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Temporalidade

No documento Narrativas fílmicas e videojogos (páginas 34-42)

Se a constrição e a ingerência permitem enquadrar a acção poiética no contexto da vida e perceber os sinais de fronteira que os separa ou medeia, uma outra dimensão epistémica pode ser enunciada para com- preender a relação entre textos e fenómenos. Nela fazemos incidir a atenção sobre a relação entre o jogo, a narrativa e a acção a partir da temporalidade. É comum tomar-se a narrativa como relato de acon- tecimentos passados – ainda que esta caracterização seja controversa, aceitaremos que a narrativa tenha uma especial propensão a representar os acontecimentos que relata como pretéritos. A ser assim, a narrativa responderia essencialmente à questão ‘como aconteceu?’. Se a narra- tiva privilegia o laço com o passado, o jogo tenderia para a especulação sobre o futuro. No jogo, enfrentamos sempre o futuro com a questão ‘o que acontecerá?’.

Estamos, portanto, perante duas modalidades de conhecimento que, tendencialmente, se apartam a partir do presente – mas que podem sem- pre reencontrar-se: um jogo concluído torna-se, por norma, uma nar- rativa (resumo, repetição, etc.); uma narrativa em curso pode ser vista como um jogo (tentar adivinhar o desfecho, por exemplo). Este di- reccionamento para o passado que podemos encontrar na narrativa é o que permite a existência de narrativas factuais – as quais tendem a aproximar-se das acções prosaicas e a tomar os fenómenos enquanto factos consumados, quase como objectos. O direccionamento do jogo para o futuro é o que permite a existência da ideia de jogo como com- petição, isto é, como um fenómeno de que se desconhece o desfecho. Seríamos então tentados a afirmar que aquelas narrativas, as factuais, se regem, de algum modo, pelo princípio da reificação, em que os fe- nómenos constrangem os textos, ao passo que este tipo de jogos, os competitivos, se rege, de algum modo, pelo princípio da ideação, em que os textos potenciam as ideias. Em todo o caso, mesmo se as narra- tivas factuais assinalam mais claramente a relação entre textos e acções passadas e os jogos de competição sublinham a relação entre textos e acções futuras, não devemos esquecer que a narrativa ficcional e o jogo enquanto brincadeira desenham a sua lógica a partir dos mesmos vec- tores: ainda que inventada, a narrativa ficcional é assumida como já ocorrida; ainda que possua um desfecho previsível, o jogo como brin- cadeira (o faz-de-conta, por exemplo) aponta sempre para o futuro.

Identificamos, deste modo, três modos de entender a acção em fun- ção da temporalidade: o passado, cuja categoria epistémica seria a retrospecção – numa metáfora espacial equivalente, poderíamos dizer que se trata de olhar para trás, para o consumado ou o reificado –, ao qual a narrativa estaria em melhores condições de responder; o futuro, cuja categoria epistémica seria a prospecção – espacialmente, tratar-se- ia de um olhar para a frente, para o eventual ou o idealizado –, e que o jogo estaria em melhores condições de atender; o presente, cuja cate- goria seria a perspectivação – espacialmente, um olhar através de uma moldura – seria o modo que melhor serviria à acção prosaica, isto é,

à percepção do fluxo dos fenómenos. Se o jogo assenta na antecipa- ção, ele permite testar especulativamente os futuros possíveis dos fe- nómenos – e, nesse sentido, privilegia a acção como intervenção. Se a narrativa assenta na retrospecção, ela permite explicar constativamente o passado dos fenómenos – e, nesse sentido, privilegia a acção como contemplação. Porque ladeiam temporalmente o fenómeno presente, ambos se constituem como formas imprescindíveis de entendimento da acção. Tomadas em conjunto, estas três modalidades poderiam consti- tuir o cerne de uma matriz epistémica da acção à qual se juntariam os princípios e tipos anteriormente enunciados e os que hão-de ainda ser analisados neste estudo.

Capítulo 2

Praxeologia e caractereologia

Na secção anterior aludimos à distinção genérica entre acção prosaica e acção poiética. Trata-se de uma distinção analiticamente vantajosa, uma vez que através dela melhor podemos demarcar e reconhecer o objecto do nosso estudo: o jogo e a narrativa como formas de textualiz- ção da acção e, mais especificamente, a narrativa fílmica e o videojogo como manifestações particulares daquelas categorias genéricas. Não se esgota nessa distinção, porém, o esforço de decomposição conceptual que, em nosso entender, deve ser operado para explicar a acção como fenómeno holístico e sistemático. Impõe-se, portanto, de seguida, o regresso a uma análise geral da acção, uma tentativa teórica que tem como objecto a lógica das acções na sua generalidade, das prosaicas às poiéticas, e que será assumida como fundamento conceptual da nossa investigação. Para tal, socorremo-nos de duas hipóteses disciplinares: por um lado, sugerimos a disciplina da praxeologia, com a qual de- dicamos atenção analítica às acções enquanto eventos, isto é, ao que acontece; por outro, sugerimos a caracterologia, a qual trata de analisar mais detalhadamente os agentes desses eventos, ou seja, quem faz algo acontecer. Importa desde já referir, contudo, que esta distinção entre acção e agente é meramente metodológica – ao longo da próxima sec- ção constataremos com grande frequência como os dois domínios se imbricam.

