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II. Uma leitura de Toada do Esquecido

II.6. Tempo

A simples consideração do tempo da história é suficiente para nos mostrar a complexidade dessa categoria em Toada do Esquecido. De facto, se vamos tendo indicações sobre a sucessão dos dias — a partir da referência ao apare- cimento da noite e da notícia das mortes que, com uma única excepção, a acompanham —, nem por isso o tempo cronológico, histórico, é indicado com precisão. As próprias personagens o reconhecem, manifestando algum descon- forto com a situação. Vejamos um exemplo relativo a Zabud:

(...) já não sei há quanto tempo estamos aqui viajando, o tempo se perdeu atrás duma cortina de semanas, talvez meses, os dias se foram, para onde foram? (15)

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Zabud / Gepetto, não há certezas e o próprio rádio raramente dá a resposta:

— Às vezes ele não dá não, você pode esperar quanto qui- ser... Nem o dia, nem o mês, nem o ano, nem a hora... É como o enigma do começo do mundo... (...) (15-6).

Fica assim a impressão de que as personagens estão fora do tempo, como aliás as suas máscaras e a situação que as envolve já sugeriam. O leitor pode contudo recorrer ao processo de datação interpretativa, inferindo “(...) a locali- zação temporal pelo cotejo de índices temporais explicitados e sintagmas tem- porais subordinados àqueles.”14.

A primeira indicação explícita relativa ao tempo cronológico aponta para o Carnaval e ocorre num monólogo interior de Zabud: “(...) para que foi haver aquele maldito Carnaval lá no garimpo O Esquecido?” (14). Percebe-se que o Carnaval passou — ou, pelo menos, o (um) baile de Carnaval —, embora fiquemos sem saber quantos dias decorreram entretanto. A mesma dúvida é sentida pelas personagens, como podemos ver por esta intervenção do Cava- leiro, já próximo do fim:

— O Carnaval começou quando e quando acabou? — pergun- ta o Cavaleiro, mas ninguém responde, estão todos talvez dormin- do. (112)

Paralelamente, há uma série de indicações historico-sociais que nos permi- tem situar a narrativa nos anos 80 do século XX. A primeira delas diz respeito à

14 CristinadaCosta Vieira,A ConstruçãodaPersonagem Romanesca, Lisboa, Colibri, 2008,

prática do garimpo no rio Madeira, em Rondónia, estado vizinho de Mato Gros- so. Essa região viveu de facto uma verdadeira corrida ao ouro nessa década, recebendo um enorme contingente populacional que trabalhava em condições rudimentares e muito perigosas, originando assim um grande número de aci- dentes mortais. No auge do período do ouro, era também frequente o assassi- nato de mergulhadores, na disputa pelos pontos de extracção: a mangueira de respiração era cortada e o trabalhador morria no fundo do rio. Esta situação dramática é aliás denunciada pelo Cavaleiro numa passagem já citada (33).

O que as personagens ouvem na rádio — apesar do seu escasso interesse em tudo que não seja música — permite-nos perceber que ainda estamos no contexto da Guerra Fria, o que aliás merece uma contundente observação iró- nica do Cavaleiro:

Por que será que são facilmente identificáveis à primeira vista os locutores das emissoras seja qual seja a língua além da Cortina de Ferro? (92)

Um elemento de datação mais preciso é a moeda:

— Sim, um pedaço de ouro, do saco de Elpenor… Não fará falta. Umas dez gramas. Coisa de quarenta mil cruzados, preço de um porco. (64)

O Cruzado vigorou no Brasil entre 1986 e 1989, ano em que foi substituído pelo Cruzado Novo. A referência a jogadores do Real Madrid, particularmente a Michel (65-6), confirma genericamente essa datação, mas há outras notícias que, apesar de entrecortadas, ajudam também a situar a história num tempo

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cronológico mais determinado. Uma delas é facilmente identificada pelo leitor português que viveu essa época:

(...) aquele português da Voz da América sempre falando da Namí- bia e de Angola (...) (81).

Embora a Voz da América fosse pouco ouvida em Portugal, um dos seus jornalistas, Mário Mania — entretanto falecido, vítima de suicídio — colaborava com frequência nos noticiários da Antena 1. Nessa altura, isto é, no final dos anos 80, o tema principal das suas peças era o fim da guerra na Namíbia e as suas consequências na estabilização de Angola. Foi em 1988 que o governo da África do Sul acedeu a pôr fim à sua administração do território, de acordo com um plano de paz da ONU, o que levou ao fim das actividades de guerrilha da SWAPO, liderada por Sam Nujoma, que seria depois o primeiro presidente do novo país.

