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A temporalidade como facticidade e o “ciclo infernal de meios e fins”: as técnicas de apreensão da realidade e o para-si como totalidade destotalizada

A “INSTRUMENTALIDADE DO MUNDO” E A BUSCA PELA SUPREMACIA DO COGITO

2. A temporalidade como facticidade e o “ciclo infernal de meios e fins”: as técnicas de apreensão da realidade e o para-si como totalidade destotalizada

Sendo o indivíduo um ser social, o “vivido” dar-se-á por um conjunto de escolhas e

482 Cf. CRD, p. 184. 483 S, X, p. 176.

decisões (engajamento) a partir do enfrentamento inevitável das estruturas do entorno: é a temporalidade manifestando-se como facticidade sob o pano de fundo da relação consciência-objeto (passado, mundo, Outro) enquanto irredutível “escolha de ser”. Esta “escolha” se faz possível em e a partir da realidade antropomorfizada, ou seja, mediada pelas estruturas alienantes da sociedade e mergulhada na pluralidade de sistemas significantes (designando um “modo de ser” e um “modo de agir” – como no caso das técnicas coletivas de apreensão da realidade). Mas o indivíduo é ser-no-meio-de-um-em-si- de-indiferença e só há “significado” por um “significante” que é ação, transcendência e criação. Segue-se daí os exemplos da “linguagem” e da “sexualidade”, no caso, compreendidos como situação (é o homem como “produto” das estruturas na mesma medida em que as supera). Com isso, pretende-se mostrar que o fenômeno humano somente se sustenta por uma perpétua contingência e a partir das estruturas universais da realidade. É o mundo (coletivizado, humanizado, instrumentalizado) como oportunidade única e pessoal da produção (concreta) de si: a humanidade é uma aventura individual enquanto que o indivíduo se faz “presença a si” pela mediação dos traços do universal.

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A

facticidade é um “inteiramente vivido” por meio de um conjunto de decisões e enfrentamentos de fatos. No passado, ela pode ser compreendida como a totalidade de fatos irreversíveis (o passado como em-si) que traz consigo compromissos e engajamentos (“modos de viver”) dotados de significado e sentido que condicionam o exercício da liberdade atual. O presente carrega “resíduos” de livres decisões anteriores que “pesam” sobre o sujeito. “Mas, longe de ser esse resíduo originalmente um limite da liberdade, é, graças a ele – isto é, graças ao em-si bruto, enquanto tal – que ela surge como liberdade.”484 A própria temporalidade, a partir deste contexto, entra como facticidade, pois o passado apresenta-se enquanto tal diante de um futuro que é apreendido como projeto ou como enfrentamento (atividade, praxis, ato criativo) por meio da liberdade. A cada fato o indivíduo assume a totalidade de seus vividos visando um fim qualquer e, ao mesmo tempo, cria seu projeto, produz-se a si mesmo e (re)apropria-se da totalidade de seu vivido passado.

Todo projeto é compreensível e realizável a partir de uma estrutura fundamental que inclui tanto a escolha de um modo de ser-no-mundo (movimento de (re)exteriorização)

quanto a edificação da imagem de si que é produzida (movimento de interiorização, homem-sujeito): o projeto se opera sobre cada uma de suas escolhas concretas. O sentido e o significado dos vividos (passados) são iluminados pelo projeto (definido por um fim) que é “sempre o esboço de uma solução ao problema do ser.”485

O mundo é a imagem de uma “escolha de ser”, a imagem daquilo o que o sujeito se faz ser e, sendo assim, seu projeto é uma resposta criada diante da exigência de um modo de ser e expressa a maneira pela qual ele se relaciona com o em-si e com sua própria facticidade (relação objetal). Se a emoção, por exemplo, é um modo pelo qual a consciência manifesta sua relação com o mundo, ela “manifesta certamente a facticidade da existência humana.”486

Um sujeito qualquer, por exemplo, diante de um compromisso social (uma reunião, uma apresentação, uma defesa de tese) reage com excessiva ansiedade (podendo apresentar sudorese, taquicardia, náusea, excitação, dificuldade respiratória, tremor, calafrio, vertigem, cólica) que, por sua vez, apresenta-se como manifestação corporal de ordem psíquica. A percepção e a apreensão que este sujeito constrói de si, na perspectiva existencial, pode derivar de uma “degradação da liberdade” por identificar seu projeto de si com a imagem de um em-si passado e de experiências (cristalizadas) vivenciadas na infância: “ele viveu a história a partir de uma infância, constituindo-a como portadora de um destino já esboçado”.487 Tal alienação – em que o passado adquire força e poder “independentes” do sujeito – sustenta-se, por exemplo, pela conservação e repetição de uma significação vivenciada na infância. É como se houvesse uma fixação (conservação) repetitiva da criança, apreendida como impotente, diante de forças externas superiores (como na presença da autoridade paterna ou materna). “Cada um pode observar em sua infância a aparição fortuita e perturbadora da consciência de si”488 na própria aventura da experiência da alteridade, da existência do outro. Mas o indivíduo “fascinado” por determinadas experiências de seu passado poderá abandonar (transcender) sua fixação e ressignificar todo o universo simbólico que a sustenta para enfrentar o futuro pelo esforço constante de um projeto autêntico de si.

