a etnohistória da dança dos praiás deva ser analisada através de uma arqueologia (Foucault) do regime imagético Pankararu onde o objeto-museu praiá é hegemônico. Essa arqueologia começa no ―lugar‖ em que se produziram as principais questões relacionadas ao imaginário sobre os povos ―colonizados‖ no começo do século XX que influenciaram o contexto do colonialismo interno no Brasil.

―a atração pelo exótico não apenas se mantém na passagem do [século] XIX para o XX, como ganha novo fôlego. O exílio em terras distantes foi o caminho escolhido por inúmeros europeus, artistas em geral, numa tentativa de descoberta de outros povos e culturas, o que possibilitava a reavaliação do próprio ser europeu. Mas se o exílio e as viagens isoladas de pintores e literatos significam um alargamento de horizontes para a Europa, não foram as únicas. A ciência – a antropologia principalmente – colocava-se como um acesso seguro para o conhecimento de novos povos e culturas‖

Como é de conhecimento no meio antropológico, até o final da primeira década do século XX a etnografia e a pesquisa de campo não eram uma grande tradição na França.76 Foi em Paris, em 1925, que Paul Rivet, Lucien Lévy-Bruhl e Marcel Mauss criaram o ―Institut d‘Etnologie‖, onde, pela primeira vez na França passou a existir ―uma organização cuja preocupação principal é o treinamento de pesquisadores de campo profissionais e a publicação de estudos etnográficos‖ Clifford (2002: 138). Paul Rivet compreendia perfeitamente que ―a criação de instituições de pesquisa antropológica requeria uma onda de entusiasmo por coisas exóticas. Tal moda podia ser explorada financeiramente e canalizada no interesse da ciência e da educação do público‖ (ibid.: 145). Georges-Henri Riviére, ―que se tornaria o mais vigoroso museólogo etnográfico francês‖, foi contratado por Rivet para ―reorganizar o Trocadéro, cujas coleções estavam maltratadas e em total estado de desorganização e abandono‖ (ibid.). Esse trabalho e amizade resultou na criação do Musée de l‘Homme, e no Musée dês Arts et dês Traditions Populaires de Rivière (ibid.).

Rivet ―proporcionou o apoio institucional que, juntamente com os ensinamentos de Mauss, formaram o centro para uma emergente tradição de trabalho de campo. Para a maioria desses pesquisadores, a conexão entre arte e etnografia era crucial‖ (ibid.: 159). Assim, a outra força poderosa do projeto foi Marcel Mauss. Na década de 1930, Mauss treinou ―um seleto grupo, em grupo de devotos, alguns deles amantes do exótico, então em moda, outros, etnógrafos que se preparavam para ir

76 Tal fato é mesmo ressaltado pelo pai da antropologia francesa Marcel Mauss que lembra a falta de apoio governamental para tal (Motta, 2006: 261). ―O gosto e a sedução pela especulação, o intelectualismo, a ausência de um verdadeiro método etnográfico e um certo descaso pelo empírico são alguns elementos que constituem uma espécie de clichê já firmado quando se pretende explicar os motivos pelos quais a pesquisa de campo na franca não chegou historicamente a lograr um status reconhecidamente importante‖ (Motta, 2006: 262-3).

para campo (alguns dos primeiros em vias de se transformarem nos segundos)‖ (ibid.: 139-40).

No Musee de l‘Homme ―o homem total de Mauss seria pela primeira vez composto para a edificação do público. Também para a instrução do cientista, o Musee de l‘Homme conteria extensos laboratórios de pesquisa e coleções cientificas‖ (ibid.: 159). Inaugurado em junho de 1938, o Musee de l‘Homme foi concebido como parte da Exposição Internacional de 1937, ―um símbolo dos ideais da Frente Popular‖ (ibid.). O Musee de l‘Homme foi pensado para substituir o Museu de Etnografia do Trocadéro. Durante a década de 20 esse museu se ―apoiava na onda de entusiasmo pela art négre, (...) o termo négre podia abranger o moderno jazz americano, as mascaras tribais africanas, o ritual do vodu, as esculturas da Oceania, e ate mesmo artefatos pré- colombianos‖ (ibid.: 157).

O termo négre tinha ―alcançado as proporções do que Edward Said chamou de ‗orientalismo‘ – uma bem articulada representação coletiva expressando um mundo geográfica e historicamente vago, mas, em termos simbólicos, nitidamente exótico‖, (ibid.). A noção de ‗fetiche‘ africano nos aos 1920:

―descrevia não uma modalidade de crença africana, mas sim o modo pelo qual artefatos exóticos eram consumidos pelos aficionados europeus. Uma máscara ou uma estátua ou qualquer traço de cultura negra podia efetivamente resumir um mundo de sonhos e possibilidades – apaixonado, rítmico, concreto, místico, incontido: ‗África‘.‖ (ibid.).

Assim, ―esse interesse pela África tinha se tornado um exotisme no sentido pleno do termo. O público e os museus estavam ansiosos por mais aquela mercadoria estetizada‖ (ibid.).

Em 31 de março de 1931, o Parlamento Francês aprovou uma lei especial criando a Missão Dakar-Djibouti, ―a primeira tentativa de pesquisa etnográfica sistemática, apoiada e financiada pelo governo, realizada por franceses em contexto exótico‖ (Motta, 2006: 263). A Missão ―além de lançar, a longo prazo, um programa de pesquisas etnográficas, previa a constituição de um acervo para o Museu de Etnografia do Trocadéro, posteriormente denominado Musée de

l‟Homme.‖ (Motta, 2006;263). E, segundo Clifford (2002; 157), a

―tarefa principal e oficial era enriquecer as coleções da nação. A Missão Dakar-Djibouti satisfez essa demanda; trouxe dados que podiam ser contados e mostrados‖.