Esta distinção entre praxeologia e caractereologia surge como con- sequência da mais elementar das operações de análise: a identificação das unidades mínimas de um qualquer fenómeno, no nosso caso, de um evento. Um evento comporta desde logo dois elementos: um su- jeito – alguém que age, um agente – e um predicado – o que acontece, uma acção. Diremos então que a acção na sua forma mais simples (cuja identificação implica, desde logo, um procedimento de textuali- zação) configura, imediatamente, não só um qualquer evento prosaico, mas igualmente qualquer evento narrativo ou qualquer evento lúdico mínimo – temos, num caso, a acção como relato (narrar é descrever um evento), no outro, a acção como desempenho (jogar é provocar um evento). A identificação dos elementos mínimos, sujeito e predicado, da acção relatada ou da acção desempenhada possibilita, à partida, uma espécie de padronização textual mínima que garante o seu reconheci- mento e inteligibilidade. Tal é facilmente perceptível se notarmos que, no que respeita aos procedimentos elementares de textualização, é pos- sível criar uma narrativa numa frase – o que se designa usualmente por situação ou motivo narrativo – e que é possível construir um jogo num gesto – o que designaríamos por lance ou jogada. Obviamente, é possível, de igual modo, criar uma narrativa num gesto – a mímica é nesse aspecto exemplar – ou construir um jogo numa frase – o enigma é disso ilustrativo. A ser assim, qualquer estudo dos jogos ou das nar- rativas pode, ou deve mesmo, partir da identificação dos elementos mí- nimos da acção para, de seguida, descortinar a lógica que a esta está subjacente. O passo seguinte da nossa análise visa precisamente com- preender essa lógica da acção.

2.1

Eixos epistémicos e dimensões críticas

A averiguação epistémica sobre a acção que aqui encetamos funciona, assim, como base da investigação do fenómeno lúdico e do fenómeno narrativo. Entre a frase e o texto, entre o plano e o filme, entre o lance e o jogo, aquilo que encontramos são escalas de crescente complexidade

na articulação de unidades de acção simples em totalidades abrangen- tes. Se de um trabalho de articulação e organização se trata, podemos então identificar o princípio subjacente à acção que melhor permite per- ceber os procedimentos de textualização desta: o princípio da sistema- ticidade. É através dele que o simples é morfologicamente integrado no complexo, a parte funcionalmente integrada no todo. Entendemos assim a acção como sistema – e tal reflecte-se na organização funcio- nal e morfológica que o texto assume quando a descreve, na narrativa, ou quando a prescreve, no jogo. Esta análise visa, portanto, o entendi- mento da lógica sistemática das acções.

Esta ideia de sistema reflecte não apenas a articulação de elemen- tos mínimos de ordem paradigmática, o agente e a acção – a um nível linguístico, o sujeito e o predicado – num sintagma que os coordena, o plano ou a jogada, ou a articulação de sintagmas mínimos entre si dando origem a redes praxeológicas de complexidade crescente, a nar- rativa ou o jogo, mas também a distribuição desses elementos paradig- máticos e conjuntos sintagmáticos em eixos epistémicos e dimensões críticas. O aprofundamento da episteme da acção conduz-nos à iden- tificação de quatro eixos fundamentais de análise. Em primeiro lugar, temos o eixo da teleologia, o qual nos permite compreender que, ten- dencialmente, toda a acção possui um propósito, um fim, em função do qual o sujeito age e cujas consequências podem ou não com ele coin- cidir. Em segundo lugar, o da estilística, na medida em que o modo, a maneira, o design da acção – as decisões tomadas e a sua execução – varia entre agentes e os distingue. Em terceiro lugar, o da axiologia, na medida em que a acção comporta valores, que qualificam motivos e intenções, e que possuem consequências de ordem ética cuja pondera- ção é imprenscindível para o seu cabal entendimento e apreciação. Em quarto lugar, o da dinâmica, no sentido em que toda a acção se distende numa lógica de causa e efeito e apenas por essa via se torna inteligível. Se adoptámos a figura geométrica do eixo para a descrição destes diversos aspectos da acção, devemos, contudo, recusar qualquer as- sumpção dos mesmos como estanques ou absolutamente autónomos.

Quadro 1.5 Eixos epistémicos

Teleologia Propósito e consequência Estilística Decisão e execução Axiologia Motivo e intenção

Dinâmica Causa e efeito

A realidade é que cada um destes aspectos se imbrica necessariamente nos outros, em cruzamentos de mútua determinação: um mesmo objec- tivo pode ser alcançado por modos diversos e com motivos múltiplos; um mesmo modo pode recobrir objectivos e motivos diferentes; um mesmo motivo pode conduzir a objectivos distintos, atingidos de mo- dos diversos – e assim sucessivamente.