Já temos portanto um ano, 1988, e, com alguma paciência, podemos che- gar a datas mais precisas ainda. Trata-se de verificar o dia em que ocorreram acontecimentos noticiados no rádio, como a entrega do título de Doutor hono-

ris causa ao rei Juan Carlos de Espanha (71), cerimónia realizada a 5 de Maio de

1988. Pode ser também um acontecimento tauromáquico:

(...) na Espanha, o locutor de El Rey dos Cavaleiros mortos fala de um toureiro, um tal de Antonio Gonzalez, que está à morte desde domingo (e quando foi domingo?), ferido por um touro ferocíssi- mo, na carótida e na jugular, seu estado é gravíssimo... (125).

Antonio González, “El Campeño”, atingido com uma cornada no pescoço pelo quarto touro da décima corrida da Feira de San Isidro, a 22 de Maio de 1988, na praça de Las Ventas, em Madrid. Depois de nove dias em estado de coma, aca- baria por falecer.15

Este conjunto de elementos tem um importante efeito de verosimilhança, mostrando que a história — apesar de as personagens se sentirem perdidas e estarem de certo modo fora do tempo — decorre num tempo cronológico determinado. A identificação de datas concretas, mais do que confirmar a habi- tual não coincidência entre tempo do discurso e tempo da história, corrige a impressão de uma rapidez em que poderíamos ver contornos simbólicos, mas que não é real: a de que o essencial da acção se joga em sete dias, ocorrendo as seis mortes ao longo de uma semana, com um dia de pausa a meio, numa espé- cie de génesis invertido. Ora, a distância que separa o Carnaval (que nesse ano ocorreu a 16 de Fevereiro) do doutoramento honoris causa do rei de Espanha (5 de Maio) e a distância deste último face à colhida de “El Campeño” (22 de Maio) mostram que o narrador de Toada do Esquecido aplica ao tempo do dis- curso modalidades como a elipse ou o sumário, sem que o leitor disso se aper- ceba sempre. O recurso à narração simultânea cria, desse ponto de vista, uma ilusão: é certo que a história está a ser contada enquanto decorre, mas — como já tínhamos visto atrás — com alterações da ordem e com cortes. Note-se aliás que esta ilusão de sucessividade parece ser partilhada pelas per- sonagens, pelo menos pelo Cavaleiro. Veja-se a seguinte passagem, em que ele é alvo da focalização interna do narrador:

15 Fonte: http://www.elpais.com/articulo/cultura/banderillero/Campeno/fallece/dias/coma/

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Esta noite que passou foi a única em que não houve nenhum mor- to. Porque será? (119)

Embora pareçam alheadas do tempo cronológico, há sinais de que as per- sonagens podem viver o tempo de uma maneira intensa. No caso do Cavaleiro, a experiência pode dar lugar a reflexões de tipo mais filosófico:

(...) todas iguais no fino cristal do tempo, no vertiginoso prisma do tempo que não engana a ninguém e que também a ninguém per- doa (...) (14);

ou pode traduzir-se em sinais de um tempo psicológico marcado pela angústia da espera. É o que acontece quando Palinuro vai a uma povoação próxima comprar combustível e comida:

— Que horas são, mestre Gepetto? Mas mestre Gepetto já dorme. (61);

Precisa urgentemente saber as horas. Que horas serão? (61);

Duas horas para ir-se bem aí atrás dessa mata e desse rio, que daqui quase até dá para se enxergar as luzes de A Moringa, essa aldeiazinha desconhecida, e o homem ainda não veio. (62).

Mais à frente, esperando o regresso de Zabud, que fora tentar arranjar uma alternativa de transporte à kombi, o narrador volta a dar conta do modo como o Cavaleiro sente a passagem do tempo:

As horas vão passando pelo dial do rádio, tortas, frias, lentas (...) (121).

Esta imagem sinestésica ilustra com precisão aquilo que está em causa em

Toada do Esquecido: o tempo exterior, cronológico deixou de ter importância e

de fazer sentido, substituído que foi pela sua vivência psicológica, marcada por uma contagem regressiva que indica a aproximação da morte.

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