Além de verba pública, a Missão contou com o apoio da iniciativa privada (empresariado) e de mecenas das artes (ibid.: 156). A expedição, dirigida por Marcel Griaule, partiu da França no dia 19 de maio de 1931 e retornou no dia 16 de fevereiro de 1933. Assim, segundo Clifford (2002: 157):

―Os etnógrafos partiram em 1931 com uma estética estruturada na cabeça, uma visão da áfrica e uma certa concepção (essencialmente fetichista) de como ‗ela‘ deveria ser coletada e representada. Eles não viajaram, ao modo dos pesquisadores de campo ingleses e americanos da época, com o propósito de experienciar e interpretar totalidades culturais distintas‖

A Missão privilegiou, ―antes de tudo, a coleta de objetos etnográficos que deveriam complementar e preencher as lacunas das coleções africanas do Museu de Etnografia.‖ (Motta, 2006: 264). O mais interessante é que o programa do projeto previa ―que as formações de coleções não poderiam ser conduzidas pela escolha arbitraria dos pesquisadores, norteada apenas por suas idiossincrasias momentâneas ou emoções estéticas.‖ (ibid.). Para isso,

―o material coletado deveria ser rigorosamente classificado, sem perder de vista a sua funcionalidade, a qualidade das técnicas de fabricação, formas, dinâmicas e representações. Visto dessa perspectiva, o objeto etnográfico deveria ser ‗deshierarquizado‘, isto é, contemplado não em função de seu valor estético ou da raridade que eventualmente pudesse possuir e comunicar, mas antes em função da sua representatividade e do seu valor enquanto testemunho e expressão de uma determinada cultura‖ (ibid.).

Rivet e Riviere publicaram no segundo número da revista surrealista Minotaure (1933), o resultado da Missão:

―3.500 ‗objetos etnográficos‘ foram coletados, juntamente com 6 mil fotografias, uma grande coleção de pinturas abissínias, 300 manuscritos e amuletos, anotações em 30 linguas e dialetos, e centenas de registros, ‗observações etnográficas‘, espécimes de plantas e etc. este ‗butim‘ da expedição, nas palavras de Rivet e Rivière, era a expressão publica de uma missão bem sucedida.‖ Clifford (2002: 176).

Como lembra Clifford (ibid.), ―Barthes (1957:140) disseca a palavra missão; chama-a de um ‗termo mana‘ imperial, que pode ser

aplicado a qualquer empreendimento colonial, dando-lhe uma aura redentora e heróica‖. Michel Leiris que integrou essa Missão e posteriormente foi funcionário, por três décadas, do Musée de l‘Homme, ―refletiu sobre o paradoxo de um museu dedicado as artes da vida. O perigo, escreveu, era que, ‗a serviço daquelas duas abstrações chamadas arte e ciência, tudo aquilo que é fermentação vital‘ seja ‗sistematicamente excluído‘‖ (Clifford, 2002: 165).

A arte, ―agora uma essência universal, é exposta e aprovada por um bom senso idealista e confiante‖ (ibid.). Uma humanidade:

―completa e estável é confirmada. Tal totalidade pressupõe uma omissão, a excluída fonte de projeção. O que não estava exposto no Musee de l`Homme era o Ocidente moderno, sua arte, suas instituições e técnicas. Assim, as ordens do Ocidente estavam presentes em toda parte no Musée de l‘Homme, exceto nas exposições. (...) a identidade entre o Ocidente e seu ‗humanismo‘ nunca foi exibida ou analisada, nunca foi assunto em pauta‖ (ibid.; 166).

Quanto vale esse material? É possível calcular seu valor econômico, simbólico, político ou científico? Clifford (ibid.: 158) escreveu que:

―o processo de pesquisa que começou com a Missão Dakar- Djibouti produziu uma das mais completas descrições de um grupo tribal (os dogon e seus vizinhos) jamais registrada. Ainda assim, como assinala Mary Douglas (1967), o quadro esta curiosamente ‗distorcido‘. (...) a extraordinária beleza e poder conceitual da sabedoria dogon, conhecida em toda a sua amplitude apenas por um pequeno grupo de pessoas mais velhas, nunca satisfaz a incomoda pergunta: como são realmente os dogon?‖

E quem são e o que pretendem os etnógrafos ao ir para campo? Peixoto (2006: 288) escreveu que Lévi-Strauss e Michel Leiris ―tematizam a viagem como traço inseparável da experiência etnográfica em obras de perfis distintos‖. Lévi-Strauss, através de seu livro Tristes

Trópicos, e Leiris com o seu A África Fantasma. Nessas obras estão

presentes ―elementos preciosos para que pensemos a viagem como experiência constitutiva (e instituinte) do trabalho antropológico: a viagem sonhada (como aventura) e a viagem vivida (como decepção), (...) como dialogo com o imaginário construído sobre os povos ‗exóticos‘ e sobre o viajante‖ (Peixoto 2006: 288).

Concordo com Peixoto (2006: 289) e sigo seu trabalho que se situa na perspectiva de que:

―a riqueza do cotejo das duas narrativas reside também na possibilidade de compreensão do processo de formação do etnólogo na França dos anos 1930, quando se realizam as primeiras grandes

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