Cada acção pode ser avaliada não só em termos de eixos, mas tam- bém em termos de dimensões. Se os eixos anteriormente enunciados permitem compreender a lógica interna da acção, as dimensões críticas permitem atribuir-lhe qualidades. Estas dimensões críticas são susten- tadas por dois pólos fundamentais, o positivo e o negativo: o sim e o não, o bem e o mal, o bom e o mau, o belo e o feio. Ainda que estes con- ceitos acabem por operar, frequentemente, num regime de permuta ou equivalência semântica, como se, na linguagem comum, um mosaico de significados se fosse fazendo e refazendo num trânsito constante en- tre eixos e dimensões, efectuaremos agora uma distinção prévia com o objectivo de clarificar a utilização destes termos no contexto do nosso estudo. Nesse sentido, faremos corresponder a cada eixo epistémico um par de conceitos críticos.

Assim, para os conceitos de bom e de mau propomos a sua utili- zação no âmbito da teleologia. Eles permitem avaliar a qualidade da acção reduzindo o seu julgamento à correspondência, ou não, entre o propósito que a orienta e as consequências que provoca. No fundo, trata-se de averiguar do sucesso ou insucesso de uma acção – e esta

avaliação pode ser exterior a qualquer juízo de ordem axiológica ou estilística.

Aos conceitos de belo e de feio tomamo-los aqui como próprios da estilística. Servem para qualificar o modo como a acção é conduzida, isto é, averiguam a correspondência entre decisão e execução. A sua avaliação pode ser exterior quer à axiologia – por isso podemos afirmar que é possível praticar o mal de uma forma bela e o bem de uma forma feia – quer à teleologia – uma acção bela não é necessariamente boa, ou seja, bem sucedida.

Do bem e do mal diremos que são conceitos próprios do eixo da axiologia, o dos valores éticos, da dimensão motivacional e intencio- nal – remetem, por isso, para as repercussões da acção na esfera do humano. São, por assim dizer, os conceitos que permitem avaliar as acções na sua dimensão moral: fazer o bem ou fazer o mal. A sua avaliação pode ser, também ela, exterior à estilística e à teleologia – é a isso que nos referimos, por exemplo, com o adágio “os fins não justificam os meios”.

A dinâmica, por nos surgir como o eixo que descreve a acção na sua maior simplicidade, quer lógica quer fenoménica, possui um re- gime qualificativo substancialmente distinto. Sim e não são os concei- tos avaliativos que operam na sua análise: a acção é concretizada ou não é concretizada, uma causa tem ou não o efeito esperado. A lógica binária é absoluta e dispensa qualquer nuance: a acção não é boa nem má, nem bela nem feia – ela simplesmente acontece ou não. É na di- nâmica que se sustenta toda a acção, uma vez que é ela que lhe garante a inteligibilidade causal; os restantes eixos operam sobre a dinâmica, qualificando a acção em diversos aspectos.

É no âmbito da teleologia que a acção pode ser qualificada na sua maior objectividade: o sucesso ou o fracasso. Se a estilística e a axio- logia dependem, na avaliação que permitem da acção, de critérios sem- pre passíveis de revisão e relativização – e logo, de alguma forma, de subjectivismo –, a teleologia, por seu lado, oferece-nos um desfecho inexorável. Tanto o juízo ético como o juízo estético são reversíveis

Quadro 1.6 Dimensões críticas

Teleologia Bom e mau

Estilística Belo e feio

Axiologia Bem e mal

Dinâmica Sim e não

e mutáveis, o que não acontece com o juízo teleológico. A dinâmica, por seu lado, por assentar em critérios meramente factuais, coloca-se aquém de qualquer qualificação significativa – ela mantém-se na estrita ordem da causalidade e da efectividade. A teleologia é então o eixo fundamental de compreensão e qualificação da acção, mediando entre a simplicidade da dinâmica (as causas e os efeitos), a complexidade da axiologia (os motivos e as intenções) e a volatilidade da estilística (as decisões e execuções). Também aqui não podemos tomar como estan- ques estas dimensões, mas delas fazer um entendimento holístico em qualquer análise da acção: não só porque a permitem entender como totalidade, mas também porque se integram e influenciam de forma sistemática. Se elegemos a teleologia como o eixo primordial da ac- ção é porque ela serve para averiguar da correspondência ou não entre os propósitos e as consequências. Todo o agente opera segundo um propósito – porém, as consequências da sua acção podem não corres- ponder ao propósito que as orienta. Trata-se aqui de avaliar a eficiência da acção – é neste sentido muito estrito que queremos aqui utilizar a noção de teleologia. Se existe correspondência entre as consequências e os propósitos, a acção é boa, bem sucedida. Se as consequências contrariam os propósitos, a acção é má, um insucesso.

No documento Narrativas fílmicas e videojogos (páginas 34-42)

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