Dotar o sujeito de caráter e por ele coisificá-lo (torná-lo inessencial diante da 484 EN, p. 527. 485 EN, p. 507. 486 ETE, p. 66. 487 IF, III [1972], p. 343. 488 Baudelaire, p. 20.

essencialidade de uma ἕξις), implica na negação da gratuidade e do absurdo de sua existência. Outros três exemplos de conduta poderiam ser interpretados à luz do existencialismo: 1) o sadismo, quando o sujeito é reduzido, pela violência, à carne inerte ou a um objeto que docilmente se submete aos desejos do outro; 2) o masoquismo, em que o sujeito se oferece como objeto – passivo – diante do desejo do outro e 3) a experiência (angustiante) do olhar, da produção e da percepção do ser-para-outro de um indivíduo – ou de seu ser-no-meio-do-mundo-para-o-outro.489 A angústia se dá na medida em que o olhar do outro é sempre ameaçador (por exemplo, punitivo, castrador), significação esta em que é preciso, como dito anteriormente, romper com uma fixação passada. No sadismo e no masoquismo trata-se de realizar o projeto de unificar liberdades e romper com qualquer tipo de dualidade: é o desejo de possuir o corpo e a consciência do outro490 (como a aranha, que envolve a presa em sua teia para depois absorvê-la por completo). Em resumo,

Como primeira tentação – libertadora de nossa angústia – aparece-nos a possível coisificação redutora. O existente, segundo nos mostrou Sartre, pode intentar reduzir o outro à natureza de coisa que ele pode manejar. Opostamente, pode intentar metamorfosear-se em coisa que o outro pode manejar.491

Para que se compreenda essa relação objetal enquanto “escolha de ser”, é preciso ter em mente a ideia de que o objeto recebe do sujeito significado, sentido e valor dentro do campo de seus vividos e à luz de seu projeto, fazendo com que uma realidade inerte torne- se “humanizada”: “entre o objeto e eu já deslizou uma transcendência humana que guia a minha transcendência; o objeto já está humanizado, significa o ‘reino humano’.”492

No entanto, há algo que surge diante do sujeito que vai além dessa relação de instrumentalização (além das coisas manejadas instrumentalmente) do mundo: o Outro. Há, neste momento, o irromper de uma nova realidade que não se reduz à simples objeto ou instrumento inerte. O homem mergulha em uma nova situação: a do olhar. Não apenas o mundo e as coisas (inertes) revelam a dimensão da liberdade ao ser existente, mas também a presença de outras consciências (livres). No fenômeno do olhar vivencia-se uma nova

489 EN, p. 305. 490 Cf. EN, p. 306. 491

MARTIN-SANTOS, Luis. Libertad, temporalidad y transferência en El psicoanalisis existencial: para una fenomenologia de la cura psicoanalítica. Barcelona: Editorial Seix Barral, S.A., 1964, p.149.

dinâmica: o ato de objetivar e ser objetivado. Não se pode captar o outro do mesmo modo que se apreende uma mesa ou uma bola de bilhar: a existência de outra subjetividade traz ao mundo ações imprevisíveis. “Com o olhar do outro a ‘situação’ me escapa ou, para usar uma expressão banal, mas que traduz bem nosso pensamento: eu não sou mais o mestre da situação”493

e essa existência se dá em meio a uma realidade historicamente estruturada. É neste aspecto que a existência humana se manifesta como ser-no-meio-do mundo produzindo-se em e a partir do peso das relações objetais que fundamenta e estrutura um entorno – afinal, “viver é agir e submeter-se”.494 Todavia, mantém-se a perspectiva de que este sujeito oprimido pelas estruturas alienantes da realidade humanizada encontra-se diante de uma liberdade que “só pode ser oprimida se, por qualquer lado, se prestar a isso, isto é, se, para o *olhar do+ Outro, ela apresenta os exteriores de uma coisa.”495

Assim, o sujeito que vivencia concretamente as opressões e as proibições do meio sobre si (pelo seu corpo, a partir de seus gestos, em sua carne, em suas vísceras) não pode tolerar mais as justificativas de sua situação a partir de ideias abstratas (um materialismo mecanicista, um Idealismo ou um determinismo biológico) – o que implicaria em dissolvê-lo na Ideia (conceito, termo, verdade).

Ora, não há como fundamentar um fato simplesmente por uma essência a priori (por uma estrutura qualquer) que seguiria Leis Universais que invalidariam o vivido concreto em nome de Verdades a-históricas que proporcionariam um discurso seguro e estável acerca da relação do homem consigo, com o outro e com o mundo. Ao contrário, a partir de seu nascimento e mergulhado em uma sociedade estruturada, “o homem deve ter a contingência do fato e, entretanto, diferir do fato por seu poder prático de preparar o futuro e, consequentemente, de transcender o presente, de se deslocar de sua situação.”496

Afinal, “nascer em situação” é estar mergulhado em uma pluralidade de sistemas significantes (leis, linguagem, símbolos, estruturas de poder, Escola, Estado, Família, Economia). Há uma variedade de sistemas significantes que remetem a uma pluralidade de consciências e, “a aparição do outro faz surgir na situação um aspecto que eu não desejei, do qual não sou o

493 EN, p. 304. 494 CRD, p. 134. 495 S, III, p. 218.

496 S, III, p. 218. Entenda-se aqui o “poder prático” não como fuga do mundo (uma espécie de fuga solipsista),

mas como um modo de indicar um sujeito que se lança no mundo, nele engajando-se e comprometendo-se a partir de suas escolhas e ações (seus empreendimentos) e à luz de seus projetos.

mestre e que me escapa por princípio, já que é para o outro.”497

As diversas significações pelas quais o sujeito se depara são objetivas e fazem parte da estrutura organizacional da realidade concreta: “existe, de fato, outra coisa em ‘meu’ mundo além de uma pluralidade de significações possíveis; existem significações objetivas que se dão a mim como não criadas por mim.”498

Estar ou nascer em situação é o mesmo que encontrar-se engajado em um mundo significado e significante que coloca o sujeito frente a frente de significações que não são, necessariamente, as suas ou não determinadas por ele. Ao conferir significação (revelando o ser) no mundo, não apenas qualifica-se a existência de algo como um “isto” ou um “há um isto”, mas também significa-se algo posicionando-o como objeto dotado de valor e sentido que será reafirmado ou negado por outras subjetividades, de modo que “a significação do objeto que então se revela resiste a mim e permanece independente de mim.”499

E o que isto implica? Em poucas palavras, que toda significação é contingente e pode ser totalmente independente da escolha do sujeito: ela torna-se coisa (em-si). Assim, nascer é estar em um mundo previamente significado em que as coisas revelar-se-ão dotadas de qualidades que serão, posteriormente, experienciadas (vividas, interiorizadas) pelo indivíduo. O objeto significado aponta para a existência de um processo e de um movimento de subjetivação ao indicar ao sujeito uma determinada conduta a ser seguida, um modo de ser ou um modelo de ação previamente estabelecido: todas as formas de subjetivação implicam em determinadas práticas de si. É a existência diante de coeficientes de adversidade.

Estes coeficientes de adversidade (como a dimensão sócio-material ou a matéria humanizada) estabelecem o aspecto organizacional da adversidade humana que, ao designarem um “modo de ser” ou um “modo de agir”, engajam o sujeito em determinados fins a que se submete (não ultrapassar 60 km, faixa de pedestre, proibido pisar na grama, não fumar neste local, entrada permitida para maiores de 18 anos, etc.). Dentro desse processo de subjetivação

eu me submeto aos fins de uma realidade humana qualquer e realizo-os por técnicas quaisquer: eu sou modificado em meu próprio ser, pois eu sou os fins que escolhi e as técnicas que os realizam; fins quaisquer, técnicas

497

EN, p. 304.

498 EN, p. 555. 499 EN, p. 556.

quaisquer, realidade humana qualquer.500

O mundo aparece à realidade humana por mediação de tais técnicas e é por elas que ele é modificado. Nos CM, por exemplo, Sartre afirma que o materialismo (o trabalho humanizando, a Natureza) é a representação que o homem produz de si mesmo por meio de determinadas técnicas501

, ou ainda, é o homem tornando-se sujeito na exterioridade, fazendo do mundo o reflexo daquilo o que faz de si (círculo da ipseidade). É o homem de ação que, enquanto pessoa real, trabalha a realidade e sua produção (que é a matéria trabalhada) não pode aparecer no meio do mundo sem manter relações infinitas com o conjunto da materialidade pela mediação dos homens e o conjunto de homens pela mediação da materialidade502 – é a matéria tornando-se “ideia”.

Mas, se de um lado “uma ideia é sempre prática”, por outro lado ela é “porvir do ser” e “esboço de um comportamento”503 – ela está lá, preenchendo o objeto humanizado, mas dando-se por relação ao sujeito perceptivo e aguardando, na opacidade de sua inércia, ser por ele interiorizada. Pela adversidade das coisas no mundo (universalizantes, totalizadoras), o sujeito manifesta seu coeficiente individual da adversidade: é o exercício de sua liberdade em situação (re)significando seu entorno. O exercer a liberdade é possível por uma existência que é “ser-no-meio-de-um-em-si-de-indiferença”.504

O objeto significado, por sua vez, torna-se coisa porque um ato significante lhe é atribuído, mas é pela possibilidade de transcendência da coisa significada que a liberdade produz o objeto como tal. Ora, “anteriormente não havia nem isto, nem aquilo, nem aqui –, e o dado assim designado não é formado de maneira qualquer, é existente em bruto, assumido para ser transcendido.”505 Como diz Sartre em EN, é preciso “sublinhar com clareza, contra o senso comum, que a fórmula ‘ser livre’ não significa ‘obter aquilo o que se quis’, mas ‘determinar-se, por si mesmo, a querer (no sentido lato de escolher).’”506

A liberdade, portanto, é o ato de ultrapassar o dado, é um modo (específico, singular,

500 EN, p. 556. Essas técnicas podem ser estéticas, políticas (CM, p. 149), intelectuais (CM, p. 327), a linguagem

como técnica social e universal (EN, p. 563), a lei como técnica (CM, p. 580), as técnicas contemporâneas do Saber (QM, p. 93): como “saber andar, saber segurar, saber julgar *...+, saber falar, saber distinguir *...+ o verdadeiro do falso” (EN, p. 557).

501 Cf. CM, p. 59. 502 Cf. IF, III [1972], p. 189. 503 Cf. VE, p. 32. 504 EN, p. 553. 505 EN, p. 553. 506 EN, p. 528.

irredutível) de transcender a coisa significada. Toda relação objetal implica no posicionamento do sujeito diante de presenças (intencionadas, separadas por um nada) pelas quais ele exerce sua liberdade e é por meio delas que se pode compreender – dentro do movimento de produção e percepção de si – a importância das técnicas como mediação entre o sujeito, o outro, o mundo e si mesmo: não há subjetividade fora da história, da sociedade, do mundo. Nos CM, outro exemplo, Sartre apresenta a Economia como uma ação técnica em que o homem faz de si mesmo pura inércia sobre a inércia do mundo507

. Porém, partindo-se do pressuposto de que toda ação é criação, a mudança da escolha da técnica conduz também a uma mudança do próprio homem, do mundo e do indivíduo (singularidade concreta). “A ação do homem é a criação do mundo, mas a criação do mundo é a criação do homem.”508

Como observou Sartre em EN, toda simbolização é consequência da estrutura do ser- no-mundo.509 O homem se produz pela mediação de sua ação no mundo e “se há, de fato, a aparição do novo no mundo, tal aparição no Ser é sob o modo de produção técnica.”510 Sartre ainda oferece ao leitor outro exemplo dessa produção técnica enquanto apreensão e inserção no mundo: “Esse mundo visto através do uso que faço da bicicleta, do automóvel, do trem, para percorrê-lo, revela-me um rosto rigorosamente correlato aos meios que utilizo, logo, o rosto que oferece a todos.”511– é o sujeito produzindo-se no mundo (criação) inserido na multiplicidade de outras consciências. É a partir deste “ato criativo” que se compreende a existência como produção de uma “existência-no-mundo-em-presença-dos- outros”512

– embora não se deduza a presença do outro pela estrutura ontológica do para-si –, de maneira que o mundo revela-se por intermédio de técnicas coletivas513

constituídas. É preciso lembrar de que “nascer” é estar situado desde sempre em um entorno já estruturado (classe, nação, linguagem, cultura, localização geográfica), de maneira que a apreensão de si e do mundo vai se configurando pela mediação de tais técnicas já instituídas e que, enquanto tais, conferem à realidade suas significações: “pelas estruturas 507 CM, p.82. 508 CM, p.129. 509 Cf. EN, p. 641. 510 CM, p. 568. 511 EN, p. 556. 512 EN, p. 557. 513 EN, p. 557.

permanentes de uma sociedade e de uma época *...+ encontramos a significação”514 ou a “realidade-em-si voltada em direção a mim”515. Contudo, que não se perca de vista que “É à luz de um fim que meu lugar adquire significação”516

, ou ainda, à luz do futuro e do não-ser que o ser-aí poderá ser compreendido: o futuro (projetado) “intervém por todos os lados”.517

Para Sartre, serão estas técnicas que determinarão a inserção de uma singularidade na coletividade (nacionalidade, profissão, estado civil, classe social). No entanto, as técnicas coletivas não podem ser apenas compreendidas como uma forma abstrata e universal de produzir subjetividades ou de fazer um indivíduo pertencer a um determinado grupo, visto que uma singularidade concreta não pode reduzir-se ao resultado de forças coletivas e dissolver-se numa coletividade qualquer.

A linguagem (instrumento de realização518 e técnica de apreensão do mundo), por exemplo, pode ser entendida como um “fenômeno de expressão”. Pedro fala com seu amigo e somente compreende-se o que ele diz pela apreensão da significação das palavras que ele emprega (estrutura gramatical das frases, uso de vocabulário, expressões, contexto cultural, o idioma) e pela maneira em que ele utiliza sua voz e sua expressão corporal: seu amigo percebe que ele está irritado (tenso ou calmo). Há uma compreensão global (a verbal e a corporal) que permite captar o sentido daquilo que Pedro fala: realmente, Pedro está irritado. Emitir o juízo “Pedro está irritado” só é possível pela existência de um contexto social e cultural que identifica gestos e palavras como representantes simbólicos de um estado de irritabilidade: é um sistema de referência construído (historicamente) a partir da relação entre sujeitos. As representações são compostas de expressões socializadas e todo signo é significante ao designar uma situação objetiva.519

Dado a importância da linguagem enquanto um saber técnico que insere o indivíduo no mundo, é preciso refletir um pouco mais em torno deste conceito.

A linguagem, como saber (técnica coletiva) não se constitui apenas enquanto 514 CM, p. 37. 515 CM, p. 136. 516 EN, p. 538. 517 EN, p. 536. 518 S, I, p. 190.

519 As patologias mentais, por exemplo, somente existem em sociedade, isto é, elas são referenciadas a um

sistema de comportamentos (historicamente construído, portanto, a posteriori ao sujeito) que padronizam aquilo o que poderia ser identificado como sanidade ou normalidade. O corpo não é apenas uma estrutura biológica, mas também expressa mecanismos de poder; ele existe no interior de uma cultura, de uma sociedade e é significado por um sistema de crenças (discursos heteronormativos, valores, normas, verdades, padrões de comportamento, hábitos, costumes).

conhecimento abstrato e universal, pois, na perspectiva de uma singularidade concreta, ela representa uma vivência única e irredutível deste saber: é o ato de “torná-la minha através das deformações e das seleções provinciais, profissionais, familiares.”520

Com isso, pretende- se evitar a redução do humano à categoria de inessencial (apreendendo-o como resultado passivo) diante de técnicas que se aplicariam por si mesmas (e elevadas à categoria de essenciais). Deve-se ter como premissa, para não incorrer a este erro, “que a existência material é irredutível ao conhecimento [e] que a praxis transborda o Saber”.521 Caso contrário, “o papel do homem será reduzido ao de um piloto que utiliza as forças determinadas dos ventos, as ondas do mar e as marés para dirigir um navio.”522

Mas é “falando-se” que as palavras, as regras, as técnicas e as conexões gramaticais constituem-se como tais. É o homem que as fundamenta e, como resultado, toda unidade sintética que sustenta uma determinada linguagem dá-se por intermédio de um projeto livre: “é no interior do projeto livre da frase que se organizam as leis da linguagem; é falando que faço a gramática; a liberdade é o único fundamento possível das leis da língua.”523

E para evitar qualquer interpretação fixista, estruturalista ou mecanicista do comportamento humano (ou da linguagem), é preciso entender que se mantém aqui a premissa da impossibilidade do homem ser o resultado passivo de forças ou estruturas culturais, sociais ou psicológicas – e a linguagem não foge da aversão sartriana a qualquer tipo de determinismo. Em uma entrevista a Bernard Pingaud, Sartre afirma que

O homem é [...] o produto da estrutura, mas enquanto ele a superar. [...] O homem recebe as estruturas – e neste sentido podemos dizer que elas o fazem. Mas ele as recebe enquanto ele mesmo está ‘engajado’ na história, e ‘engajado’ de tal modo que ele não pode deixar de destruí-la para delas constituir outras novas que por sua vez o condicionarão.524

Em Que é a literatura525, Sartre é claro ao afirmar que aquele que se utiliza da linguagem –